Vamos que vamos; juntas ocupar tudo!

Kelli Mafort, da direção nacional do MST, analisa as mobilizações de 8 e 14 de março

 

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Mística da Ocupação em Anápolis, GO
Foto: Thainá Regina

 

Por Kelli Mafort
Da Página do MST

Elas sabiam que poderiam ser recebidas por balas assassinas, mas foram recebidas com flores atiradas pela sociedade, em solidariedade à ocupação de terra. Daqui pra frente nossa missão é ocupar tudo! Por direitos e contra todas as formas de violência e o extermínio das mulheres através do feminicídio.

“Vamos que vamos, vamos juntas ocupar tudo”.  Foi com essa frase de convocação e compromisso que Marielle Franco encerrou a reunião com cerca de 20 mulheres na Casa das Pretas, no Rio de Janeiro, em 14 de março de 2018. Minutos depois, ao sair do local, Marielle seria assassinada junto com Anderson Gomes. Ás 21h14 daquele dia sangrou em todas nós. A voz dessa mulher forte foi calada, mas sua frase de comando para a luta social ficou, e ecoou nos protestos de resistência que se espalharam mundo afora.

 

Mas os meses que seguiram depois daquele 14 de março não foram nada leves para as mulheres lutadoras. Enfrentamos uma campanha política misógina e machismos de toda ordem compareceram, desde as relações mais íntimas até as mais altas expressões públicas. Nos levantamos no “Ele Não!”, em uma das maiores lutas de massas realizadas no nosso país, combinando ações nas capitais com a ramificação em diversas cidades do interior. Até hoje parte da esquerda desqualifica tal levante, aprisionando-o numa “pauta de costumes”.

Amargamos ainda a ascensão de um presidente com inspiração fascista, que leva a cabo o projeto ultraneoliberal – um capitão capacho do capital que conseguiu a adesão de parcela significativa do povo brasileiro ao seu projeto de morte e destruição, tão possíveis em tempos de barbárie.

A avalanche de medidas do novo governo, somadas ao clima de perseguição política que se instalou na sociedade, inflado por táticas de pressão psicológica e de terror cibernético, impuseram uma barreira à luta direta das ruas. As ameaças do capitão, ainda na campanha eleitoral, de enquadrar movimentos populares como terroristas, somadas à incitação ao assassinato de militantes em situações de ocupações de terras no campo ou na cidade, parecia impor uma proibição à organização social, aos protestos e às lutas diretas de enfrentamento, radicais pela natureza das causas que mobilizam.

Desatento aos movimentos da história, um jornalista chegou a publicar num jornal de grande circulação um texto intitulado “Na mira de Bolsonaro, MST faz mobilização &”39;‘comportada’&”39; no Dia da Mulher”, em que ressaltava que nos últimos 15 anos era a primeira vez que tal movimento passava o 8 de março sem “invadir nenhuma fazenda”. Sua análise foi afoita e subestimou a força do março na vida das mulheres e o sentido político do período de luta que se estendeu, após o assassinato de Marielle, que será sempre lembrado com coragem, resistência e corpos de mulheres em movimento.

A vida das mulheres trabalhadoras é uma luta diária, e quanto mais se sobrepõe às dominações, mais potencial de reação possui. É por isso que, quando uma mulher trabalhadora se move, vai rompendo as correntes de classe e da sociedade patriarcal, estruturante da desigualdade de gênero. Se essa mulher for negra, pode arrebentar também com as correntes do racismo; se for trabalhadora, negra e LGBTQ+, sai arrebentando as estruturas sociais. Esse é o sentido do feminismo, e a luta política das forças populares e de esquerda será derrotada se não incorporar radicalmente  o protagonismo das mulheres nos espaços de poder.

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Mística da Ocupação em Anápolis, GO
Foto: Thainá Regina

“Essa bandidagem vai morrer”, disse o então candidato Jair Bolsonaro num discurso de campanha em Araçatuba, no interior de SP, ao se referir aos defensores dos direitos humanos. “Tudo começa com segurança. O MST deve ser esperado com fuzil e cartuchos 762”, disparou o então deputado, meses antes de se declarar candidato.

Esse posicionamento político tem sido reiterado pela maioria do governo Bolsonaro e, sem dúvidas, impõe um ambiente de dispersão e receio aos lutadores e lutadoras sociais. No entanto, a dureza das medidas de Estado contra os direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras, as negociatas para aprovação de uma privatização da previdência, a liberação descarada de mais de um agrotóxico por dia, a divulgação de um acordo bilionário da lava jato com o governo dos Estados Unidos sobre o petróleo, somado à enxurrada de indícios do envolvimento do núcleo familiar Bolsonaro com milicianos (paramilitares) e possivelmente com o assassinato de Marielle e Anderson, são elementos mais do que suficientes para se movimentar e correr o risco.

Na madrugada do dia 13 de março, cerca de 800 mulheres do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e do MCP (Movimento Camponês Popular) cravaram a primeira ocupação de terras do governo Bolsonaro. Elas se colocaram como escudos da luta política para enfrentar as consequências do ódio destilado contra o direito legítimo de ocupar e fizeram valer os dizeres de Marielle minutos antes de sua voz ser silenciada: “Vamos ocupar tudo!”.

Mas em vez de “fuzis e cartuchos 762”, as mulheres encontraram solidariedade da sociedade; em vez de serem classificadas como terroristas, aquelas mulheres conseguiram arrancar até da mídia tradicional o sentido de justiça social e ética que está contido numa ocupação de terras de um abusador sexual. A ocupação aconteceu na fazenda Agropastoril Dom Inácio, em Anápolis, localizada entre os distritos de Interlândia e Sousânia, no estado de Goiás. As mulheres reivindicam que todos os imóveis rurais de João de “Deus” sejam destinados para Reforma Agrária e a produção de alimentos saudáveis, e que as vítimas dos mais de 500 casos denunciados de abusos sexuais cometidos por ele sejam indenizadas.

A síntese do sentido político dessa ocupação foi expressa na nota de solidariedade da COAME – Combate ao Abuso no Meio Espiritual. “A ocupação do latifúndio pelas mulheres desses movimentos são um direito garantido em Constituição, e não poderia ser um destino mais justo e simbólico para essas terras. A História e a vivência estão aí para nos mostrar que onde há exploração da terra, há exploração das mulheres; onde o homem abusa da terra, encontraremos também abuso contra a mulher. É hora deste tempo acabar. Toda nossa solidariedade à Jornada Nacional de Lutas das Mulheres Sem Terra”, descreve a nota.

No mesmo dia da ocupação, a sociedade ficou estarrecida diante da cruel chacina ocorrida numa escola em Suzano – SP, que acabou com a morte de 10 pessoas, a maior parte adolescentes. A dor por essas vidas ceifadas foi sentida pelas mulheres em luta que ocupavam a fazenda de João de “Deus”, que passaram pela a sensação de estar em uma sociedade doente, obrigadas conviver com uma explosão de feminicídios, com a manipulação da fé e da espiritualidade para a prática estupros e que tem a arma como símbolo de ostentação. Essas reflexões renovaram nosso compromisso com a luta, provocam profunda indignação nos faz dar os passos necessários para mudar a forma de viver de todas nós.

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Mística da Ocupação em Anápolis, GO
Foto: Thainá Regina

A primeira ocupação de terras que o governo Bolsonaro teve que engolir ocorreu no bojo das lutas vermelhas, lilás e coloridas de março, trazendo a beleza da produção cotidiana das mulheres urbanas e do campo. Elas resistem à violência e enfrentam a força bruta construindo o avesso nas feiras, rodas de conversa, debates com a sociedade, caminhadas, atos políticos e protestos. O tempo presente nos impõe ressignificar cada prática cotidiana e incorporá-la como parte de uma mesma luta – todas as táticas estão sob a mesa, e absolutamente nada está proibido ou descartado.

As madrugadas continuam sendo do povo que se organiza em torno das necessidades humanas em busca de sua emancipação. Foi assim nas terras de João de “Deus”, e também foi assim na cidade de Sarzedo, vizinha a Brumadinho, em Minas Gerais, onde 400 mulheres do MST e do MAM (Movimento pela Soberania Popular na Mineração) ocuparam os trilhos por onde passam os carregamentos de minérios da Vale e de outras empresas.

Naquele 14 de março, mulheres decidiram que, pelo menos por algumas horas, o trem não mais passaria sobre os corpos ainda debaixo da lama, pelo rio contaminado que mata aos poucos e pela memória dos 203 que foram sepultados. Naquele lugar as mulheres decidiram que seus gritos seriam ouvidos e que a denúncia sobre o rompimento de mais barragens ficaria registrada com lama e sangue.

As mulheres foram fortemente reprimidas pela Polícia Militar, que não se importou pelo fato de serem mulheres, ou por completar justamente naquela data um ano do assassinato de Marielle e Anderson. Correria, desespero, mulheres hospitalizadas e várias feridas foi o cenário daquela manifestação. Mas não desistimos, pois “vamos que vamos”, disse Marielle. A maior solidariedade que podemos oferecer às mulheres feridas pela polícia mineira e às vítimas da mineração é permanecer na luta, ocupando tudo e barrando o trem da destruição.

Que março nos anime para abril e para o tempo todo. Que o protagonismo das mulheres ocupe nossas organizações e que sua ousadia nos contagie. Depois da primeira bandeira fincada em tempos cinzas, ninguém consegue deter o arrebentar das correntes.