Eni Gomes, uma mulher Sem Terra e seus sonhos coletivos

Conheça a história da camponesa que viveu de perto o Massacre de Felisburgo e se mantém firme na luta pela terra

 

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Maria Gomes dos Santos, 53, é da coordenação regional do MST no Vale do Jequitinhonha (MG)
Foto: Comunicação MST

Por Mayara Paixão
Do Site Brasil de Fato

Acampamento Terra Prometida, município de Felisburgo, noroeste de Minas Gerais. Há 15 anos, em 20 de novembro de 2004, esse era o palco do crime que ficou conhecido como Massacre de Felisburgo. Cinco sem-terra foram mortos, 20 ficaram gravemente feridos e dezenas de famílias tiveram suas casas incendiadas.
 

Neste dia, Maria Gomes dos Santos, conhecida como Eni, não estava no Acampamento. Se estivesse, talvez não pudesse contar a história hoje. Liderança do acampamento, ela era um dos principais alvos dos pistoleiros que invadiram o terreno.
 

“Falar do Massacre não é bom. Mas a gente precisa falar mesmo… Parece que quando a gente fala, vai aliviando aos poucos”, diz Eni logo no início da nossa conversa. “Quando recebi aquela notícia, parece que abriu um buraco e eu entrei dentro. Não sabia o que fazer, o que pensar. Achei que o sonho que a gente estava construindo tinha acabado. Ai eu sentei, respirei e pedi a Deus forças”.
 

O triste episódio, no entanto, é apenas um dos capítulos de sua história com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A relação começou há 17 anos. Hoje, a trajetória pessoal de Eni se confunde com a do próprio movimento — não apenas nos episódios difíceis, como o do massacre, mas principalmente na alegria das conquistas dos sem-terra.
 

Da Marcha das Margaridas para o MST

“Eu acho que sempre fui uma pessoa revoltada. Não revoltada com a vida, mas com o sistema”

“Perdi meu pai muito cedo, e tive que viver trabalhando em casa de família. As humilhações que a gente recebe fazem com que se revolte com esse sistema que não valoriza o trabalhador”, desabafa.

Hoje aos 53 anos, Eni tem quatro filhas e sete netos. Mais da metade da vida da mãe e avó mineira é dedicada à militância no MST. Os caminhos que a levaram ao movimento começam ainda na adolescência. Com 16 anos, já estava filiada ao Sindicato das Trabalhadoras Rurais. No entanto, ela conta que sentia a necessidade de ir além.

Demonstrando a disposição para organizar as mulheres, ela foi indicada para participar das reuniões da Marcha das Margaridas, ação que reúne milhares de trabalhadoras rurais para reivindicar seus direitos e homenagear a líder sindicalista rural Margarida Maria Alves, assassinada em 1983.

“Fiquei conhecendo o Movimento Sem Terra pela televisão. Achava um negócio distante. Então, no ano 2000 eu fui na Marcha das Margaridas lá em Brasília e nessa marcha nós passávamos de um lado e do outro passava o pessoal do MST. Em algum momento, conversei com algumas pessoas, simpatizei, e fiquei sonhando de um dia estar no movimento”, relembra.

A manhã do 20 de novembro

Menos de um ano após a primeira Marcha das Margaridas, Eni já estava organizada no MST. Em maio de 2002, participou da ocupação da fazenda Nova Alegria. As terras eram devolutas, sem uso e deviam ser devolvidas ao Estado. Nascia ali o Acampamento Terra Prometida.

Após 15 dias de ocupação, os sem-terra receberam a primeira ordem de despejo. Na negociação judicial, o Incra responsabilizou-se por encaminhar as famílias para outra região de moradia. Isso não aconteceu até hoje.

As primeiras ameaças não tardaram a chegar. Eni conta que pistoleiros rondavam as terras do acampamento, ameaçando e humilhando os sem-terra. Ela foi um dos alvos das ameaças. Com emoção, recorda: “Já teve caso de eu sair, despedir de minhas filhas e pensar: &”39;será que eu vou conseguir voltar pra vê-las?&”39;”.

Pouco mais de dois anos após a ocupação das terras, aconteceu o Massacre de Felisburgo. O grileiro e dono da fazenda Nova Alegria, Adriano Chafik, e mais 17 pistoleiros invadiram as terras do acampamento atirando contra os sem-terra e ateando fogo nas casas.

Além dos mortos e feridos, a escola, biblioteca e os barracos do acampamento foram destruídos. “Queriam acabar com a nossa história”, afirma Eni.

“Isso aconteceu no sábado, dia 20 de novembro, passou domingo, na segunda-feira nós plantamos nossos companheiros.”

Sobrevivente do massacre, ela guarda até hoje a sede de justiça pelos companheiros assassinatos e pelo trauma gerado naqueles que estavam no dia do ataque.

“Fico pensando na minha filha que, na época, tinha 12 anos. Ela não morreu queimada porque as vizinhas tiraram ela. Eles colocaram fogo porque acharam que eu estava no barraco, e ela queria entrar para apanhar os cadernos dela. A vizinha correu, puxou ela e quando puxou o barraco acabou de cair. Se ela tivesse entrado, tinha morrido queimada também”, lembra.

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Enterro dos assassinados no massacre. Eni Gomes segura a bandeira do MST
Foto: Arquivo pessoal

Mesmo 15 anos depois, o crime segue impune. Apenas dois dos 17 pistoleiros foram presos, os demais seguem em liberdade. Adriano Chafik foi condenado a 115 anos de prisão somente em 2013, mas ficou em liberdade por um pedido de habeas corpus. Em maio 2017, Chafik ficou foragido da Justiça, e foi finalmente preso em dezembro desse ano.

Os sem-terra da região de Felisburgo ainda têm longa luta pela frente. Em 2015, o então governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), assinou o decreto de desapropriação da fazenda de Nova Alegria. Além disso, decretou o cadastramento das famílias para um programa de regularização fundiária.

No entanto, a Vara Agrária de Minas, no final de 2018, derrubou o decreto e restabeleceu a liminar de reintegração de posse, que corre até hoje.

Os sonhos de Eni

Hoje, Eni Gomes é da direção regional do MST no Vale do Jequitinhonha. O tempo passa e a trabalhadora segue cultivando sonhos. Todos eles, assim como sua história, são coletivos.

Ao ser perguntada sobre eles, responde sem titubear: “Meu maior sonho é ver essa terra desapropriada e todas as famílias tranquilas. Não só essa terra, mas ver a reforma agrária acontecer.”

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No Acampamento Terra Prometida, as trabalhadoras e trabalhadores plantam milho, feijão, mandioca, batata, hortaliças, entre outras variedades. Tudo sem agrotóxicos. Hoje, o acampamento é responsável por 80% da produção da Feira de Felisburgo, mostrando que, embora o Estado brasileiro não assegure a reforma agrária, a luta das mulheres sem-terra já colhe seus frutos.
 

Edição: Mauro Ramos/ Brasil de Fato