O açoite que doeu em nós

Artigo reflete sobre caso do jovem que foi açoitado em São Paulo

 

Por Íris Pacheco, Paula Silva e Simone Magalhães*
Da Página do MST

Nessa semana, mais uma vez, nos deparamos com a desumanização imposta ao corpo negro. Não muito distante, ali na zona sul da capital paulista, um adolescente de 17 anos, que vive em situação de rua, tentou furtar um chocolate em uma unidade da rede de supermercados Ricoy. O jovem foi capturado por dois seguranças, levado por eles para uma sala nos fundos do local, amarrado, deixado nu e açoitado com um chicote de fios elétricos. Precisamos refletir sobre a gravidade disso!

Não estamos falando do Brasil colônia: esse fato ocorreu no mês de julho de 2019, no entanto, por conta das ameaças de morte e do medo decorrente da sessão de tortura que durou mais de 40 minutos, o jovem não registrou boletim de ocorrência à época. A sociedade teve conhecimento do fato apenas porque, como continuação do sadismo e da perversão dos seguranças, identificados como Valdir Bispo dos Santos, “o Santos”, e David Oliveira Fernandes, “o Neto”, eles gravaram a sessão de tortura e divulgaram em suas redes sociais.

Sim, tortura amplamente divulgada como “correção” nos moldes escravagistas. O mesmo processo que promoveu a desumanização dos corpos negros no passado, motivado pelo racismo e perversidade, autoriza hoje o açoite em mais um jovem que já se encontra em vulnerabilidade. 

O açoite doeu em nós, que, para além da indignação e do estarrecimento, precisamos cotidianamente nos revoltar diante das violências contra os corpos pretos; mas também porque precisamos manter firme a humanidade duramente golpeada nos tempos atuais. 
A ação abominável dos dois seguranças do Ricoy se vincula à outra tragédia, entre muitas do país, ocorrida em fevereiro no Rio de Janeiro, quando Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga, de 19 anos, foi morto por Davi Ricardo Moreira Amâncio, também segurança do supermercado Extra, do Grupo Pão de Açúcar, na Barra da Tijuca, quando recebeu uma “gravata” e foi sufocado.  

O que esses dois jovens tinham em comum? Eram negros e pobres!

Casos como estes concorrem com as múltiplas formas de castigos, punições e torturas próprias do período escravagista no Brasil. Os donos das casas grandes e as sinhás brancas, “pessoas de bem” assistiam prazerosamente aos castigos aplicados aos corpos negros escravizados, mandavam quebrar os dentes à marteladas – ou arrancá-los com alicate–, ou elas mesmas colocavam brasas nos seios das mulheres negras escravizadas porque se sentiam humilhadas sexualmente.  Toda forma de torturas e castigos contra o povo negro aqui escravizado foram sedimentando práticas sociais violentas, presentes ainda hoje em nossa sociedade.

A tortura, os açoites e os assassinatos de jovens negros e pobres não são fortuitos nem casuais, são sim o produto mais acabado da violência sistemática fundamentada no racismo, no preconceito e na discriminação, aceita socialmente e reproduzida pelo Estado.

O que essas “pessoas de bem” fizeram e querem continuar a fazer é eliminar o povo negro, pobre e periférico. E para isso contam com o apoio ideológico das elites brasileiras, impregnadas de ódio de classe e amparadas pelo aparelho estatal, para criminalizar a pobreza e os movimentos sociais. Ademais, encontraram no governo de Jair Bolsonaro, admirador efusivo de torturadores da ditadura militar, a licença e a autorização para atuar e operar a barbárie em curso no país.

Não por acaso, o pacote anti-crime do ex-juiz Sérgio Moro, em tramitação na Câmara Federal e no Senado, propõe ampliar a realização de perfil genético para todas as pessoas condenadas por crimes dolosos, mesmo que este tipo de prova material não ofereça nenhuma contribuição ao processo investigativo. Ou seja, o atual ministro da justiça defende uma política de segurança pública que prevê um método típico do projeto eugenista. Se aprovado, o pacote Moro anti-crime, baseado no pressuposto da relação direta entre biologia e criminalidade, aprofundará a segregação e a discriminação, além de escamotear relações sociais fundamentadas no racismo e no preconceito que têm os corpos negros como o seu principal alvo. 

É notório o quanto o governo Jair Bolsonaro está empenhado em aprofundar as desigualdades sociais no país, a retirar direitos sociais e reprimir qualquer reação da classe trabalhadora. No entanto, essa classe que tem cor, sexo e território, e que nunca parou de lutar nem saiu das ruas deste país, está a se levantar… E a dizer que nenhum sangue negro derramado, nenhuma chibatada e nenhum preconceito sairão sem respostas. 

*  Militantes do MST e membros do grupo de estudos Terra, Raça e Classe do MST.
** Editado por Fernanda Alcântara