João Bá: uma vida dedicada a cantar o Brasil

O poeta e cantador João Bá dedicou sua vida a cantar e contar a natureza
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A despedida de João Bá foi uma grande cantoria, como era seu desejo. Foto: Cuia Guimarães

Por Alan Tygel
Da Página do MST

 

Partiu na última sexta (4), aos 87 anos, o poeta e cantador João Bá. Com uma vida dedicada a cantar e contar a natureza, não como quem observa, mas como quem é parte dela, o baiano nascido no sertão de Crisópolis foi se juntar aos passarinhos, rios e bichos protagonistas do seu repertório.
 

Além das faunas, floras e paisagens e brasileiras, o universo de João Bá é feito das gentes do Brasil. Ele mesmo, de origem Tapuia, falou de pataxós, manaus, lavadeiras, boiadeiros, marabás, ribeirinhos; prestou reverência a músicos, contou histórias de boi, de Canudos, da invasão portuguesa, de Zumbi; navegou pelo Rio São Francisco e pelos sertões de Guimarães Rosa.
 

O velório de João Bá foi uma grande cantoria, como era seu desejo. Seu último show aconteceu há cerca de um mês, em São José do Campos. Ele já apresentava problemas de saúde, e houve ponderações de amigos e da família sobre sua participação. João Bá não titubeou: “Faço questão de ir: eu quero morrer cantando.”

Para Fernando Guimarães, um de seus parceiros que presenciou a cena, o que fica de João Bá é o sentimento pela arte, pela vida e pelas coisas que ele acreditava: “é uma pessoa que levou seu sonho até os últimos momentos da vida.”
 

E foi assim, cantado por parceiros de todas as épocas, durante horas seguidas, que o corpo de João Bastista – “ba”iano e “ba”ixinho, foi enterrado no cemitério da cidade de Caldas, onde viveu os últimos anos de sua vida.
 

Trajetória
 

João Bá nasceu em Crisópolis, região nordeste da Bahia, em 1932. Em 1954, veio para São Paulo de trem e pau-de-arara em busca de uma vida melhor. Trabalhou em uma farmácia, tentou a sorte no futebol até que conseguiu participar do primeiro Festival da Música Popular Brasileira, na TV Record em 1966. Sua música, no entanto, foi censurada pela ditadura, pois fazia menção à luta indígena, e à fome vivida pela população pobre.
 

O episódio acabou tornando João Bá mais conhecido, e neste período ele participou de uma série de programas de televisão, especialmente a Casa dos Cantadores, na TV Cultura.
 

O primeiro disco gravado por João Bá – Carrancas – foi lançado em 1988. O “crowdfunding”, hoje considerado uma inovação, foi já naquela época utilizado por João Bá para custear a gravação independente. A capa do LP traz o nome de todas as pessoas que contribuíram.
 

Em seguida vieram os CDs Carrancas I-II, Ação dos Bacuraus Cantantes, Pica-Pau Amarelo, 50 anos de carreira, Aruanã, João Bá para Crianças e finalmente a última obra, Cavaleiro Macunaíma, lançado em 2014.
 

Parcerias
 

A carreira de João Bá foi toda construída em torno de parcerias. Nanah Correia, uma das parceiras, conta como funcionava: “se ele olhasse pra alguém e tivesse uma ideia, a pessoa já virava parceira”. Ela explica ainda que, como seu forte era a poesia, os músicos que acompanhavam João Bá construíam com ele o rumo de seu estilo musical.

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Foto: de Cuia Guimarães

A lista destes músicos e musicistas é extensa: além da própria Nanah, fazem parte Julian Tirado, Dércio Marques, Klécius Albuquerque, Gereba, Vidal França, Daniela Lassalvia, Diana Pequeno, Levi Ramiro, Fernando Guimarães, Nadia Campos, entre muitos outros.
 

Nanah Correia foi idealizadora do disco João Bá para Crianças – Amigo Folharal, lançado em 2010. A obra reúne o universo infantil do repertório de João Bá, e conta com a inédita Bizunguinha. O nome faz referência a um beija-flor pequeno.
 

Segundo Nanah, as músicas são consideradas infantis porque contam as histórias dos bichos, de forma simples e didática. Muitas destas músicas constam inclusive como referências em currículos escolares. Entretanto, João Bá trata também nestas músicas de temas sociais importantes. É o caso da música Reforma Agrária dos Anuns.
 

A música fala das diferentes variedades do pássaro Anum (Anu-preto, anu-campeiro, anu-branco, anu-dourado), que têm a peculiaridade de cuidarem dos seus ovos de forma comunitária. Apenas uma ave da família, o Alma-de-gato, não partilha deste costume. Quando a comunidade sente necessidade, “os mais antigos vão buscar a nova terra, enquanto os novos se espalham por aqui”. João Bá então ensina sobre a reforma agrária de forma simples: “seguindo a lei que não precisa de emenda, o campo é livre pra quem sabe produzir”.
 

Nanah Correia lembra dos momentos lúdicos do show: “Na música Bicho da Seda, a gente ficava pertinho e eu fazia um texto sobre a borboleta. E eu botava o xale, todo bordado de borboletas, por cima como se a gente estivesse dentro do casulo, e depois a gente ia saindo. Mas nunca dava certo; ele enganchava no microfone, derrubava tudo, ninguém conseguia cantar”, relembra.
 

Nos últimos anos, João Bá participou do projeto Roda de Mestres. O jovem violeiro João Arruda rodou o Brasil com três grandes mestres da música brasileira: Tião Mineiro e Sinhá Rosária, além de João Bá. Arruda se emociona ao contar sobre a experiência.
 

“Foi uma das coisas mais felizes da minha vida. Por onde passamos, as pessoas se emocionaram muito, por eles serem três figuras muito criativas, cada um com sua obra, cada um com seu jeito totalmente diferente. Um caipira, uma sambista do jongo, e um poeta baiano. Deu uma liga muito boa. Conseguimos circular com esse show, e pude trabalhar dignamente com eles. Na idade que eles têm, é muito mágico. Foi um momento muito feliz para mim, e para o João também. Ele voltou a bater perna, coisa que ele fez muito na vida e há um tempo estava parado”, conta.
 

Numa das viagens ao Tocantins, Arruda lembra que João Bá foi questionado: “Ouvi dizer que você é contra as barragens.” E ele prontamente respondeu: “Não, imagina. Eu sou a favor dos peixes!”
 

As lembranças dos momentos com João Bá também tocam o coração de Nádia Campos, cantora e afilhada do poeta, que também o acompanhou nos últimos anos.
 

“A música do João é o Brasil profundo. Nesse cenário de natureza, sertão, floresta, várias paisagens, contextos culturais de vida, ele ensinou muito pra gente. Pra cada canção ele nos contava a história. Por exemplo, em Ilha de Comandatuba (do álbum Cavaleiro Macunaíma), ele diz: ‘Se der mostarda, meus Deus o que será de mim?’. E ele explicou: ‘Minha filha, você já viu o que é colher mostarda?’ A gente teve esse presente de ouvir as histórias e ouvir as músicas.”
 

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João Bá e Pereira da Viola no V Encontro
Nacional de Violeiras e Violeiros, em
Ribeirão Preto. Foto Nádia Campos

Outro parceiro que acompanhou João Bá por muitos anos é Levi Ramiro. O violeiro de Uru, interior de São Paulo, conta sobre sua visão da obra de João Bá: “Ele sabe criar uma cena muito interessante, é coisa de cinema. O caminho da poesia dele é sempre muito estruturado em cima de uma cena.”
 

Levi vai além em sua análise. “João tem um erotismo nas letras dele. Um erotismo que fala da relação homem-mulher, mas com um purismo que é uma coisa linda.” E cantarola: “Quem me dera ser o vento pra ventar seu corpo inteiro, ser a fonte do seu banho e me embebedar do teu cheiro. Mergulhar no seu segredo.” Para Ramiro, João Bá tem uma malandragem: “’eu te prometo um roçado’, ele não oferece, ele promete pra conquistar o amor. É uma destreza pra lidar com o erotismo.”
 

E cantarola um trecho da música Fotossíntese

Um rio doce nas barrancas do teu beijo
O meu desejo num galope a beira mar
Dois frutos lindos balançando a natureza
E um pé de vento carregando o meu sonhar

 

Levi continua: “Ele tá falando da mulher que ele tá desejando!” E termina a música:
 

É primavera na copa dos arvoredos
Não tenha medo quero ver você brincar
Na fotossíntese dos olhos da bailarina
Clareia a sina malina do beija-flor

 

Além das boas lembranças, outro assunto também fez parte das conversas durante o enterro foi a falta de reconhecimento do grande público. Nádia Campos afirma que sempre teve certeza de que, na hora que o João Bá morresse, as pessoas iriam prestar atenção na sua obra: “A obra dele não é qualquer coisa. E é triste isso, só quando a pessoa vai que realmente as pessoas dão valor ao que tem. É um pouco ingrato.”
 

Um de seus 6 filhos, Danilo Bá, concorda com Nádia: “João Bá ainda não foi enxergado por todo mundo, devia ter mais de visibilidade. O pensamento dele não é trivial. A visão que ele tem de mundo é algo diferenciado. Ele tem uma conexão com a natureza muito grande, um querer bem pelo planeta, por tudo que é natural. Com toda simplicidade, gostava de falar dos rios por onde passou, ele que veio da seca, e fez seu último ninho em Caldas.”
 

Após uma apresentação na Feira Avareense da Música Popular (Fampop), na década de 1980, João Bá definiu sua música:

“Fiquei surpreso porque o público entendeu o universo da minha música. Que é o universo da criança, o universo do circo, o universo do vento de primavera. Uma coisa bem infantil, bem cheia de cores.”

*Editado por Fernanda Alcântara