Caio Prado Junior e a formação política no MST

A formação é parte orgânica e constitutiva das ações do MST desde suas origens, cuja preocupação com a consciência política e ideológica de sua base social é parte da centralidade do Movimento

Por Selma Santos*
Da Página do MST

Neste mês de fevereiro, comemoramos o nascimento de Caio Prado Junior, nascido em 11 de fevereiro de 1907. Importante intelectual comunista, dedicou sua vida à interpretação da realidade brasileira, pelo viés da teoria marxiana e construiu seu legado a partir da práxis política de pensamento e ação revolucionários.


Dada a surpreendente atualidade de seu pensamento, há a necessidade de revigora-lo não só na seara da academia, mas também a de proporcionar o enraizamento de suas ideias no seio dos movimentos populares e das massas. Neste sentido, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) tem cada vez mais realizado o reencontro com a teoria crítica em seus espaços e atividades de formação política. Caio Prado é um desses autores que encontra eco ativo no meio da militância do Movimento.


Importante trazer, primeiramente, alguns elementos de concepção da formação no MST na busca desta mediação entre a formação política ideológica de sua militância e a incorporação de ideias chaves que pensam o Brasil na perspectiva da revolução brasileira.


A formação é parte orgânica e constitutiva das ações do MST desde suas
origens, cuja preocupação com a consciência política e ideológica de sua base social é parte da centralidade de suas ações e perpassa toda a sua História até o presente momento. Ela é compreendida como uma ferramenta necessária para o avanço da luta social, uma vez que as ações que alteram a correlação de forças nas lutas de classes, tem a ver com o nível da consciência social das massas, bem como, a apropriação do projeto político por parte dos trabalhadores.


Tem a ver com a alteração qualitativa através da interpretação marxiana sobre o salto de qualidade no nível de consciência ingênuo, limitado e alienado para um nível de consciência em si e para si, os quais não são estáticos e lineares, pois sofrem as contradições da realidade. E, são possíveis, todavia, em sintonia com transformações profundas na estrutura da sociedade. A formação é, portanto, uma das forças motrizes que dinamizam e movimentam a consciência política e ideológica dentro da Organização e já se tornou parte da cultura política através de sua práxis formativa: teoria e pratica como duas dimensões
indissociáveis de um mesmo processo.


Ocorre de maneira integral, nos acampamentos, assentamentos, centros de formação, marchas, ocupações, escolas, cooperativas, associações, centros de saúde, grupo de mulheres e jovens, teatros, na Escola Nacional, etc. Tem como característica ser massiva: envolve a base, a militância, dirigentes e quadros, e busca dar conta das várias dimensões, sempre prezando pela totalidade.


A formação política /ideológica no MST pressupõe ainda, interligar-se com os demais aspectos formativos da Organização e articula sua vinculação direta com a estratégia. Para tanto, se insere na construção do Projeto de Reforma Agraria Popular como um grande projeto alternativo de reforma agrária no campo brasileiro somado às demais transformações necessárias no campo e na cidade. Neste sentido, tem como pressuposto a sua completa conexão com as dimensões da luta pela terra, reforma agrária transformação social na perspectiva da revolução brasileira, sendo todas essas características mediadas, vinculadas e interligadas entre si.


Busca fortalecer internamente as dimensões da Organicidade, desde os
princípios organizativos, as linhas políticas, as instancias, setores, etc., e possibilita, em conjunto com os mesmos, uma síntese de como a formação é pensada e desenvolvida em todos os níveis no conjunto do MST.


A formação está ligada à necessidade de formação de militantes, dirigentes,
quadros, capazes de interpretar a complexidade histórica (desde a grave crise econômica do capital, aprofundamento do imperialismo sobre as comunidades do mundo, a barbárie, o aumento do ódio/intolerância, a crise ambiental, a expropriação dos territórios de comunidades tradicionais, o reacionarismo de determinadas religiões, o genocídio sobre os trabalhadores pobres, negros, mulheres, jovens, imigrantes, étnica,
as questões LGBTs, etc.).


Nestes tempos de nazi-fascização da cultura e da ideologia, sobretudo, se faz necessário atuar fortemente na desconstrução de elementos simbólicos, de formação do sentido comum dos trabalhadores e de sua visão de mundo, construindo, como propõe Gramsci, uma filosofia crítica, elaborada e construída pelo Intelectual Orgânico coletivo. É nesta trincheira que um dos elos mais fortes da disputa de projeto atualmente se dá: a “batalha das ideias”. O atual momento exige necessariamente a verdadeira batalha de ideias no seu sentido genuíno.

Para tanto, importante organizar a atuação de militantes agitadores, propagandistas e organizadores, como propunha Lenin – dado que se faz necessário o enraizamento político crítico no meio das massas, nas diversas formas de organização política e social da classe – a construção de elos intermediários de setores produtores e irradiadores de uma cultura política de resistência.


Importante ressaltar que a experiencia de formação nos diversos âmbitos
acumulou na construção de um programa e sistematizou proposta curricular para os principais cursos que fazem parte de suas demandas formativas. O Movimento Sem Terra bebe na fonte da teoria crítica marxista de alguns autores clássicos e contemporâneos que influenciam sobremaneira a sua práxis política.


Em seus cursos propõe referencial teórico metodológico que compõe a base curricular dos programas de formação, o qual dialoga com os vários autores desde a realidade brasileira, mas também latino-americana e mundial. A Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em sua proposta curricular nos diversos cursos e em sintonia com o pensamento destes autores, possibilita a formação de militantes das organizações populares do Brasil e de várias partes do mundo.


Propõe a interdisciplinaridade das diversas áreas do pensamento, de maneira que dialetiza os conceitos, ressignifica o arcabouço teórico presente nas academias, confere função social ao conhecimento para que não seja infértil e improdutivo, mas que contribua efetivamente com os dilemas históricos teóricos/práticos da luta objetiva em seus desafios, limites, possibilidades do devir histórico, e acima de tudo, para que tenha utilidade para a vida, para a formação Humana e para o avanço do socialismo, projeto societário defendido pelo MST.

É sobretudo neste aspecto do método do materialismo histórico dialético que Caio Prado tem sua grande contribuição a militância do MST, pois trata-se de um destes intelectuais militantes que permeiam as atividades formativas devido a sua originalidade e capacidade de utilizar a ferramenta do método marxista de análise da realidade, por meio do qual produziu monumental analise da realidade brasileira.


Seu pensamento se fundamenta nos elementos concretos da formação econômica, política, social, cultural, da questão agrária, entre outros, os quais trazem elementos profundos sobre o Brasil, desde a estrutura econômica do sistema colonial, com base na grande exploração voltada para o mercado externo; a construção do projeto político/ideológico burguês com base na hegemonia da dominação de classe burguesa.


Analisou a formação social do povo brasileiro: a herança indígena, escrava negra, o colono pobre imigrante, os trabalhadores pobres em geral que formam o proletariado rural e urbano no Brasil, bem como, tratou em suas obras, da essência de um Brasil colônia que perpassa historicamente por processos longos de mudanças e rupturas, e que apesar da independência política que deveria pôr fim ao projeto de colonização, manteve as raízes estruturais de um passado, cuja herança é escravocrata e assentada no latifúndio, sem a construção de um projeto de nação voltado para os reais interesses e necessidades do povo brasileiro.


Explicita em seu pensamento as principais contradições da realidade brasileira e aponta mudanças necessárias, dadas as características e natureza a qual tem origem. Caio Prado Junior é um destes pensadores/lutadores autênticos que fazem parte do referencial teórico e da práxis política do MST, uma vez que sua produção intelectual e ação pratica militante se fundem e criam identidade com a militância Sem Terra.


Uma de suas importantes contribuições que permeiam os dilemas das lutas
atuais da classe trabalhadora, da esquerda, e da estratégia, é sem dúvida, para além de suas obras, e para além da pedagogia coerente de seu exemplo revolucionário, o exercício constante de aprimorar o método de análise, pois para ele, o método de análise marxista não deve ser mecanicamente aplicado ou adaptado a diferentes situações metafisicamente, e sim assimilado e compreendido em suas determinações e leis gerais específicas, como um sistema orgânico, apreendido, desenvolvido, exercitado como um método vivo, permeado pela práxis, no sentido de interpretar a realidade profundamente em sua essência e transformá-la de acordo com os desafios de seu tempo histórico.


Nestes tempos de aprofundamento do imperialismo, de subordinação da questão agrária, especialmente de expropriação dos camponeses, de centralização, concentração e acumulação de capitais por parte do capital agrário, bancário e industrial, de vinculação da agroindústria ao capital financeiro, às grandes empresas e corporações transnacionais, de destruição ambiental, superexploração do trabalho, morte da biodiversidade, de produção destrutiva a partir da agricultura capitalista, todo este contexto sobre a questão agrária, confere ainda maior vigor e seu pensamento se torna extremamente atual.


*Selma Santos é do setor de formação do MST