Empresários dominam o norte de Minas Gerais com drones e ameaças

Moradores relatam que a disputa pela água se assemelha às obras brasileiras de Grande Sertão: Veredas e Bacurau
Lagoa Juazeiro (à esquerda) seca devido à barragem da Brasnica Frutas Tropicais, que impede o trânsito de água. Foto: Fernando Martinho

Por Daniel Camargos, do norte de Minas Gerais
Da Repórter Brasil

Dois mega empresários – o maior produtor de bananas do país e um sócio de três dos principais supermercados de Minas Gerais – são apontados por moradores de quatro comunidades tradicionais como mandantes de ameaças na disputa pelas terras localizadas nas margens do rio São Francisco, em Itacarambi e Januária, no norte de Minas. Entre as estratégias de intimidações estão funcionários armados, abordagens agressivas e o voo constante de drones vigiando os passos dos quilombolas e vazanteiros.

O empresário que disputa as terras com as comunidades quilombolas de Croatá, em Januária e Cabaceiras, em Itacarambi, é Walter Santana Arantes, que além de ser um dos maiores latifundiários da região, é sócio de três das maiores redes de supermercados mineiras: EPA, BH e Mineirão.

Já quem está em conflito com os moradores das comunidades vazanteiras de Barrinha e Maria Preta, em Itacarambi, é a Brasnica Frutas Tropicais, empresa fundada por Yuji Yamada na década de 1960. Yamada nasceu no Japão e foi o primeiro japonês a ser prefeito de uma cidade brasileira. Entre 2013 e 2016, foi o chefe do executivo de Janaúba, no norte de Minas. Com cerca de 2 mil hectares plantados na região, a empresa comercializa 3 mil toneladas de frutas por semana.

“Perturbam a gente demais. Já mandaram a polícia para nos intimidar”, reclama Celso Lourenço dos Santos, morador da comunidade de Barrinha, em litígio com Yamada, da Brasnica Frutas Tropicais. De acordo com os moradores de Croatá, o empresário supermercadista Walter Arantes também usa métodos semelhantes de intimidação. “Ele [Arantes] fala que é dono do norte de Minas todo. Coloca os capangas e os vaqueiros para passarem zombando da gente. Ficam falando que temos que fazer acordo para sair da área ou então teremos que sair na marra”, afirma o morador de Croatá, Arnaldo da Silva Vieira.

Os moradores das quatro comunidades se sentem vigiados por drones, que sobrevoam suas casas e plantações. “Começaram a aparecer uns drones que a gente não sabe de onde vêm”, reclama Enedina Souza Santos, de Croatá. A associação com o enredo do filme Bacurau é imediata. Na ficção – dirigida e escrita por Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles –, os moradores de Bacurau são vigiados por drones.

OS MORADORES DAS QUATRO COMUNIDADES SE SENTEM VIGIADOS POR DRONES, QUE SOBREVOAM SUAS CASAS E PLANTAÇÕES

DISPUTA PELA ÁGUA

Assim como na ficção, outro problema é a disputa pela água. Adauto Gomes de Sá estica os braços e espalma as mãos para mostrar o tamanho dos peixes que tinham na lagoa do Juazeiro, na comunidade vazanteira de Maria Preta. Não tem mais. A lagoa está seca, pois uma barragem construída pela Brasnica Frutas Tropicais impede que a água chegue na lagoa, mesmo nos períodos de chuva.

“Não desce água e não desce peixe. Não posso irrigar e nem dar água para minha criação beber”, lamenta Sá, que sustenta a família criando cabras. A Repórter Brasil entrevistou, em dezembro, o vazanteiro onde seria o fundo da lagoa – uma área com capim seco, que mais parece um pasto. “É o quarto ano que a lagoa não enche. Aqui era para estar com a profundidade de dois metros”, detalha. Sem a água que “vazava” do rio, Sá não consegue plantar na margem e fica exclusivamente dependente da criação de cabras para sobreviver.

Em março, depois das fortes chuvas em Minas Gerais e da reportagem questionar a Brasnica Frutas Tropicais, a água foi liberada da barragem e chegou na lagoa.

A comunidade vazanteira de Maria Preta é vizinha de outra comunidade, conhecida como Barrinha. Ambas são afetadas pelo Projeto Jaíba, uma iniciativa do governo mineiro que atraiu para região empresários interessados em produzir frutas usando a irrigação de canais provenientes do rio São Francisco.

Os moradores de Maria Preta e Barrinha estão lutando pelo reconhecimento como tradicionais, pois se identificam como vazanteiras (que plantam nas vazantes do rio nos períodos de seca). Porém, com a paralisação do processo de demarcação das margens que era realizado pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU), as comunidades estão em um limbo legal.

Nenhuma das duas recebeu o Termo de Autorização de Uso Sustentável, que é o primeiro passo do processo para ter direito de viver e produzir nas margens do rio. A pressão dos ruralistas e a mudança de política com a chegada do governo do presidente Jair Bolsonaro deixaram as duas comunidades vulneráveis às investidas de empresas e fazendeiros, que buscam na Justiça – e com ameaças – a reintegração de posse.

Casal, da comunidade Maria Preta, relata falta d’água desde que a Brasnica barrou a cheia do rio para irrigar suas plantações de banana. Foto: Fernando Martinho

‘NÃO HÁ NEGOCIAÇÃO POSSÍVEL COM A COMUNIDADE’

A Brasnica Frutas Tropicais não reconhece os moradores da Barrinha como uma comunidade tradicional. “Não há negociação possível com a comunidade Barrinha por se tratar de ocupação ilegal e ilegítima, em área de proteção ambiental que tem sido degradada pelos invasores”, afirma o gerente administrativo da empresa, Jônatas Percídio.

A empresa já teve duas decisões judiciais favoráveis para reintegração de posse, mas, segundo o gerente, há uma “novela processual” com indefinição sobre o juízo competente, se é a Justiça estadual ou federal.

Percídio informa também que as captações de água da empresa seguem as determinações da Agência Nacional de Águas (ANA) e que a barragem construída pela Brasnica não causa prejuízo ou dano ambiental. “As alegações dos ocupantes da comunidade Maria Preta são totalmente sem fundamento”, afirma. Leia aqui a íntegra da resposta da empresa.

Um dos líderes da comunidade Maria Preta, Reinaldo Pereira da Silva, percebeu uma mudança no tom das ameaças desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu o governo. “Eles [fazendeiros] vêm para cima, andam armados e mostrando que estão armados”, completa.

PARCERIA COM POLICIAIS

Além das ameaças, os moradores das comunidades reclamam da parceria entre policiais e empresários. “Nunca vi esse negócio de fazendeiro ou gerente andar junto com a polícia”, reclama Enedina Souza Santos, de Croatá. A ligação das polícias com os fazendeiros é explicitada pela participação do secretário de Justiça e Segurança Pública do governo mineiro, general da reserva Mário Lúcio Alves Araújo, em um grupo chamado Segurança no Campo, que reúne 300 fazendeiros e foi denunciado como uma milícia rural.

Questionado se participa do Segurança no Campo, Arantes respondeu: “Sou uma pessoa evangélica, temente a Deus e por princípios religiosos não participo de qualquer grupo e nunca ouvi falar disso”.

Arantes é também vice-presidente da Associação Mineira de Supermercados (Amis) e sócio do Supermercado BH, que tem 200 lojas em Minas Gerais, e da DMA distribuidora, que engloba os supermercados EPA e Mineirão, com 148 unidades em Minas e no Espírito Santo, sendo o sétimo maior grupo supermercadista do Brasil.

Ele chegou a ser um dos 16 presos, em 2018, na Operação Capitu, da Polícia Federal, em um suposto esquema de corrupção envolvendo o Ministério da Agricultura. Também foram detidos na mesma operação o empresário Joesley Batista, sócio da JBS e Antônio Andrade, que era vice-governador e foi ministro da Agricultura entre 2013 e 2014.

Ao ser questionado se pessoas contratadas por ele ameaçam os quilombolas, Arantes respondeu: “Desconheço totalmente essa informação, mas caso estes fatos sejam comprovados judicialmente, serão sumariamente demitidos. Sou contra qualquer tipo de violência”.

‘PASSARAM DOIS MOTOQUEIROS AQUI E GRITARAM: SEM-TERRA TEM É QUE TOMAR BALA NA CARA’, CONTA O PESCADOR LUCIANO JOSINO DE ARAÚJO

Pescador Luciano na sua casa na comunidade Cabaceiras em Itacarambi, MG.
Foto: Fernando Martinho

ARMA NO BANCO DE TRÁS

“Eles [funcionários de Arantes] ficam passando de caminhonete com os capangas mostrando a arma no banco de trás”, descreve Enedina Souza dos Santos, de Croatá. “Isso é para gente se sentir amedrontado”, completa.

Na comunidade quilombola de Cabaceiras, em Itacarambi, os relatos são parecidos. “Passaram dois motoqueiros aqui e gritaram. ‘Sem-terra tem é que tomar bala na cara’”, conta Luciano Josino de Araújo. Ele diz que as ameaças são constantes. “Já me ameaçaram várias vezes. Dizem que vão me pegar na rua”.

Em meio a ameaças, ataques e vigilância de drones, em uma violência que vai de Grande Sertão: Veredas a Bacurau, Reinaldo Silva, da comunidade Maria Preta, segue o protocolo de segurança de Zumbi, líder do quilombo dos Palmares. Ele só se locomove nas estradas e pelo rio durante a noite, para se proteger na escuridão. “Um cara bom de tiro, que eles [fazendeiros] têm condição de pagar, pode me matar com 200 metros de distância. Na barroca de um rio é fácil demais. Você está dentro da canoa e morre”.

*Edição original por Ana Magalhães