Crise ambiental tem relação com surgimento de novas epidemias

Desmatamento, modelo agroindustrial de produção de alimentos e criação de animais causam desequilíbrio na natureza com a queda de barreiras naturais e mutações genéticas

Nos quatro primeiros meses de 2020, a Amazônia teve 1.703 km² de área desmatada.
Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real/Fotos Públicas

Da Página do MST

A crise sanitária causada pelo aparecimento do novo coronavírus (Covid-19) pode ser só a primeira das futuras epidemias com risco de surgirem no mundo se o modelo atual de agricultura e pecuária industrial não for revisto. É o que aponta a especialista Silvia Ribeiro, do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC). Para ela, as grandes concentrações de animais confinados, nos quais são continuamente administrados antibióticos, é um terreno fértil de produção de mutações de vírus e bactérias que se espalham pelo mundo através do comércio.

“Das doenças infecciosas, causadas por vírus ou bactérias nas últimas décadas, 75% tem origem animal. Isso tem a ver, por exemplo, com a gripe suína, a gripe aviária, que estão diretamente ligada à agropecuária industrial. São lugares de grandes assassinatos, onde se facilita a mutação de vírus rapidamente, que entram em contato com humanos”, denuncia.

Para a especialista, o sistema agropecuário agroindustrial, além de estar por trás de mais da metade dos fatores que causam doenças infecciosas ou não transmissível, é uma das causas do aparecimento de novas doenças infecciosas nas cidades e povos rurais, devido à destruição que provoca nos ecossistemas.

Acompanhando este modelo, o desmatamento de grandes áreas para pasto, além da produção de monoculturas como soja, milho e algodão, também representam um risco ao desequilíbrio ambiental. Segundo apontam os dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), só nos quatro primeiros meses de 2020, a Amazônia teve 1.703 km² de área desmatada, número maior que o estado de São Paulo.

A destruição do bioma de florestas brasileira também se agrava com as queimadas no pantanal, desde julho deste ano. Conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o fogo no Pantanal já destruiu 15% da região, com 2,3 milhões de hectares da maior área úmida do mundo. Segundo o instituto, as queimadas registradas neste ano são as maiores desde o início dos registros em 1998. São quase 16 mil focos de incêndio, o pior ano da série histórica.

Uma reportagem do Repórter Brasil de setembro último evidencia a relação direta entre o modelo de produção de animais e o latifúndio com o avanço do fogo no Pantanal. O levantamento aponta que as queimadas tiveram início justamente em cinco fazendas de propriedades rurais voltadas para pecuária, localizadas no município de Poconé-MT (100 km da capital Cuiabá). Somente nessas fazendas foram destruídos 116.783 hectares, uma área equivalente à cidade do Rio de Janeiro.

Portanto, a expansão das fronteiras agropecuárias industrial é um dos principais fatores de desmatamento de florestas naturais. “No Brasil e na América Latina é um dos números mais altos de desmatamento, até 80% se deve à expansão da agropecuária. Dessa agropecuária, mais de 70% das terras agrícolas é usada para pasto ou para produzir foragem industrial, para animais em confinamento”, expõe Silva Ribeiro.

Expansão agropecuária é responsável por 80% do desmatamento no Brasil. Foto: AFP

Por outro lado, também é um mito a ideia de que a cadeia agroindustrial de alimentação pode alimentar a população mundial. Apesar de gerar um grande volume de produção, a exemplo de grãos, grande parte dessa produção vai para alimentação de animais na agropecuária, conforme argumenta a especialista Silvia. “Segundo um cálculo que fazemos no grupo ETC, num estudo que trabalhamos há 13 anos, somente 24% do que produz a cadeia industrial chega realmente a alimentar as pessoas”.

Ela argumenta ainda que esses alimentos também possui baixo valor nutritivo e podem estar contaminados com resíduos de agrotóxicos, o que gera doenças. Já que para mantém a conservação e durar por mais tempo são adicionados aos produtos aditivos, como colorantes, sanatorizantes, de elementos artificiais, entre outros químicos e venenos. Paralelo a isso, a cadeia agroindustrial de alimentos é extremamente concentrada, dominada por poucas empresas transnacionais, desde as sementes até os supermercados. No caso das sementes, por exemplo, “seis empresas: Monsanto, DuPont, Bayer, Syngenta, Dow Chemical e Basf, controlam quase 70% do mercado mundial e dos agrotóxicos, e 100% do mercado de sementes transgênicas”, conforme levantamento do grupo ETC.

Mas esse modelo de concentração e disputa de terras, destruição dos bens naturais e produção de doenças segue dominante no Brasil e ganha mais força com o governo Bolsonaro, que se elegeu com apoio do agronegócio. A bancada do Boi no Congresso Nacional, que reúne latifundiários e defende os interesses do agronegócio, cobra a conta com a pressão para liberação da mineração em larga escala, inclusive em terras indígenas demarcadas.

Os ruralistas também pressionam pela aprovação da Medida Provisória da Regularização Fundiária (MP910), conhecida como MP da Grilagem, que prevê a legalização de terras, em sua maioria na região Amazônica, em posse de grileiros, que desmatam ilegalmente florestas para transformar em áreas de pastagem e forjam documentos de propriedade privada dessas áreas públicas. Se aprovada, a MP da Grilagem vai regularizar a grilagem de terras, considerada até então crime e aumentar o desmatamento e a exploração dos bens naturais.

“Essa PL é parte dessa nossa neocolonização. Estamos sendo, de novo, devorados em uma lógica em que somos uma colônia de exportação de minérios, de solo, no sentido de exportar grãos. A gente exporta em toneladas carne, soja, milho, algodão, cana e tudo isso vai junto com nossa água, nossos territórios e povos tradicionais. Vai junto a nossa possibilidade de desenvolvimento e construção de uma vida digna para todo nosso povo”, lamenta a educadora popular do MST e integrante do Movimento de Trabalhadores Desempregados (MTD), Eliane de Moura.

MST pratica modelo alimentar alternativo e saudável

A rede alimentar camponesa alimenta mais de 70% da população mundial. Foto: Gabriel Bicho

O que pesquisas e experiências desenvolvidas ao redor do mundo pelos camponeses, agricultores familiares, pequenos agricultores e pesquisadores têm demonstrado é que a maioria dos alimentos que abastecem a mesa da população mundial são produzidos por uma rede camponesa de agricultores, que usam áreas de terras menores e menos bens naturais. A rede é composta por movimentos e organizações populares da Via Campesina e uma diversidade de grupos de camponeses.

“A rede alimentar camponesa chega a alimentar a mais de 70% da população mundial, com menos de 25% dos recursos, menos de 20% de água e menos de 10% de combustível fósseis. E também previne as doenças, tanto pelo consumo de alimentos saudáveis como pela restauração dos ecossistemas,”, ressalta Silvia Ribeiro.

Sem Terra pretendem plantar 100 milhões de árvores em dez anos. Foto: Dowglas Silva

Nessa proposta, o MST tem intensificado nos últimos anos a produção de alimentos saudáveis, com base de produção agroecológica e livre de agrotóxicos, aliadas à preservação da biodiversidade. Atualmente o Movimento desenvolve o Plano Nacional “Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis”, com o plantio de mudas em vários assentamentos, acampamentos e comunidades rurais. A previsão é plantar 100 milhões de árvores em todos os estados brasileiros em dez anos, e recuperar áreas degradadas com a criação de agroflorestas e quintais produtivos.

A produção de alimentos, o desenvolvimento de sistemas agroecológicos e o plantio de árvores, promovido por famílias assentadas, comunidades, cooperativas e as várias formas coletivas camponesas e familiares têm se tornado essencial, principalmente nesse período de pandemia, para alimentação, preservação ambiental e saúde da população. Mas, segundo Sílvia Ribeiro, é preciso fortalecer esse tipo de agricultura com a criação de políticas públicas.

“Há de se reconhecer, fortalecer e apoiar esse tipo de agricultura com políticas públicas. Por outro lado, avançar em projetos, como estão fazendo, por exemplo, na Via Campesina e o MST. É de um valor incrível, porque tem um valor em si mesmo, mas também mostra um caminho que é o tipo de alimentação que necessitamos”, ensina.

A pesquisadora também reconhece que a necessidade da Reforma Agrária, além de ser um direito dos trabalhadores rurais, se tornou “uma necessidade imprescindível para enfrentar as crises que vivemos”. Nesse caminho, a produção de alimentos saudáveis e a preservação ambiental se apresentam como saída para combater o modelo agroindustrial que gera doença e morte, e garantir a saúde e resistência dos trabalhadores na atualidade.

“A riqueza da biodiversidade deve estar a serviço da saúde da humanidade e não do lucro de meia dúzia de empresas multinacionais. Não há como defendermos a vida da classe trabalhadora sem defender o meio ambiente, é o único lugar para onde podemos ir. A terra pode viver sem nós, mas nós não podemos viver sem a terra, então precisamos defendê-la”, conclui Eliane.

*Editado por Fernanda Alcântara