Ferrovia da soja é garantida com o uso de suspensão de segurança

A suspensão de segurança é uma medida do processo judicial que passou a ser utilizada no período da ditadura militar no Brasil

Por Por Pedro Martins e Luciana Pivato*
Do Justificando

Parte de conjunto de obras de infraestrutura para escoamento de grãos do chamado Plano Arco Norte, a Ferrogrão (EF 170) já foi anunciada como prioridade nacional pelo governo Bolsonaro e o projeto avança apesar de todas as denúncias de irregularidades. A proposta de ferrovia que ligará a cidade de Sinop (MT) a Miritituba (PA) está sendo garantida judicialmente através do instrumento jurídico chamado “Suspensão de Segurança” em diferentes subseções da Justiça Federal no Pará e no Mato Grosso.

A suspensão de segurança é uma medida do processo judicial que passou a ser utilizada no período da ditadura militar no Brasil, com a edição da Lei nº. 4.348 de junho de 1964, e se amplia com a Lei de liminares contra o Poder Público (Lei nº. 8.437/1992). Ocorre que, uma vez concedida a suspensão de segurança, a parte prejudicada fica sem possibilidade de reverter a decisão, até o trânsito em julgado da sentença. A MP nº 2.180-35 de 2001, que alterou dispositivos da Lei 8.437/92, elimina a possibilidade de recurso.

Na Amazônia, a suspensão de segurança já foi utilizada para garantir judicialmente Usinas Hidrelétricas (como a UHE Belo Monte) e ferrovias ( a exemplo da Estrada de Ferro Carajás) sob argumento de defesa da ordem pública, e em detrimento da biodiversidade, dos direitos territoriais e do direito de consulta prévia, livre e informada.

Em geral, para casos de grandes empreendimentos na Amazônia, as suspensões ocorrem em Ações Civis Públicas movidas por associações ou pelo Ministério Público. Por exemplo, uma vez conferida decisão favorável para impedir que o licenciamento ambiental de uma obra seja encaminhado, a União recorre com pedido de suspensão de segurança a uma instância superior da Justiça, e se deferido for o pedido de suspensão, desta decisão não caberá recurso.

Um projeto contestado

No caso da Ferrogrão, cinco Ações Civis Públicas já foram impetradas contra a realização do empreendimento. Uma dessas ações foi ajuizada pelo Sindicato Rodoviário contra a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) na Justiça Federal em Belém em 2017. A ação  visava suspender qualquer procedimento prévio atinente à construção/concessão da ferrovia, até que fossem feitos estudos aptos a abranger todos os impactos ambientais e sociais no trajeto e seu entorno.

Atacava-se principalmente a fragilidade do estudo preliminar (diagnóstico ambiental que faz parte do Estudo de Viabilidade Técnica Econômica e Ambiental – EVTEA) que seria apresentado pela ANTT, no âmbito da audiência nº 14 de 2017 em Itaituba, Oeste do Pará, que deixou de ocorrer após manifestação de indígenas do povo Munduruku. Os indígenas, assim como as comunidades tradicionais do Tapajós, reivindicavam a consulta livre, prévia e informada sobre a realização do empreendimento ferroviário.

Enquanto o processo tramitava na Justiça, a Secretaria-Geral da Presidência da República editou a Resolução nº 45, de 02 de julho de 2018, criando o Plano Nacional de Logística reforçando a criação da Ferrogrão. No mesmo ano, o juízo da 9ª Vara da JFPA declarou a ilegitimidade do Sindicato em propor a ação, por não guardar pertinência com os fins associativos os pleitos desta demanda. Porém, o MPF passou a integrar o processo sendo novo autor da Ação. A principal questão a ser tratada pelo Poder Judiciário era a ordem das etapas de elaboração de estudos técnicos, sejam estudos de viabilidade, Projeto Básico Ambiental (PBA) e o Estudo de Impacto Ambiental – EIA.

Em 24 de outubro de 2018, o juízo de Belém ordenou a suspensão do Processo Administrativo instaurado no âmbito da ANTT para a regulação da concessão da Ferrogrão, e tornou sem efeito as sessões presenciais. As falhas nos estudos técnicos e a falta de participação foram evidente e foram apreciadas pela justiça para tomada desta decisão.

No entanto, logo em dezembro de 2018 foi deferido o recurso da ANTT para Suspensão de Liminar no Tribunal Regional Federal da 1ª Região pelo Desembargador Carlos Moreira Alves nos seguintes termos: “como sustentado pela ANTT, vejo presente, na hipótese, o requisito da grave lesão à ordem administrativa, a autorizar sejam sobrestados os efeitos do ato jurisdicional questionado”. A decisão expõe o quanto o Poder Judiciário tem instrumentos para atuar em desfavor de Direitos Humanos.

Em maio de 2019 foi aberto edital de Regime da Contratação da Estatal (RCE) nº 01 de 2019 da Empresa de Planejamento e Logística, do Governo Federal, para elaboração do EIA da EF 170, tendo como anexo o projeto básico que identifica as TIs Praia do Índio e Praia do Mangue. A Concremat, empresa do Grupo chinês CCC demonstrou interesse. Concluído o estudo, haverá decisão do Tribunal de Contas da União para edital de concessão da ferrovia.

Uma nova ACP foi ajuizada em 2019 pela Associação Comunitária de São Francisco de Assis, no município do Trairão, na BR-163, para que o processo fosse suspenso até a realização de novas audiências informativas. Apesar da liminar favorável, no dia  24 de setembro de 2019, o TRF1 acatou novo pedido de suspensão de liminar formulado pela ANTT atacando a decisão. A segunda suspensão concedida reafirma o potencial antidemocrático da medida. 

Se nem as reuniões meramente informativas podem ser realizadas, qual a garantia de que direitos fundamentais serão observados durante os estudos e ainda mais na possível construção da ferrovia? Nenhuma comunidade ou aldeia foi até hoje consultada, como prescreve a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT),  sobre esse empreendimento dito como certo. Sem mais possibilidades de atuação no âmbito do Poder Judiciário por força da suspensão de segurança, os povos indígenas demandam que o TCU observe a violação do Direito de Consulta prévia, livre e informada atinente ao Licenciamento e Concessão da EF 170. 

Justiça e Empresas

Relevante também analisar o caso da Ferrogrão e o uso do instituto da Suspensão de Segurança à luz da expansão política da justiça. É inegável que o Poder Judiciário cada vez mais aé chamado a decidir sobre demandas de grande relevância política e social. Também não se pode negar que, como ente do Estado, exerce o Judiciário uma função política. Estas premissas elevam a indispensabilidade do debate jurisdicional, inegavelmente negado em diversos litígios envolvendo  empreendimentos pelo uso das suspensões de segurança. Casos como construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte; Hidrelétrica Tapajós  e Duplicação estrada de ferro Carajás não deixam dúvidas sobre como a suspensão de segurança tem se constituído em uma estratégia das grandes empresas para capturarem o Judiciário.¹

Tratam-se de influências indevidas de setores corporativos no Judiciário, que violam o princípio da autonomia judicial, que já foram objeto de denúncias por redes e organizações que se preocupam com democratização do sistema de judicial, por exemplo, a encaminhada em 2018 à Relatoria sobre Independência de Juízes e Advogados das Nações Unidas.²

Como grandes litigantes, as grandes corporações determinaram muitos dos rumos das reformas do Judiciário, não só no Brasil, onde as principais alterações, trazidas pela Emenda Constitucional 45/2004, não tiveram por objetivo adequar a estrutura e o funcionamento do Poder Judiciário para uma atuação com padrões de cumprimento dos direitos humanos, mas sim foram dirigidas a garantir uma justiça mais célere e eficiente aos negócios financeiros. Muitas empresas não exitam em fazer uso de vias como patrocínio de eventos e pagamento de honorários para magistrados ministrarem palestras, práticas permitidas pelas Resoluções 170/2013 e 34/2007 do Conselho Nacional de Justiça, mas que são, no mínimo, antiéticas e que já foram denunciadas por organizações que reivindicam a criação de mecanismos eficazes de controle social no âmbito do sistema de justiça.³

É, pois, urgente a ampliação do debate público sobre o papel do sistema de justiça na solução de demandas de interesse da sociedade,  de maneira a superar compreensões que afastam a natureza política e as consequências sociais das decisões. O caso da Ferrogrão é mais um exemplo em que não se pode negar o uso político do instrumento da suspensão de segurança para afastar a participação das comunidades afetadas pelo empreendimento do debate jurisdicional.

*Pedro Martins é assessor jurídico da Terra de Direitos e coordenador do escritório Tapajós
*Luciana Pivato é assessora jurídica e Coordenadora Executiva da Terra de Direitos

Notas:

[1] Vejam mais em: https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/suspensao-e-seguranca-min.pdf

[2] http://www.jusdh.org.br/files/2018/04/Denuncia-JusDh-presen%C3%A7a-e-influ%C3%AAncia-de-empresas-no-Judici%C3%A1rio-brasileiro.pdf

[3] http://www.jusdh.org.br/2019/07/24/judiciario-tem-historico-de-altos-faturamentos-com-palestras/

Editado por: Gabriel Pedroza / Justificando
Maura Silva / MST