Agro é tóxico, qual é a saída?

No quarto texto da série especial “Agro é Tóxico”, falaremos sobre as soluções agropecuárias de produção de alimentos saudáveis, respeito à terra, meio ambiente, trabalhadores rurais e à saúde do campo e cidade

Assentamento Contestado, no Paraná. Foto: Wellington Lenon

Por Jade Azevedo, Lucas Souza e Antony Corrêa/ Setor de comunicação do MST Grande Região Sul
Da Página do MST

Maria Aparecida Mota Belarmindo (Cida), agricultora assentada, natural da Paraíba, e moradora do Assentamento Olívio Albani, em Campo Erê, Santa Catarina, produz seus alimentos sem agrotóxico, planta de modo consorciado: mandioca, melancia, amendoim, batatas, girassol, feijão, milho e tudo mais que precisa para subsistência. Segundo ela, seu conhecimento camponês vem de seu pai: “sou nordestina, meu pai planta assim lá no Nordeste, tudo juntinho, uma carreirinha de cada planta ao lado da outra”.

Cida e seu pai utilizam técnicas de Agrofloresta ou Sistema Agroflorestal (SAF), um conjunto de métodos que reúne agricultura e preservação ou recomposição ecológica para plantar. O sistema usa a dinâmica de sucessão de espécies e/ ou da flora nativa para trazer as espécies que agregam benefícios para o terreno assim como produtos para o agricultor. 

Thaise Martins, moradora do assentamento Contestado e integrante da Escola Latino Americana de Agroecologia Ana Primavesi (ELAA), na Lapa, Paraná, conta que na área onde mora, sua família optou por fazer um canteiro de frutas variadas e intercaladas. “Nós plantamos bergamota, pêssego, caqui, laranja e figo tudo na mesma fileira. A ideia é evitar que caso uma delas desenvolva alguma doença, não espalhe para as outras, além de aproveitar os diferentes tamanhos das árvores e tempo de crescimento delas para ajudarem no que será plantado na fileira ao lado como feijão, milho e hortaliças”, explica.

Thaise Martins. Foto: Jade Azevedo

Amandha Felix, integrante da coordenação da ELAA, explica que a cada dia é bastante evidente como a agroecologia se relaciona positivamente na reconstrução da natureza e biodiversidade, nas relações entre os seres humanos, a  natureza e os animais. “Para quem planta, tem como trabalhar uma diversidade de alimentos e isso chega também para quem recebe, seja na comercialização ou nas doações, respeitando os ciclos da natureza. Diferente do monocultivo, com a agroecologia se tem uma diversidade no cardápio”. 

Leonardo Melgarejo, agrônomo integrante do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos do Rio Grande do Sul, observa que “enquanto o agronegócio anuncia a monocultura no latifúndio, uma guerra é travada contra a natureza e a vida”. Para ele uma saída é a reforma agrária, “que distribui a terra, gera alimentos mais sadios pelo policultivo e protege a qualidade e vida do solo, da água, desenvolvendo tecnologias menos danosas ao ambiente”, conclui.

Adalberto Martins, dirigente estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Rio Grande do Sul, explica que o Movimento trabalha a agroecologia combinando as práticas tradicionais ajustadas às localidades e biomas, com conhecimentos científicos. “Estas práticas, saberes e novos conhecimentos estão recheados de lutas políticas, pois, as famílias Sem Terra [acampadas e assentadas] sabem que só a luta e a disputa política na sociedade é que geram melhores condições para a sua reprodução enquanto famílias camponesas”. 

Ele defende que é possível produzir sem o uso de insumos químicos, sejam eles os agrotóxicos ou adubos sintéticos altamente solúveis. “Isso não é algo recente, a ideologia da ‘revolução verde’ foi produzida nas décadas de 1960 e 1970 e segue nos dias atuais”, explica. O sistema agroecológico é um benefício também para o agricultor, uma vez que ele estará livre da contaminação. 

Ana Maria Primavesi, engenheira agrônoma brasileira, pesquisava a agroecologia e agricultura orgânica. Este ano se comemorou seu centenário, no dia 3 de outubro. Ela foi pioneira nas pesquisas sobre preservação do solo e recuperação de áreas degradadas, abordando o manejo do solo de maneira integrada com o meio ambiente. Suas pesquisas apontam para uma agricultura que privilegia a atividade biológica do solo. “Ele é um organismo vivo e com diversos níveis de interação com as plantas”. Não é à toa que a ELAA foi rebatizada, esse ano, de Escola Latina de Agroecologia Ana Primavesi, em homenagem à agrônoma e militante.

Adalberto Martins lembra que além de preservar a saúde do solo, “a não utilização de agrotóxico melhora a autoestima do trabalhador rural, pois, obtendo uma produção saudável, limpa de venenos, ele estará cumprindo com sua função social”. 

O que nos leva a outros dados importantes: de 2010 a 2019 mais de sete mil trabalhadores rurais foram atendidos em hospitais e diagnosticados com intoxicação por agrotóxico, dentro do ambiente de trabalho ou em decorrência da sua atividade profissional. Os dados foram obtidos via lei de acesso à informação pela Agência Pública e Repórter Brasil, do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde.  A contaminação acontece muitas vezes na aplicação do agrotóxico nas plantações, por vias respiratórias e pela pele.

A lei da vida: solo sadio, alimento sadio, ser humano sadio

Se para o meio ambiente, o camponês e a camponesa, o sistema agroflorestal é questão de saúde e vida, para o consumidor final os benefícios não são muito diferentes. Pesquisas mostram que 23% dos alimentos analisados tinham agrotóxicos proibidos ou acima do volume permitido 一 segundo relatório, feito a partir de testes em frutas e legumes entre os anos de 2017 e 2018, pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), publicado em dezembro do ano passado.

Em alguns deles a situação era ainda mais preocupante, como por exemplo a laranja. De acordo com os testes, a cada 14 laranjas vendidas nos mercados, uma tem agrotóxico suficiente para causar uma intoxicação imediata em quem a consome, causando enjoos, dores de cabeça, alteração do ritmo cardíaco e respiratório. 

A coleta de dados realizada pelas Vigilâncias Sanitárias Estaduais e Municipais em todos os estados — menos no Paraná — mostra ainda que a cada 10 alimentos testados, oito têm agrotóxicos proibidos ou acima do permitido. A goiaba, em 42% das amostras testadas estava doses acima do recomendado ou com agrotóxicos proibidos. Em seguida a cenoura com 39% de desconformidade, e tomate com 35%.

Ao ler essa pesquisa é fácil perceber que o agrotóxico não prejudica somente o meio ambiente, a água e quem trabalha diretamente com ele. O veneno segue no alimento e chega ao consumidor final durante a sua alimentação. 

Uma das lutas da Reforma Agrária Popular é o direito à alimentação saudável. Adalberto Martins  afirma que o incentivo à produção agroecológica deveria vir de políticas públicas, sobretudo aquelas que motivam os agricultores a produzirem, como investimentos em como a política de crédito rural, seja para os custeio da produção seja para o investimento em infraestrutura produtiva. Como isso não acontece, uma forma de política mais eficiente é justamente a compra da produção agroecológica em feiras, a partir de cooperativas, pequenos agricultores. 

No Paraná, a Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (Copavi), de Paranacity, região noroeste, está entre as iniciativas de comercialização de produtos agroecológicos. A cooperativa é a experiência de produção agroecológica coletiva mais antiga do estado. Criada em 1993, a partir do assentamento Santa Maria, 26 famílias produzem anualmente, numa área de 236 hectares, 350 toneladas de açúcar mascavo, 80 toneladas de melado de cana, 8 mil litros de cachaça, 10 mil quilos de panificados, 85 mil litros de leite e iogurte, 15 toneladas de hortaliças e 7 toneladas de feijão, mandioca e batata-doce, que são comercializados dentro da economia de Paranacity, em comércios, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar [PNAE].

Antônio Marcos Vignolo, coordenador do Grupo Gestor das Hortas e Frutas pela Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (COOTAP), vinculada ao MST, afirma que na região metropolitana da capital existem em torno 1.500 famílias assentadas. A Cooperativa é a responsável pela comercialização dos alimentos produzidos. “A produção principal é o arroz orgânico, mas as hortas têm um papel relevante na produção pelo contato direto que ela tem com a população, seja nas feiras, no mercado institucional [PNAE e PAA], além de promover o envolvimento político das famílias na produção de hortaliças orgânicas”, explica.

Ele ressalta que a região se organiza em grupos gestores, do arroz, do leite e das hortas. Isso engloba todas as famílias que se reúnem para discutir a cadeia produtiva, a estação, a certificação orgânica da produção. 

Ivonete Aparecida Ramos, assentada no assentamento Contestado, afirma que o retorno com a agrofloresta vem no primeiro ano. “Se você planta uma batatinha, dali quatro meses você colhe, e tudo o que você planta é assim. Isso já é um retorno para a família, que tem comida para se alimentar”.  Ela conta que segundo um estudo feito pela Escola de Agroecologia, 80% da alimentação do local vem da própria produção das famílias de camponeses. Outra parte da produção vai para a comercialização por meio da Cooperativa Terra Livre e, esse ano, uma parte foi destinada às doações em Curitiba e região. 

Assentada no assentamento Contestado, Ivotene afirma que retorno vem logo no primeiro ano. Foto: Lucas Souza

Os números da produção de alimentos da reforma agrária na região sul endossam o que diz Ivonete. Antônio Marcos Vignolo diz que atualmente na produção de hortaliças e frutas são 27 grupos envolvidos no Rio Grande do Sul, 21 com certificação orgânica. “São famílias que não utilizam nenhum insumo químico em suas produções. Que estão presentes em mais de 50 feiras da região metropolitana e que durante a pandemia a ausência das feiras deu espaço às cestas, que são encomendadas via WhatsApp e entregues em domicílio”, conclui. Em geral, no estado do Rio Grande do Sul, são aproximadamente 90 variedades de hortaliças diferentes. “Tem produtores que estão produzindo há mais de 30 anos”, conta orgulhoso. 

Melgarejo argumenta: “Podemos encarar a agricultura camponesa e a reforma agrária como um processo de desenvolvimento humano”, e não apenas como um conjunto de práticas e conhecimentos alternativos. É um espaço de construção de consciência, um caminho que não é novo, e há tempos é apontado pela natureza.

Agrofloresta: partilhar aquilo que a gente tem, saber dividir 

A coordenadora da ELAA, Amanda Felix, ressalta que o projeto que a Escola fez esse ano com as famílias do Assentamento Contestado está focada nas ações de solidariedade e doações. “Primeiramente fizemos um trabalho de base para conscientizar as famílias da conjuntura que estamos vivendo, refletindo sobre a fome, pobreza, desemprego, desigualdade social. No segundo momento, a partir da agroecologia, entender que ela também é partilha”. 

Confira fala completa de Amanda Felix, da ELAA

Ivonete Aparecida Ramos conta que desde setembro ela e outras famílias do assentamento, junto à Escola e ação Marmitas da Terra, recebem todos os sábados colaboradores da cozinha que trabalham nas hortas aprendendo sobre as técnicas de plantio e produzindo para que no fim do ano os alimentos plantados sejam doados na Ação de Solidariedade de Natal.

*Editado por Fernanda Alcântara