“Para cada 5 anos de história no Brasil, quatro foram vividos sob a escravidão”

Em entrevista, o professor Flávio Gomes fala sobre Terra, Raça e Classe na história do Brasil e como a escravidão e resistência explicam o país que o Brasil se tornou

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

O Brasil é o segundo país em população negra no mundo e a cor da maioria da classe trabalhadora brasileira é negra. Isso está refletido no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, quando observamos que a maioria das pessoas que compõe os assentamentos e acampamentos é afro-brasileira e, consequentemente, vítima do racismo combinado com o preconceito de classe.

Esse é alguns dos motivos pelos quais o MST coloca em sua centralidade os temas Terra, Raça e Classe, incluindo um grupo de estudos com o mesmo nome. No mês passado, foram preparados diversos especiais sobre o mês da consciência negra, como o artigo Novembro Negro: 325 anos da morte de Zumbi, uma referência na luta pela terra e uma regravação do Canto das três raças.

Enquanto os crimes de ontem e de hoje são exemplos enfáticos do quão imbricada é a necropolítica, estruturalmente racista, a resistência negra no Brasil e seu caráter revolucionário permanece em nossa luta. No dia 20 de novembro deste ano, acordamos com o revoltante assassinato de João Alberto Silveira Freitas (40), um homem negro, morto no estacionamento do Carrefour, ao ser espancado por um segurança e um policial militar. Em Belém, Leila Arruda, candidata do PT à prefeitura de Curralinho, no Marajó, foi assassinada a facadas e pauladas na tarde de ontem (19), vítima de feminicídio. O autor do crime é o ex-marido, de quem ela estava separada há 3 anos e de quem sofria perseguições.

Para entender mais sobre como a história do Brasil está conectada com a violência contra essas populações, entrevistamos Flávio Gomes, professor dos programas de pós-graduação em História Comparada (UFRJ) e História (UFBA). Flávio Gomes desenvolve pesquisas em história comparada, cultura material, escravidão e pós-emancipação no Brasil, América Latina e Caribe, especialmente Venezuela, Colômbia, Guiana Francesa e Cuba. Ele atua no Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais e pós-coloniais (LEHA) do Instituto de História da UFRJ e foi agraciado duas vezes com o Prêmio Literário Casa de Las Américas, do Instituto Casa de las Américas (Cuba), sendo menção honrosa em 2006 (pelo livro “A hidra e os pântanos”) e o vencedor em 2011 (pelo livro “O alufá Rufino”, em coautoria com João José Reis e Marcus Joaquim de Carvalho).

Leia abaixo a entrevista:

MST: O que te levou a estudar, especificamente, quilombos e campesinato negro?

Flávio Gomes: Eu sou carioca. Minhas experiências ancestrais são referências. Do lado materno, minha família – mãe, tios e avós – foi camponesa no Nordeste, Alagoas. Meu avô nasceu livre – antes da lei de 1871, Lei do Ventre Livre – filho de um homem africano e uma mulher negra livre. Ele viveu assim numa sociedade cercada de escravidão. Já minha avó – cerca de 30 anos mais jovem – era descendente de indígenas na região. Eles foram camponeses negros “moradores” (como eram chamados os pequenos lavradores e meeiros que moravam nas terras dos grandes coronéis) no interior de Alagoas. Uma parte da família vai migrar para a Paraíba. Outra parte migra para o Sudeste – de pau de arara (grandes caminhões que levavam migrantes do Nordeste para o Sudeste até a década de 1970) – para fazendas do Paraná em fins dos anos 50. Depois se mudam para a região do ABC (especialmente São Bernardo) onde seriam trabalhadores (especialmente carpinteiros, marceneiros e pedreiros) de indústrias de automóveis que surgiam na década de 60. Minha mãe nasceu em 1928 (está viva) – filha caçula – e migrou direto de Alagoas para o Rio de Janeiro em meados da década de 1950.

Da parte paterna, a dimensão africana e escrava dos meus antepassados ainda são mais evidentes. Minha trisavó africana chega ao Rio de Janeiro por volta de 1760 (aparece na documentação como origem do “gentio” da Guiné). Será levada para fazendas dos monges beneditinos (ordem religiosa de São Bento) em Campos dos Goitacazes. Ali vão constituir pelo menos três gerações de escravizados, sendo minha bisavó alforriada em 1870. Famílias negras continuariam morando nas áreas rurais do norte fluminense, havendo uma migração para o Rio de Janeiro no início da década de 1940. Meu pai nasceu em 1922 e veio para o Rio de Janeiro antes da segunda guerra mundial.

Assim, juntavam-se as experiências africanas, negras, camponesas, rurais e migrantes das famílias materna e paterna. Meus pais tinham instrução primária mínima. Meu pai virou funcionário público (agente de portaria) e minha mãe ficou como empregada doméstica (costureira).

Estudei em escola pública (éramos três irmãos, sendo eu o mais novo). Aos 14 anos, comecei a trabalhar de carteira assinada (entregador de jornal) em 1978, depois trabalhei de officeboy e depois servi o quartel entre 1982 e 1983, plena fase final da ditadura militar.

As temáticas raciais foram muito influenciadas pelas minhas irmãs. Com a mais velha – Cacilda – acompanhei a última fase dos bailes de soul music, efervescência da juventude negra nos anos de 1970. No caso da História, a grande inspiração foi a minha irmã Olivia (Olívia Cunha, antropóloga, professora do Museu Nacional da UFRJ). Ainda assim demorei a entrar na universidade. Terminei o segundo grau em 1981, mas demorei cinco anos (vestibulares fracassados) para entrar na universidade pública em 1986, com 23 anos. Em termos de movimento social, acompanhava na adolescência alguma coisa via minha irmã (ela estava no Riocentro naquele atentado à bomba). Quando estava no quartel já me interessei e me associei ao IPCN (Instituto de Pesquisas das Culturas Negras) em 1982. Fiz a graduação – UFRJ e UERJ – entre 1986 e 1989. Em 1990 fui para a Unicamp onde terminei o mestrado em 1993 e o doutorado em 1997.

O termo “campesinato” no Brasil é objeto de polêmicas na academia. O principal argumento alega que esta noção não serve para explicar nossa realidade, pois seria uma categoria típica de um modo de produção não correspondente à formação histórica e econômica brasileira. Como você vê esse debate? E qual a importância de se estudar o campesinato e, especificamente, o campesinato negro no Brasil?

Flávio Gomes. Foto: IEA/USP

Na verdade, a categoria “campesinato” foi mais operada numa lógica política e conceitual até os anos de 1970. Foi um movimento intelectual e acadêmico super importante, posto que a questão agrária atravessasse a metade do século XX como questão fundamental para pensar o Brasil e suas expectativas de desenvolvimento.

Mas faltava história (no sentido recuperação contextual) na recuperação dos mundos agrários no Brasil. Importantes estudos das décadas de 1960 e 1970 sequer se deram conta de que os camponeses que eles estudavam em várias partes do Nordeste eram descendentes (segunda geração) dos remanescentes de escravizados e libertos do final do século XIX. Era quase uma ironia, mas muitas das vezes se estudava o camponês sem reconhecer o óbvio: muitos eram negros e tinham histórias que passavam pelas experiências africanas de escravização no Brasil. Debates e modelos teóricos fundamentais – ainda mais numa atmosfera de luta ideológica – foram importantes, mas ainda assim houve silêncios sobre a dimensão étnica, histórica e escravista e da pós-abolição nestas experiências de formas e formações camponesas no Brasil colonial e pós-colonial. Um campesinato supostamente atrasado, sem cor e sem história vai ceder a vez para repensar às formas camponesas negras da escravidão e da liberdade no Brasil.

Em termos intelectuais foram os movimentos anti racistas – os movimentos negros ainda no período da ditadura militar e na redemocratização – que organizaram a agenda para a inserção de abordagens que considerassem a história da escravidão, da pós-emancipação e os aspectos raciais para pensar a questão agrária no Brasil. Não foi uma concessão do mundo acadêmico. Foi uma conexão, interlocução e construção de agendas acadêmicas, teóricas e fundamentalmente dos movimentos sociais. Quem eram os camponeses que estavam em Canudos no final do século XIX? Quem eram aqueles que estavam nas Ligas Camponesas nas décadas de 1950 e 1960? Quais os cenários e personagens alcançados pela legislação do Funrural e outras? Fundamentalmente roceiros negros, mestiços e descendentes das populações rurais de negros escravizadas do século XIX e antes.

O Quilombo de Palmares foi, certamente, o maior e mais duradouro quilombo que já existiu na história brasileira. O MST tem na experiência de Palmares, de Zumbi e na organização quilombola, uma referência de luta, organização e resistência, por isso nos sentimos parte dessa tarefa histórica de levar adiante esta luta, como avaliava o professor Clóvis Moura. O que foi essa forma de auto-organização negra conhecida como Quilombo dos Palmares? Quais os principais aprendizados que a experiência palmarina deixou para a luta e organização dos movimentos sociais?

As lutas agrárias no Brasil são seculares, atravessando as sociedades coloniais com experiências de africanos e indígenas (escravizados e não) desde o século XVI. Para cada cinco anos de história no Brasil, quatro foram vividos sob a escravidão e o trabalho compulsório. Palmares (antes e simultaneamente também as chamadas “Santidades”, que eram migrações messiânicas de africanos e indígenas na Bahia Quinhentista), Canudos, Ligas Camponesas e outras tantas experiências, eventos, processos e episódios são referências e exemplos destas lutas seculares. Mas nunca houve vazio de “história”.

Temos várias evidências de lutas agrárias para definir territórios, formas de controle sobre a produção agrícola, recenseamentos, cerceamentos de direitos e acesso a terra ou comercializar a produção rural. Setores agrícolas hegemônicos, poder público, elites rurais etc., tentaram desenhar cenários de absoluto poder, controle e domínio sobre a terra, territórios e formas de organizações sociais envolventes em várias partes do Brasil colonial e pós-colonial, com desdobramentos até hoje.

Como a escravidão e a relação de raça e classe explicam o país e a sociedade que o Brasil se tornou?

A dimensão da escravidão no Brasil é complexa e muito mais além de um aspecto exclusivamente econômico. Como vários estudiosos têm chamado atenção se constituiu uma linguagem social de hierarquias e desigualdades com reprodução contemporânea com impacto no mundo social e mais ainda para a população negra (56% da população brasileira).

Mas não podemos só pensar no racismo como uma herança da escravidão. Houve lutas sociais na pós-abolição em termos de organização, direitos e protestos. Mas houve também uma ideologia de dominação num Brasil não mais sob escravidão que transformou a população negra num “lugar social”. Não enquanto sujeitos, coletividades, experiências, origens, projetos e culturas. Mas tão somente um “lugar social”. Dos estereótipos, da desigualdade naturalizada, da exclusão social, da cidadania incompleta e da não-história.

Isso tem haver com o Brasil contemporâneo, dos últimos 132 anos quando não há mais juridicamente a escravidão. Portanto a história do Brasil – leia se também das populações negras rurais e urbanas – é também a história da redefinição da ideia de nação, de modernidade, da cidadania e dos direitos. Isso não tem nada haver com um passado de escravidão, mas sim com a dimensão social atual, no qual capitalismo e democracia parecem querer fingir a convivência com o racismo e a exclusão social.

*Editado por Ludmilla Balduino