Direito à Terra

Procurador e advogado comentam Guia de Regularização Fundiária de Assentamentos Rurais, publicado pela PFDC/MPF

Entrevista exclusiva com o procurador da República Araújo Junior e o advogado do Coletivo de Direitos Humanos do MST, Diego Vedovatto
Com a regularização de “Concessão de Direito Real de Uso” a família assentada pode usar a terra e mantém o direito de transferir a posse para seus herdeiros. Foto: Divulgação MST

Por Solange Engelmann
Da Página do MST

Após o golpe de 2016 a Reforma Agrária vem sendo esvaziada no Brasil. Esvaziamento que o Governo Bolsonaro amplia com o ataque contra todas as políticas agrárias.

Além de não desapropriar latifúndios até o momento, o governo federal mente, ao usar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para divulgar supostos dados de novos assentamentos, que se tratam do reconhecimento ou a reposição de famílias que já vivem em áreas e lotes desapropriados.

Nesse cenário, a nova estratégia adotada pelo Incra tem sido a pressão às famílias assentadas em adotar como única forma de regularização dos lotes o Título Definitivo (TD), a partir da criação do programa “Titula Brasil”, que facilita a titulação de terras e a legalização da grilagem.

Há mais de 30 anos, o MST e vários movimentos populares e sindicais do campo defendem a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) na regularização dos assentamentos de Reforma Agrária. O CDRU garante o reconhecimento da função social da terra e evita a mercantilização dos lotes e a privatização dos assentamentos.

Para debater sobre o assunto, a Página do MST traz uma entrevista exclusiva com o procurador da República e coordenador do Grupo de Trabalho Reforma Agrária e Conflitos Fundiários da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão ligado ao Ministério Público Federal (MPF), Júlio José Araújo Junior. E com o advogado do Coletivo de Direitos Humanos do MST, Diego Vedovatto.

O procurador Araújo Junior, que recentemente esteve à frente do lançamento do Guia Reforma Agrária e Formalização do Acesso à Terra, organizado pelo GT, reafirma a importância do reconhecimento do CDRU e aponta que, na sua opinião esse instrumento “consolida a lógica de que a terra é para quem trabalha nela e ressalta os objetivos da Reforma Agrária”.

Vedovatto, também aponta que os movimentos populares do campo defendem a função social da terra como um princípio fundamental na regularização dos assentamentos e enfrentamento da mercantilização da terra. “Sobretudo, como um instrumento de garantia ao Direito à Terra e ao Trabalho dos assentados e de toda a sociedade.”

Leia abaixo entrevista na íntegra:

Como o Guia Reforma Agrária e Formalização do Acesso à Terra pode auxiliar na decisão dos assentados da Reforma Agrária sobre o modelo de regularização de suas áreas?

Júlio – O guia procura trazer informações contidas na legislação e compilar os conceitos nela existentes, com objetivo de permitir que o público dos assentamentos tenha o máximo de conhecimento sobre o tema. Assim, espera-se que as deliberações e as demandas sejam conscientes e não se submetam a qualquer tipo de constrangimento por parte das instituições.

Procurador da República Júlio José Araújo Junior. Foto: Procuradoria da República AM

Diego – O Guia lançado pela PFDC é importante, sob dois aspectos: o primeiro diz respeito a relevância institucional do assunto pois alcança todo o território nacional, milhares de assentamentos rurais e centenas de milhares de pessoas, revelando que o MPF está atento e preocupado com a atuação do Incra nestes procedimentos. O segundo é que constitui um importante instrumento técnico para orientar as famílias assentadas, os advogados, assim como os técnicos do Incra, prefeitos, promotores, juízes, nos processos de regularização fundiária.

Quais os instrumentos de regularização do acesso à terra, disponíveis ao público dos assentamentos rurais, à luz da Constituição de 1988 e da legislação vigente? Suas principais diferenças e implicações?

Diego – A Constituição Federal é taxativa em seu artigo 189 ao estabelecer que a regularização fundiária será feita por meio de título definitivo ou concessão de uso. A Lei 8.629/93 detalha tal previsão em três formas: Contrato de Concessão de Uso (CCU) (provisória) [concedida após a criação do assentamento], Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e Título Definitivo (TD), os dois definitivos. As diferenças e implicações jurídicas detalhadas na legislação e regulamentos administrativos são grandes, mas, o mais importante é que o Título Definitivo transfere completamente a propriedade da terra pública para o beneficiário que poderá aliená-la em financiamentos bancários ou vendê-la após 10 anos. Já nas modalidades de “Concessão de Uso” ou “Concessão de Direito Real de Uso”, é permitido que o beneficiário use a terra e transfira a posse para seus herdeiros, mas, sob a fiscalização do Incra, sem poder aliená-la de qualquer maneira ou vender. Com a CCU e o CDRU o assentado ou assentada permanece na lista das diversas políticas públicas do Incra, já com o título definitivo ele também deixa essa condição.  

Qual o posicionamento do Grupo de Trabalho Reforma Agrária e Conflitos Fundiários da PFDC/MPF sobre os instrumentos disponíveis para regularização em assentamentos de reforma agrária?

Júlio – Primeiramente, o GT Reforma Agrária preocupa-se com o acesso à informação. É necessário que as informações prestadas aos assentados não sejam truncadas ou que não haja qualquer tipo de omissão sobre a possibilidade de um caminho ou outro. Além disso, é necessário que se analise as implicações de cada instrumento, o impacto que isso gera sobre a mercantilização da terra e o vínculo do trabalhador rural àquele lugar. É sobre isso que queremos debater com os assentados, trazer as características e as consequências de cada opção.

Alguns assentados e assentadas têm a ilusão de que optar pelo Título Definitivo como regularização pode ser uma escolha vantajosa, pois poderia comercializar a terra no futuro. Quais as implicações disso para o futuro desses assentados e da Reforma Agrária no Brasil?

Diego – Em virtude da grande desigualdade de acesso às condições estruturais de produção e o desenvolvimento agrícola, como por exemplo acesso a financiamentos, máquinas, assistência técnica, e em algumas regiões de acesso às condições mínimas de vida como água, energia elétrica, estradas em alguns assentamentos, é provável que o Título Definitivo promova a longo prazo à reconcentração de áreas desapropriadas. É uma forma de tirar a responsabilidade do Poder Público, e jogá-la no colo do mercado agrícola. Ou seja, o assentado ou seus herdeiros sem condições básicas e estruturais para se desenvolverem no lote serão estimulados a venderem a terra para quem possui maior poder econômico. É importante o assentado ter segurança jurídica em seu lote, inclusive sobre a transferência dos direitos para seus sucessores, mas, o Título Definitivo pode ser uma grande armadilha a médio e longo prazo.

Diego Vedovatto é advogado do Coletivo de Direitos Humanos do MST. Foto: Arquivo Pessoal

Qual a importância do reconhecimento legal da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), como instrumento de regularização dos assentamentos de Reforma Agrária?

Júlio – A CDRU é um instrumento que consolida o vínculo com a terra e impede a tentativa de devolvê-la ao mercado. Trata-se de um direito real, da mesma forma que a propriedade, mas com a característica de que não pode ser transferida. A CDRU consolida a lógica de que a terra é para quem trabalha nela e ressalta os objetivos da reforma agrária.

Diego – Ao reconhecer que o Incra não pode apresentar apenas o Título Definitivo como forma de regularização, resguarda-se o direito individual dos assentados (e coletivo do assentamento) para decidirem sobre qual a forma de regularização que desejam, e que melhor se aplica em cada situação particular. Dar segurança jurídica aos assentados mantendo essas terras públicas sobre a supervisão do Poder Público, e não sob o domínio da especulação imobiliária rural, é atualmente uma importante forma de bloquear e combater à ampliação da concentração fundiária. O Incra não pode impor um modelo privatista, deve ouvir e respeitar as comunidades como determina a legislação.

Qual sua avaliação sobre a atuação do Incra na realização da Reforma Agrária e regularização dos assentamentos em 2019 e 2020?

Júlio – A atuação do Incra tem se pautado pela omissão inconstitucional quanto à Reforma Agrária. Além de deixar de levar adiante a desapropriação de terras que não cumprem a sua função social, tema previsto na Constituição de 1988 com status de direito fundamental, o Incra asfixiou o seu próprio orçamento e não procura alternativas, como a destinação de terras públicas para Reforma Agrária, além de não desenvolver políticas públicas adequadamente onde os assentamentos já estão constituídos.

É possível a regularização dos assentamentos de Reforma Agrária sem a “titulação”? Qual a luta do MST e dos movimentos populares do campo nesse sentido?

Diego – É importante destacar que o Brasil é um país enorme e com muita diversidade regional. Cada território, comunidade, assentamento têm experiências e histórias distintas com particularidades que precisam ser consideradas no momento da regularização. O MST e diversos outros movimentos populares e sindicais do campo, há mais de 30 anos, defendem a CDRU porquê é uma forma de valorizar o uso da terra como um direito social. Ou seja, a função social da terra é o princípio máximo que orienta a compreensão destes imóveis não como mera mercadoria à disposição para venda e compra no mercado, sob condições econômicas tão desiguais como as vivenciadas no Brasil, mas, sobretudo, como um instrumento de garantia ao Direito à Terra e ao Trabalho dos assentados e de todo o povo brasileiro. 

*Editado por Wesley Lima