Luta pela Terra

Reforma Agrária transforma latifúndio da Giacomet Marodin em terra de fartura

Mais de 5 mil famílias estão acampadas ou assentadas na região
Acampamento Buraco em 1996: Foto: Arquivo MST/PR

Por Setor de Comunicação do MST no Paraná
Da Página do MST

O 17 de abril de 1996 está marcado na história do MST por dois episódios. Um deles escancarou para o mundo a brutalidade com que o Estado brasileiro operava contra aqueles e aquelas que ousavam se organizar para lutar pelo direito à terra.

No calor daquela quarta-feira, cerca de 1.500 homens, mulheres e crianças Sem Terra marchavam na altura da curva do S, em Eldorado do Carajás, Sudeste do Pará, rumo a Belém, para cobrar a efetivação da reforma agrária. Ali ocorreu uma chacina por mais de duas horas, no que ficou conhecido mundialmente como Massacre de Eldorado do Carajás. Homens da polícia militar assassinaram 21 trabalhadores e deixaram mais de uma centena de feridos. 

O outro marcou o início da ocupação de uma vastidão de terras griladas, que mais tarde se tornaram no maior complexo da reforma agrária da América Latina, como parte da mesma marcha que une o povo camponês Sem Terra em luta. Na madrugada fria, no município de Rio Bonito do Iguaçu, região centro do Paraná, mais de 10 mil homens, mulheres e crianças ocuparam uma parte da área da madeireira Giacomet Marodin, atual Araupel. 

Era o início da transformação de 83 mil hectares de áreas públicas, adquirida de forma grilada pela empresa em 1972. Além de Rio Bonito do Iguaçu, onde a primeira bandeira Sem Terra foi fincada, a imensidão de terra abrange os municípios de Laranjeiras do Sul, Nova Laranjeiras, Porto Barreiro, Espigão Alto e Quedas do Iguaçu.

Assembleia no acampamento Buraco, em 1996. Foto: Arquivo MST/PR

A quebra do cadeado da porteira de um dos maiores e mais cruéis latifúndios do Sul do Brasil ficou imortalizada pelo fotógrafo Sebastião Salgado, com uma imagem que nomeou como “A luta pela terra: a marcha de uma coluna humana”. Das mesmas lentes saíram os registros dolorosos dos caixões e dos enterros dos companheiros tombados no Pará, com fragmentos de uma história construída com coragem e rebeldia.   

As memórias daquele dia são de emoção de quem sabia que, apesar do sofrimento, a vida estava se transformando para melhor. “Lembro bem e que toda vez de contar me emociono sobre o dia da ocupação. Eu já estou fraco de memória ‘cabeça oca’, mas quem se lembra bem, é maravilhoso! Naquele momento senti como se fosse um recomeço, não só para mim, mas para todos que estavam lá. Tudo a partir dali iria mudar”, conta seu Idalino Gonçalves de Azevedo, que com a família fez parte daquele dia histórico, e mais tarde pode ser assentado naquelas terras. O seu relato faz parte do livro Memórias Libertárias do Acampamento Buraco e Assentamentos de Rio Bonito do Iguaçu, organizado por Gisele Fiori Gawlik e publicado em 2019. Buraco foi o nome dado ao primeiro acampamento formado em Rio Bonito do Iguaçu.  

Quem já viveu debaixo da lona preta sabe que as condições não são nada fáceis. Gomercindo Emanuel Rodrigues e a família passaram por essa dificuldade durante a ocupação no acampamento chamado de Buraco, e que hoje é o assentamento Ireno Alves. “Vivíamos em situação precária, mas mesmo assim partilhamos o pouco que tínhamos. Nos barracos tinha muita fumaça, nos dias de chuva e na época do inverno nem todos tinham cobertas e agasalhos, até porque as doações nem sempre eram suficientes.” 

Da grilagem à Reforma Agrária da fartura  

Visão aérea do assentamento hoje. Foto: Wellington Lenon

Em agosto de 1997, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) formalizou a criação do assentamento Ireno Alves dos Santos, com 900 famílias, nas terras do acampamento Buraco. Era o maior assentamento do Brasil até 2002, até que foi criado em Quedas do Iguaçu o assentamento Celso Furtado, com 1200 famílias. Nos anos seguintes, novos acampamentos e assentamentos foram criados na região. Hoje são mais de 5 mil famílias acampadas ou assentadas nas terras griladas da Araupel.. 

Com a consolidação do assentamento, as melhorias socioeconômicas surgiram não apenas para as famílias Sem Terras do Ireno Alves, mas para toda a região, que a partir daquele momento ganhavam uma área com grande produção de alimentos.  É o que contam os agricultores assentados Ângelo e Elizete Schons: “Depois de termos ganho o nosso lote, foi uma alegria e tanto. Depois de cinco anos acampados, ganhar o lote foi um alívio. Começamos a produzir os nossos próprios alimentos. Depois de tudo, as estradas melhoraram, tínhamos escolas boas e a saúde está melhor. Depois de tudo é só agradecer, graças ao Lula que ajudou nós e todos os assentados”. Já como uma grande liderança popular da época, Lula visitou o acampamento. 

As primeiras escolas começaram a ser construídas quando parte das moradias ainda eram feitas de lona. Admir Pacheco Batista, camponês assentado, relata o esforço para garantir o direito à educação para as crianças: “Logo que chegamos, as escolas foram sendo construídas. Depois que já estávamos aqui, demorou um ano para o Colégio Estadual do Campo Iraci Salete Strozak ser feito. Enquanto o colégio não estava pronto, estudávamos na Vila Velha, mas não havia transporte e nos deslocávamos a pé ou de bicicleta”. Hoje são 10 escolas que dão conta da educação das quase 3 mil crianças de diferentes idades que vivem na área ocupada. 

O que era um  latifúndio de pinus e eucalipto, tornou-se uma terra de fartura para milhares de famílias, com moradia, renda, produção diversa de alimentos, além de escolas, cooperativas e associações. Durante a pandemia da Covid-19, como parte da campanha de solidariedade organizada pelo MST em todo o Brasil, as famílias Sem Terra do complexo de ocupações da região já doou mais de 100 toneladas de alimentos. São os frutos da luta e do trabalho de quem ousou se organizar de forma coletiva para conquistar o tão sonhado pedaço de terra. 

Colégio Estadual dentro do assentamento. Foto: Wellington Lenon

“Hoje, ainda lembro-me de muitas coisas. Sigo na vida religiosa, e sempre com o sonho de que um dia teremos um novo projeto de sociedade, onde o povo tenha direito a terra, acesso e cultivo. A luta, resistência e conquista do povo está aqui, neste chão. Precisamos dar muito valor para as coisas desta terra, pois ela é sagrada, é espaço de vida e dignidade, por isso é crime quando colocamos veneno nela”, afirma também para o livro a irmã Rulda Lia Francener, religiosa que dedica sua vida à luta pela justiça social e contribuiu especialmente com a luta naquelas terras.

Em agosto de 2017, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) declarou nulos os títulos de propriedade da madeireira Araupel ocupadas pelo MST, confirmando a prática de grilagem. A determinação resultou de uma ação judicial movida pelo Incra, em 2014. Há dez anos, o Instituto contestava a validade dos títulos do imóvel localizado entre os municípios de Rio Bonito do Iguaçu e Quedas do Iguaçu.

De norte a sul do Brasil, o 17 de abril segue vivo na trajetória do povo Sem Terra, que segue em marcha e embalados pelas memórias e pela coragem dos que perderam a vida em busca dos seus sonhos coletivos. Os frutos da rebeldia são colhidos dia a dia, e se convertem em vida digna, em fartura e solidariedade. 

Com a narração de depoimentos e imagens, confira abaixo esta história de luta, resistência e conquistas que em 17 de abril de 2021 completou 25 anos:

*Editado por Wesley Lima