Chão

Filme “Chão” chega às telas de cinema retratando a luta do MST

Em entrevista, Diretora e acampado relatam como foi o processo de construção do longa, disponível em salas de cinema de todo o país
Cena do documentário “Chão”, de Camila Freitas. Foto: Chão/Reprodução

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

A luta pela terra e por Reforma Agrária Popular é a grande estrela de “Chão”, documentário de Camila Freitas que traz o cenário da luta popular no Brasil. O filme acompanha o dia a dia de uma ocupação do Movimento Sem Terra na Usina Santa Helena, em Goiás, e mostra a importância das ações do Movimento na vida das pessoas por uma vida digna.

Sob a direção de Camila Freitas, “Chão” sensibiliza o público por ser uma construção coletiva, tal como as atividades propostas pelo Movimento, em que a resistência é permeada de valores, afetos e vivências. Em fevereiro de 2019, o filme foi exibido no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, como um dos 12 filmes brasileiros selecionados para o festival em diferentes mostras.

O cenário é a fazenda Santa Helena, uma área com cerca de 15 mil hectares e que acumula aproximadamente R$ 1 bilhão em dívidas com a União. Aproximadamente 4 mil pessoas ocuparam a terra em 2015, o que culminou em uma perseguição ao MST pelo juiz da Comarca de Santa Helena e pelo Ministério Público Estadual, levando a prisão de dois militantes por formação de organização criminosa.

A ideia do filme é, através da arte cinematográfica, proporcionar conexões e leituras sobre o MST e ser instrumento de politização e mudança. PC é do acampamento Leonir Orback e figura, junto com a matriarca do grupo, a quem todos chamam de Vó, entre os personagens do filme. Em entrevista exclusiva, ele e Camila Freitas oferecem suas perspectivas sobre a construção do filme e a batalha, muitas vezes ideológica, contra os latifundiários, seus representantes legais e a mídia.

Acompanhe abaixo a entrevista na íntegra.

Já fizemos uma primeira entrevista, em que você conta da sua aproximação com o MST e o que a motivou fazer um filme sobre o processo de luta pela terra. Desta vez, queria que explicasse como foi fazer o documentário “com” o Movimento e não “sobre” ele.

Camila: Acho que o cinema documental se propôs a se aproximar de lutas e realidades sociais adversas em muitos momentos da história, mas essa tarefa vem se tornando cada vez menos a de “retratar”, “representar” povos oprimidos na tela, mas de criar alianças e fazer junto. E o que tem acontecido mais recentemente e que é muito valioso é o gesto de apropriação do cinema pelos movimentos populares, uma “ocupação do latifúndio das telas”, como a gente escuta a companheirada dizer.

Camila Freitas, diretora do filme Chão. Foto: Arquivo MST

No caso do Chão, ainda que a gente seja uma equipe de aliados externos em sua maioria, o filme foi construído em estreita colaboração com o movimento, da pesquisa à montagem, e desde 2019 a gente vêm também construindo juntos as estratégias de difusão. Como contei anteriormente, a nossa aproximação com o MST se deu através do interesse comum pelo cinema como ferramenta da luta, quando eu fui convidada a mostrar um curta que abordava questões de despossessão de terra em um latifúndio em Goiás. Quatro anos depois, as parcerias que emergiram daí se transformaram nesse longa em que gente de diversas instâncias do movimento pôde colaborar, na produção propriamente dita ou com um diálogo ético, político e estético constante que se reflete no que o filme se tornou. Tenho pra mim que o filme deve a sua potência a essa colaboração.

Na prática e no cotidiano, esse fazer com só pôde tomar fôlego a partir do tempo, da duração e da convivência entre nós todos, equipe, militância, pessoas acampadas. A nossa presença constante no acampamento, nos encontros e ocupações, solicitava nossos corpos a se disponibilizarem para ocupar junto e partilhar da reinvenção diária da experiência na terra. Esse exercício, a longo prazo, aguçou em nós o sentido da observação e da percepção, também sensorial, dos processos que se fazem na temporalidade própria da luta, e se inscrevem no espaço, na paisagem que vai se modificando. A gente vê isso no acampamento onde vivem PC e Vó, que eles transformaram ao longo de anos em uma espécie de refúgio regenerativo que destoa da aridez do agronegócio que eles ocupam.

E para você, PC, como foi participar da construção?

PC: Era um sonho de participar de um documentário, foi uma experiência de fato apaixonante fazer tudo isso. Contar a história da minha vida, a realidade, a partir do nosso olhar, principalmente com a equipe toda, foi tudo bem coletivo. Participar desse documentário com quase toda a família foi gratificante. Exigiu também coragem, não tremer. No começo, é claro, tem o frio na barriga, mas pude mostrar nossa casa, acampada e que eu conquistei. E o filme mostra isso, como contribuímos no processo da luta pela terra, vários momentos vão ficar marcados para sempre.

Queria que você falasse um pouco sobre como os temas que atravessam o documentário, não só da luta pela terra, mas também como a mídia retrata este tema, como se dão as relações dentro do acampamento e a justiça em relação aos latifúndios.

Camila: Desde sempre, as aparições do movimento na grande mídia são frequentemente contaminadas pela ideologia excludente dos donos da terra, que também são os donos da política e das comunicações no país. A construção dos Sem Terra como bandidos, marginais e usurpadores é um reflexo desse status quo. Acho que fazer filmes com um movimento como o MST implica na responsabilidade de se opor a essa construção injusta e maniqueísta que se consolidou historicamente em torno dele, com o cuidado de não fragilizá-lo mais. Não quis apenas me distanciar da representação midiática no sentido do conteúdo, mas também da maneira superficial e sensacionalista que ela pode tomar, mesmo, por vezes, em veículos comprometidos com a esquerda. Também nos distanciamos, em certa medida, do ritmo e da forma direta dos filmes militantes com finalidades mais imediatas de denúncia, que têm importância inconteste no processo da luta. Nossa aposta foi de trazer à tona uma poética que se nutre do caráter épico da luta, bastante explorado por filmes engajados e políticos que a gente admira, junto a um registro mais micropolítico, íntimo e imersivo que nos aproxima das pessoas que a compõem.

Cineasta brasileira leva luta do MST à Berlim
PC e ‘Vó’ em cena do filme “Chão”, de Camila Freitas. Foto: Chão/Reprodução

Existe algum outro aspecto que você gostaria de ter explorado mais durante as filmagens? Quais foram as maiores dificuldades para contar esta história?

PC: Cada pergunta, cada momento, cada fala, aquilo foi maravilhoso. Foi incrível. Teve um coletivo ali que debateu, que cortou e algumas coisas não apareceram no filme, mas que valem ser lembradas, como alguns companheiros que acabaram não aparecendo. Teve também um plantio de arroz, na fazenda e plantio de milho aqui na área, tem a nossa escolinha Renascer aqui dentro do acampamento, onde muito companheiro foi alfabetizado, aprendeu a ler e escrever aqui e virou dirigente; tem a ciranda que a gente faz com a criançada, que também é bem interessante. Acho que faltou explorar mais isso no filme, talvez mais alguns elementos que poderiam ter colocado, a parte da Cultura, da Educação. Acho que o maior desafio é se expor, abrir a sua vida, confiar nela, se colocar para uma câmera que você não sabe quem vai ver, e explicar isso também para as pessoas, que é um trabalho coletivo.

Camila: Em muitos momentos, eu fiquei muito ansiosa em ver as coisas se resolvendo. Ver as pessoas sendo assentadas, os processos judiciais andando, poder filmar uma história com começo, meio e fim. Foi um desafio que perpassou todas as etapas do filme: aprender a paciência e a resiliência do povo Sem Terra e encontrar muita maleabilidade e disponibilidade de todo mundo envolvido para criar uma espécie de simbiose entre o filme e a luta. E isso foi algo que se estabeleceu através de muito trabalho, muitas análises de conjuntura, muitas reuniões, muitas elucubrações e a construção de uma cooperação e confiança mútua entre nós os acampados, os membros da coordenação e tudo mais. Tudo isso passava por desafios comuns. Muitas vezes, a equipe partilhava os receios na preparação para uma ação mais ousada ou uma ocupação, ou diante da ameaça de uma liminar de despejo, e sempre lidamos com o equilíbrio nada fácil de atingir de estar ao lado sem pesar, privilegiando a luta e podendo somar e potencializar o que acontecia diante da gente. Outro desafio que a gente vivia ao lado tinha a ver com os processos jurídicos. Enquanto a coordenação, a Vitória, o Nelson, o Gilvan, a Bete e todo mundo ali, pelejava pra entender um pouco do juridiquês enrolado e as relações super judicializadas da usina Santa Helena, a gente também tinha que se esforçar pra entender o que estava acontecendo e como isso afetaria o filme.

Durante a pesquisa, nos interessamos muito nesse aspecto da judicialização e da perseguição jurídica que o acampamento Leonir Orback e o movimento em Goiás vem sofrendo desde 2015, com a prisão arbitrária de militantes e a ação abusivamente tendenciosa do judiciário local, que vem protegendo o grupo empresarial endividado e corrupto por trás da Usina Santa Helena. Mas essa dimensão jurídica é muito complexa, e é também algo que se dá em tempos muito longos como a luta, com o entrave suplementar dos acessos muito difíceis. Entendi, então, que esmiuçar isso seria tarefa de outros filmes, mas que o aspecto jurídico teria que existir no nosso de alguma forma, já que ele perpassa o cotidiano da ocupação. Ao invés de acompanhá-lo em detalhes, focalizamos na resposta dos acampados ao imbróglio com a usina, nas suas interpretações e estratégias de sobrevivência e emancipação política para fazer face às hierarquias sociais tão incrustradas nas relações com a justiça desigual e injusta desse país.

Cena do documentário “Chão”, de Camila Freitas. Foto: Chão/Reprodução

Que mensagem você acha que o filme passa hoje? Como você vê a conjuntura atual e a luta pela terra nos dias atuais?

Camila: O momento que vivemos – com a chegada da extrema-direita ao poder e a crise sanitária que nos jogou num abismo em que todas as disparidades se acirram -, torna incontornável o debate sobre as questões que o MST já vem levantando há muito tempo como centrais pro debate da questão agrária: não se trata de “apenas” distribuir a terra, mas de operar transformações radicais nos modos de ocupá-la e vivenciá-la. Acho que o mundo está muito (mais) atento a essas questões agora, sob diferentes perspectivas, e acredito que o filme soma a essa reflexão sobre o que precisamos urgentemente repensar na nossa travessia (e nas das futuras gerações) por essa Terra. O que eu aprendo com as personagens do filme e da luta pela terra em Goiás é que não há espaço pra temer ou desistir, mesmo diante de inimigos e obstáculos gigantes. Mesmo diante de uma terra arrasada pelo monocultivo, pelos agrotóxicos e por uma visão completamente monetizada do que ela pode produzir, pessoas como a Vó, o PC, a Vitória, o Bento, e tantas outras envolvidas nessa luta, trazem pra gente a perspectiva de uma resistência que é feita diariamente, no cotidiano, pouco a pouco e em escala humana.

E agora, com o isolamento social que se faz necessário para atravessar essa crise, lamentavelmente desgovernada, a importância de pensar a luta se voltando para dentro é muito enfatizada. O filme traz esse tom, que às vezes pode destoar com o que se espera de um filme sobre luta. A luta do MST não acontece apenas em sua face épica e visível dos protestos e ações audaciosas, na adrenalina das ocupações, na ideia de conquista; ela se faz também nos intervalos, nos tempos aparentemente ‘mortos’, nas negociações infinitas com os governos que nunca resolvem, nas derrotas, nas perdas e retrocessos, no atravessamento de todo tipo de intempérie. Independente da conjuntura política, é nos acampamentos onde se rega diariamente, incansavelmente, esse projeto utópico – no sentido mais concreto da palavra.

A personagem da Vó nos fala sobre essa utopia e essa temporalidade: ela, que até quase seus 70 anos viveu em ambiente urbano, nos fala sobre a capacidade humana de se transformar e escolher outros modos de ser e estar no mundo, a qualquer tempo. Quando a Vó desenha o sonho de produzir orgânicos no seu futuro pedaço de chão, ela sabe que não está trabalhando só por ela e por seus filhos, mas por uma mudança estrutural que talvez leve décadas ou séculos ainda, e que possivelmente apenas futuras gerações possam colher. É uma recusa à precariedade que se faz possível quando um coletivo se une, e que se vive a longo prazo.

PC: Somos e seremos capazes. Estamos na luta pela terra e por transformação social, nós estamos avançando e conseguimos vencer esta barreira: conquistamos o cinema nacional e internacional. Somos e seremos capazes de mudar a realidade, é esta a mensagem do filme. Então viva o MST, viva o “Chão”, viva a Camila, viva cada companheira e companheiro desta ocupação Leonir Orback e companheiros que se inseriram de outros acampamentos na ocupação da fazenda Santa Mônica!

A conjuntura é luta pela terra, e ela continua até os dias atuais. Eu acho que tem que ter mais garra, luta, canção, mais ocupação, mais trabalho de base para acampamentos, assentamentos, para resgatar inclusive militantes históricos. E isso faz com que nosso processo siga para frente. Tá faltando informação, comunicação, livros, então temos que fazer tudo isso chegar nas mãos das pessoas. Acabando essa pandemia, vamos para as ruas, vamos fazer nosso trabalho, de militante, e lutar pela Reforma Agrária Popular.

*Editado por Solange Engelmann