Especial

Aniversário de 94 anos de Pedro Casaldáliga: religião, luta e esperança

Homenagem ao “bispo dos povos” relaciona as lutas populares e o catolicismo
Dom Pedro Casaldáliga. Foto: Reprodução

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

João Pedro Stédile, da direção nacional do MST, em 2018, escreveria: “Quem poderia imaginar um catalão, sair de sua terra, nunca mais voltar e apaixonar-se pelos povos indígenas da América Latina? Quem poderia imaginar em plena ditadura empresarial-militar, nos confins da Amazônia, um homem franzino, usar a fé e a coragem para denunciar e exigir justiça, em defesa dos trabalhadores, posseiros, povos indígenas e camponeses, humilhados e explorados?”

Estas indagações, vinda de alguém que conheceu pessoalmente Casaldáliga e andou lado a lado pela justiça que este procurava, tem um questionamento que atravessa gerações e que move a vida sobre qual o sentido da fé, da religião, sobre tudo o que nos cerca e que nos faz tão humanos?

A história de Dom Pedro Casaldáliga, que, como um dos propagadores da teologia da libertação pregava não o amor cristão como manual de conduta, mas também uma forma de resistência à realidade da conjuntura, é o que nos guia no dia de hoje. Se vivo, o chamado de “bispo dos povos” faria 94 anos hoje. Nascido na Espanha em 1928, Pedro (como era popularmente conhecido) e se mudou para o Brasil aos 40 anos. Ficou conhecido por suas posições políticas e pelo trabalho pastoral ligado às causas como a defesa de direitos dos povos indígenas e o combate à violência dos conflitos agrários.

E não foi a toa que seu amor e dedicação na luta pela terra e pelos que dela viviam ficou conhecido mundialmente. Como ele mesmo escreveria, em homenagem aos 25 anos do MST. “O latifúndio continua a ser um pecado estrutural no Brasil e em toda Nossa América. Que o MST continue a ser um abanderado desse ‘socialismo novo’ e de uma verdadeira reforma agrária e agrícola, inserido na Via Campesina, na procura e no feitio de uma nova América.”

Para o psicólogo Paulo Maldos, outro companheiro de luta do religioso, “o principal intuito do dom Pedro era criar, entre todos os povos da América Latina, um espírito de fraternidade e uma rede concreta de solidariedade”, expõe. “Dom Pedro foi, por exemplo, até a região de atuação dos “contra”, na Nicarágua, na fronteira com Honduras, onde as milícias financiadas e armadas pelos EUA cometiam crimes bárbaros. Ele esteve lá e podia ter sido uma vítima desses ataques”, afirmou em entrevista exclusiva para o MST, em 2021.

Quem é Dom Pedro Casaldáliga

Pedro Tierra e Dom Pedro nos ensaios da Missa da Terra Sem Males, em São Miguel das Missões (RS), em 1978. Foto: Beto Ricardo-ISA

Conhecido internacionalmente por sua luta em defesa dos indígenas e dos camponeses Sem Terra, Dom Pedro Casaldáliga nasceu na Catalunha (Espanha). Filho de camponeses, chegou ao Brasil com a Congregação dos Claretianos em 1968, ano da implementação do Ato Institucional Número 5 (AI-5), e como missionário enfrentou os desafios da exclusão, da miséria e da fome.

“Pedro foi para o Mato Grosso, para a cidade de São Felix do Araguaia, seguindo o Rio Araguaia. Nessa região a ditadura militar seguia a sua expansão em benefício do agronegócio, do latifúndio. Neste contexto, muitos indígenas, ribeirinhos, caboclos sofriam com a invasão do branco latifundiário, do branco destruidor das florestas e das matas”, afirmou Padre Ronaldo Mazula.

Em 1971, convidado pelo Papa Paulo VI, torna-se Bispo da Prelazia de São Felix, onde escreve a famosa Carta Pastoral de 1971 em que se opõe ao latifúndio, questiona o sistema capitalista e os ataques às populações mais pobres e carentes do Mato Grosso. O que o fez ser perseguido pela ditadura e ser, muitas vezes, incompreendido pela própria Igreja Católica.

Fundou, juntamente com Dom Tomás Balduíno, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em 1970. Dom Pedro participa, também, junto a Dom Luciano Mendes e Dom Paulo Evaristo Arns da organização da Comissão Pastoral da Terra (CPT ), nos anos 70 e do MST. A atuação de Dom Pedro fez com que o missionário claretiano fosse perseguido e sofresse atentados contra a sua vida.

O mais famoso entre as tentativas de assassiná-lo ocorreu em 1976, quando cangaceiros mataram o Padre João Bosco Penido Burnier, em Ribeirão das Cascalheiras, de emboscada, era um jesuíta que trabalhava com Dom Pedro junto aos índios da etnia Bakairi. “Dom Pedro teve de carregar o Padre João Bosco ensanguentado nos braços”, afirmou Padre Ronaldo Mazula.

Educação e legado de amor

A história de Dom Pedro Casaldáliga pode ser conferida, dentre outros escritos, no filme Descalço sobre a Terra Vermelha. A obra é baseada no livro de mesmo nome, do escritor Francesc Escribano.

Descalço sobre a Terra Vemelha narra a saga do bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT), ao chegar na região em 1968. O religioso se posicionou ao lado dos desfavorecidos na luta pela posse da terra, enfrentando fazendeiros, a ditadura e até mesmo o Vaticano.  

Dividida em três capítulos de 52 minutos, a obra dirigida pelo cineasta Oriol Ferrer é resultado da coprodução entre a TVC, a TVE, a TV Brasil, a brasileira Raiz Produções e a Minoria Absoluta, produtora espanhola. A película também foi premiada na Ásia, no Festival de Seul, e pelo New York International TV & Film Awards.

Na pré-estreia da obra em São Félix do Araguaia, onde mais de mil pessoas participaram como figurantes, destacou-se o receio de Pedro, em ser retratado como protagonista das lutas da região, ressaltando que as conquistas foram resultado da luta e da caminhada de muitos. De acordo com a professora aposentada Maria de Lourdes Marinho, a educação proposta por dom Pedro fazia com que as pessoas refletissem sobre sua condição. “Fazia as pessoas compreenderem, tipo a educação do Paulo Freire, que não dava o peixe, ensinava a pescar. Era uma educação voltada para os problemas sociais, para as pessoas acordarem, não ficarem sendo dominadas pelos grandes”, destaca.

Hoje, o legado de luta de dom Pedro pela educação tem o reconhecimento de quem viveu de perto a repressão por parte dos militares. Para Maria de Lourdes, a coragem do bispo para que a educação chegasse aos povos da região e para enfrentar dificuldades é um exemplo para a população. “Ele nunca teve medo de nada. Podia estar o maior ‘auê’, que iam sequestrar, matar e ele estava na casa dele, com a porta toda aberta. Ele sempre falou que as causas dele valiam mais que a vida.”

Intolerância Religiosa e teologia do amor e luta

Dom Pedro ofereceu a sua solidariedade a grupos de religiosos e de trabalhadores e trabalhadoras contra as ditaduras militares no América Latina. Foto: Reprodução

Dom Pedro Casaldáliga foi um dos principais expoentes da teologia da libertação, corrente teológica cristã nascida na América Latina que parte da premissa de que o Evangelho exige a opção preferencial pelos pobres. E para concretizar essa opção, deve usar também as ciências humanas e sociais.

Pedro tinha sonhos, fé e um profundo amor a causa dos empobrecidos, oprimidos e marginalizados e, dedicou sua vida a essas causas. Pedro foi radicalmente fiel ao Deus de todos os nomes, de todos os povos e nações, acima de igrejas e religiões.

A cada passo ensinou, aprendeu e assim seguirá Pedro Casaldáliga com a natureza amorosa, rebelde e solidária do ser humano. “Pedro deixou um grande legado que é preciso preservar e cultivar”, escreve Antônio Canuto.

Este legado de amor dentro da Igreja Católica também ficou marcado para diferentes frentes, como se evidencia na entrevista com o padre Enes de Jesus, que por décadas atua no Movimento Negro trazendo a discussão sobre igualdade racial e discriminação dentro do âmbito religioso.

Quando questionado acerca do debate sobre a intolerância religiosa estar presente hoje na igreja, Pe. Enes é enfático: “O Diálogo Religioso está na Igreja Católica Romana desde o Concílio Vaticano II. O Papa João XXIII convoca as igrejas cristãs históricas para um grande diálogo. O documento com o método tem apenas 50 anos e nos deu bases sólidas para percebemos que o papel das religiões é auxiliar a humanidade para um pacto da paz”.

Esta visão de religiosidade que acolhe e respeita outros povos tem tudo a ver com o legado de Casáldaliga. Assim, Pe Enes relembra: “Os mestres das nossas religiões nunca nos ensinaram a discriminar, ou sermos intolerantes, ou matar em nome de um Deus. Temos um Departamento em Roma chamado Pontificium Consilium para o Diálogo Religioso que nos incentivam sempre ao diálogo. Recentemente perdemos um grande incentivador da paz e do diálogo, o Arcebispo Emérito Desmond Tutu, que com seu carisma denunciou ao mundo os horrores do Apartheid. Precisamos celebrar sempre a vitória do Deus da vida que nos reúne por seu Amor”.

Por isso, o MST se solidariza e homenageia esta mensagem que nos lembra que, enquanto persistir a intolerância religiosa, é preciso discutir o assunto e conscientizar as pessoas de que todos têm direitos iguais. Atualmente, durante o pontificado de Francisco, existe o entendimento de que a igreja demonstra uma posição reconciliadora.

Assim, MST, que tem uma origem vinculada às ações das Igrejas, principalmente da Igreja Católica, dentro da vertente da Teologia da Libertação, prestará sempre homenagens a Casaldáliga por sua perseverança e amor aos povos, reforçando que o Movimento sempre esteve muito próximo às análises sociais socialistas, utilizando, muitas vezes, um referencial marxista.

As relações da Igreja Católica com os movimentos populares do campo historicamente tem sido muito próximas no Brasil, ainda mais em suas mudanças políticas e o avanço do conservadorismo, como lembra Pe. Enes sobre a relação histórica da intolerância religiosa no país e o racismo, “quando nem todos tem direitos de expressar sua cultura, religião, com certeza é racismo, e Intolerância. Quando seu Deus é chamado de diabo ou sua religião é satanizada, não tem outro nome, a não ser ‘sociedade hipócrita’.”

Assim, após mais de dez anos, a entrevista de Dom Pedro Casadáliga à Folha de S. Paulo sobre os conflitos agrários em 2011 ainda soa atual.

“Simplificando, com uns traços panorâmicos, poderíamos dividir o nosso Brasil em três. O Brasil hegemônico, que está a serviço do agronegócio, depredador, monocultural, latifundista, excluidor dos povos indígenas e do povo camponês. Fiel à cartilha do capitalismo neoliberal. O outro é povo das terras indígenas, camponeses da agricultura familiar, ribeirinhos, extrativistas, Sem Terra, consciente de seus direitos e organizado em diferentes instâncias.

Por fim, determina uma terceira parcela da população, “uma maioria média desinformada ou mal informada, que não vincula as lutas do campo com as lutas da cidade, no dia a dia da sobrevivência. Que não percebe ainda que a reforma agrária é uma luta de todos.” Após quase dois anos sem a presença física de Casaldáliga, continuamos seguindo seu legado de luta e esperança, com suas palavras sobre a Igreja, principalmente em tempos tão turbulentos. “A Igreja deve continuar sendo – e talvez mais do que nunca, pela ambiguidade oficial e internacional – uma Igreja servidora e profética. Que não se omita nunca ante o clamor dos pobres”.

*Editado por Solange Engelmann