Produção de Alimentos

No Paraná, assentamentos do MST fazem de Querência do Norte a capital do arroz irrigado

Cidade localizada ao noroeste do estado é conhecida como o pantanal paranaense e ano passado foi oficializada como a capital do arroz irrigado pela Lei 20.653/2021
Plantação de Arroz da família Anghinoni. Foto: Jade Azevedo

Por Jade Azevedo
Da Página do MST

Município de topografia privilegiada, com muito sol, terra vermelha e banhado pelo rio Paraná e Ivaí, proporciona aos assentamentos Pontal do Tigre e Che Guevara o trabalho de produção de arroz irrigado, ginseng e a criação de gado para laticínios.

As comunidades estão localizadas a 630 km de distância de Curitiba, capital do estado do Paraná, e a um pouco mais de 500 km de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. A área possui 2.500 hectares, onde vivem as 327 famílias de trabalhadores rurais da reforma agrária. Antes era uma área improdutiva do grupo Atala e hoje tornou-se a capital do arroz irrigado.

Em 2021 produziu mais de 300 mil sacas de arroz, uma das maiores produções do assentamento nestes 27 anos de existência e luta pela Reforma Agrária Popular.

Empacotamento do arroz. Foto: Jade Azedo

Cada assentado tem em torno de oito alqueires para produzir e construir suas casas. Para produzir arroz irrigado muitas famílias se unem e trabalham coletivamente na produção arrozeira, criação de gado para laticínios, reservando um espaço para plantação de hortaliças e verduras.

As famílias ocuparam a área em 1995 já com o objetivo de construírem juntas a Cooperativa de Comercialização da Reforma Agrária Avante, a Coana, agroindústria responsável por potencializar, distribuir e comercializar a produção agrícola das famílias assentadas.

Implantada em 1998, é neste espaço que o arroz verde passa pelo processo de secagem, vai para o silo e depois é beneficiado, explica Celso Inácio Kerber, coordenador de produção da Coana, que há 13 anos trabalha na cooperativa. Segundo ele, são em torno de 500 a 600 fardos de 30 kg de arroz beneficiados por dia no local.

Querência do Norte tem a maior produção de arroz do Paraná, representando mais de 33% do total produzido dentro do estado. O produtor assentado Celso Anghinoni, conta que a irrigação é a base da produção arrozeira. ”Nossa região tem uma topografia com muita água e a irrigação é a certeza da produção. Por isso temos um potencial muito grande e se o governo investisse no pequeno agricultor teríamos muito mais”, defende.

O arroz faz parte do prato principal dos brasileiros e de muitas outras culturas. Por isso seu cultivo é o de maior importância econômica para os países desenvolvidos, uma vez que é o alimento básico de pelo menos 2,4 bilhões de pessoas, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Celso Inácio Kerber, coordenador de produção da Coana. Foto: Jade Azevedo

A produção de arroz irrigado é chamada assim porque quase todo o seu ciclo de cultivo é submerso em água. Uma das técnicas de manejo sustentável e de produção ambientalmente correta. Para isso, além de um território rico em água, os pequenos agricultores precisam de um investimento tecnológico para o nivelamento da área de plantação, plantio, investimento em sistemas de irrigação, drenagem, compra de colheitadeira e outros itens relacionados a adubação, manejo e controle de pragas.

Como os gastos de produção são muito altos, os assentados se juntam e plantam coletivamente. A produção da família Anghinoni inclui seu filho Fernando e o irmão Alexandre. “Nós trabalhamos num coletivo, temos uma área de 120 hectares de arroz”, diz enquanto mostra toda a área de arroz plantada, que será colhido no início do ano de 2022.

Ele e o filho contam que o processo começa com o nivelamento da área. “A gente prepara a terra no seco e depois joga a água e nivelamos a área que será plantada, isso garante que quando soltemos a água, nenhuma parte ficará seca. Inundamos o arroz pré-germinado por uns quatro ou cinco dias. Retiramos toda água por um dia para a terra respirar e depois voltamos com a água, inundando a plantação até a colheita do arroz”, detalha.

Trabalho coletivo na produção arrozeira

Anghinoni ressalta que a decisão de trabalhar coletivamente é o caminho possível para viabilizar a produção. “Nossa família foi uma das primeiras a conseguir comprar uma lâmina a laser. Na produção de arroz ela é essencial porque é quem faz a nivelação do solo. Uma dessas custa em torno de 150 mil reais, e é um dos equipamentos que o produtor tem que comprar em grupo, é quase inviável comprá-la sozinho”, explica.

Fernando, Celso e Alexandre Anghinoni (da esquerda para a direita) são produtores de arroz. Foto: Jade Azevedo

Com o nivelamento bem feito o produtor tem um gasto muito menor com água e consequentemente com gasto elétrico e uma melhor produção. “A água também influencia no melhor controle de ervas daninhas”, acrescenta.

A família Becker também produz arroz. Alceu, filho do sr. Delfino, conta que a família mora no assentamento Pontal do Tigre desde o início e há 15 estão produzindo arroz orgânico. “São cinco variedades de arroz, o preto, vermelho, carnaval e duas variedades do branco. Há um ano estamos usando marrecos soltos nas plantações para a contenção de pragas. A roça fica mais bonita e eles ajudam porque deixam a água suja, impedindo a entrada do sol e evitando que o mato cresça. Assim não precisamos usar nenhum defensivo agrícola”, conta orgulhoso mostrando a produção.

Alceu Becker, produtor de arroz orgânico. Foto: Jade Azevedo

Alceu explica que tudo começa com a pré germinação do arroz. “Primeiro se joga a semente no solo, faz-se a primeira inundação da área, com o arroz pré-germinado retira-se a água por 24 horas e retorna com a irrigação e com os patos. São eles que fazem a adubação orgânica”, declara.

As consequência da falta de políticas públicas

De acordo com as famílias, são muitos os desafios, começando pelos desastres naturais como inundações, secas, chuvas de granizo e geada. Anghinoni relembra as perdas de produção que todos tiveram na enchente de 2016. “Nós perdemos toda a produção do ano, nos endividamos com o banco, porque não recebemos o seguro. Depois de cinco anos foi que nós conseguimos nos aliviar das dívidas e das perdas daquele ano”, explica.

Arlei José, gerente de produção da Coana, aponta outro desafio: a comercialização. Ele defende que “você [o produtor] precisa estar dentro do mercado, e para isso precisa ser muito eficiente em tudo, desde um bom produto até a parte do processamento da produção na agroindústria. Existem coisas que o mercado exige, como por exemplo a máquina de parboilização que agrega muito valor ao produto final te tornando mais competitivo no mercado”.

Anghinoni diz também que a comercialização é outra área que não recebe recursos do governo e isso define muito o progresso ou não do setor de produção do arroz. “Nossa cooperativa tem dificuldade de conseguir recursos de capital de giro, que garante que o produtor quando venda o produto tenha dinheiro em caixa para melhorar a estrutura da própria cooperativa.”

Arlei José é gerente de produção da Coana. Foto: Jade Azevedo

De acordo com ele, outros fatores são as perdas dos programas de investimento na agricultura familiar, como Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que está praticamente extinto desde a proposta da Medida Provisória (MP) 1061/2021, de autoria do governo Bolsonaro.

Outra perda para a agricultura familiar e o pequeno agricultor é o programa de estocagem da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), responsável pelo estoque regulador, que desde 2016, vem sendo sucateado pelo governo que já fechou 27 dos 92 estoques públicos de alimentos até o ano passado.

Os estoques públicos são maneiras de o Estado proteger agricultores e cidadãos dos riscos provocados pelos imprevistos da atividade agrícola (chuva, seca, geada), garantindo a compra dos produtores (grandes e pequenos), a revenda do produto e a soberania alimentar que preserva as características de produção de alimentos de cada região.

“Quando a compra do produto é feita pelo governo diretamente do agricultor, isso mantém o preço dele no mercado e garante que o agricultor também ganhe pelo seu trabalho”, salienta Anghinoni.

Arlei explica que dentro da cadeia de produção, que começa na lavoura, o trabalhador rural está sempre tentando diminuir custos. “Neste processo muitos assentados saem e voltam, porque sem política pública que apoie o pequeno produtor, fica muito difícil se manter e inclusive de explorar técnicas de produção orgânica, pois mesmo que ela seja o novo caminho, exige muito mais do agricultor”, completa.

Solidariedade Sem Terra

Produção das Marmitas da Terra. Foto: Jade Azevedo

Mesmo com todas as dificuldades para manter a produção e as constantes lutas por reforma agrária, por políticas públicas que melhorem a produção agrícola do pequeno agricultor e o direito à soberania alimentar do brasileiro, as famílias de trabalhadores Sem Terra produzem e partilham alimentos com a sociedade.

Ao todo, as famílias do MST de Querência do Norte já doaram 46 mil kg de alimentos – entre eles arroz, frutas e legumes – nas ações de solidariedade permanentes do Paraná. Por todo o estado, desde o início da pandemia, o MST doou cerca de 900 toneladas de alimentos.

“Isso é fundamental na nossa luta, se você perder isso, perde o simbolismo dela. Essas doações são o mínimo que nós podemos fazer para agradecer o que já conquistamos, inclusive politicamente enquanto seres humanos que acreditam que o mundo tem que ser melhor”, ressalta Arlei. Segundo ele, a Coana doou 80 toneladas de produtos em 2021, entre eles arroz e laticínios.

Parte da doação de arroz foi para a Ação Marmitas da Terra, que desde maio de 2020 produz e entrega refeições à população de rua, comunidades periféricas de Curitiba e Região Metropolitana. Foram 12 mil quilos de arroz doados para a iniciativa.

“Para nós é uma pena ter alguém precisando lá na outra ponta. A gente tá dividindo o que eu a gente já conquistou. É um processo coletivo de forma geral”, finaliza Arlei.

Confira o vídeo sobre as ações de solidariedade a partir das Marmitas da Terra:

*Editado por Wesley Lima