Combate à violência
Arpilleras do MST: Mulheres, memória e resistência na luta por Reforma Agrária Popular
Por Camila Miranda, Giulia Mafort e Marília Fonseca
Da Página do MST
A Rede de Combate a Violência Doméstica do MST em São Paulo (RCVD/SP) completou 2 anos nesse mês de abril de 2022. Organizada através de várias reflexões e debates por um coletivo intersetorial, a Rede atua com duas frentes: de comunicação e de cuidados profissionais (assessoria jurídica e saúde mental).
A frente de comunicação constrói vários materiais visuais, audiovisuais, áudios partindo da realidade e demanda do movimento para o diálogo, principalmente com a base. A Rede produziu diversos áudios, por ser mais fácil acesso à base por conta da dificuldade da internet nos territórios, que podem ser encontrados no youtube do MST São Paulo e spotify da Rede MST/SP.
A Rede não está composta somente por mulheres, também dialoga-se com os companheiros e esses somam no coletivo de profissionais e participam da construção dos materiais formativos-informativos. Lisbet Julca, militante do MST em São Paulo, que contribui no setor de gênero, explica que “esse não é um tema só das mulheres e do setor de gênero, envolvemos a todas e todos nesse processo, sempre pautando assunto vinculado às violências ligado à conjuntura”.
“Também reproduzimos panfletos impressos entendendo que nem todas companheiras têm celular e condições de acessar virtualmente os materiais.”
A estrutura familiar e o lar muitas vezes é de onde se partem as violências e onde se encontra o agressor, o isolamento social colocou as mulheres em maior contato com agressores em um momento da conjuntura de aumento dos discursos e práticas machistas e misóginas sustentadas pelo negacionismo, fundamentalismo religioso e conservadorismo do desgoverno de extrema direita no Brasil.
A frente de cuidados profissionais da Rede de Combate à violência Doméstica do MST/SP tem atuação das advogadas populares pontualmente em demandas jurídicas e acompanhamentos necessários às vítimas de violência doméstica e, a do coletivo de saúde mental que segundo a dirigente estadual do setor de gênero e psicóloga da RCVD, Paula Sassaki:
Pensamos na oferta de cuidados para a base social do MST extrapolando o acolhimento da saúde mental para além dos casos de violência doméstica, temos acolhido outras solicitações para além das violências. A Rede começa com duas frentes e se organiza de uma maneira territorial, nas dez regionais do estado de São Paulo, com duas representações que compõem uma operativa com cerca de 20 militantes do MST organizadas para fazer debates, reflexões e mapeamento das violências. Essas representações fazem a ponte entre base de cada regional e frentes operativas de cuidados e comunicação, ativando o debate, acolhimentos e as medidas de enfrentamento.”
Outro desafio para a Rede foi a arrecadação de recursos para fortalecimento urgente de companheiras que necessitassem se deslocar de sua área ou outros tipos de emergências em casos de violências.
A crise sanitária e econômica na vida das mulheres do campo não é igual para aquelas que moram na cidade. As camponesas, muitas vezes, são invisibilizadas até mesmo nas estatísticas e possuem menos estrutura para fazer as denúncias via telefone ou chegar até o local de denúncia.
A Rede começa propor iniciativas que pensam a saúde para além dos atendimentos tradicionais de saúde, mas que abrangem uma concepção mais ampliada de saúde, uma forma ampla e diversa de cuidar da militância do MST em momento de pandemia. Os processos individuais, de grupo ou de oficinas podem detectar a necessidade das pessoas atendidas serem acompanhadas por um tempo maior e as profissionais tecem redes de apoio e parceria para essa continuidade.
Para Paula, as arpilleras são espaços potentes de criação e troca para além de cuidado e reflexões. “As arpilleras tem histórico de luta, de resistência a partir da ditadura do Chile, onde mulheres faziam telas com tecidos que elas tinham, muitas vezes com roupas de desaparecidos para denunciar as atrocidades, desaparecimentos, torturas da época para também comunicar. Muitos foram para outros países para denunciar e trocar informações para que, de alguma maneira, possa se buscar as pessoas desaparecidas. Nós temos usado também como forma de denúncia e elaboração coletiva, vamos construindo a concepção estética e afetiva de maneira conjunta, é um processo de cuidado em saúde e saúde mental, pois contempla a dimensão da troca, dos encontros, dos afetos e o bordado vem como registro, expressão disso tudo.”
Experiência das Arpilleras no Chile
A ditadura militar chilena (1973-1989) calou com medo, censura, exílio, prisão, tortura e desaparecimentos. Nesse contexto de violento sufocamento, surgiu uma forma única de luta e resistência: as Arpilleras.
As mulheres chilenas bordavam o que não podia ser dito com palavras. Eram histórias narradas com retalhos de roupas, fios e agulhas. As Arpilleras contavam sobre os desaparecidos, o luto, a luta e as dores e sofrimentos do cotidiano de uma nação silenciada. Foi a forma encontrada pelas mulheres trabalhadoras de fazer denúncia à ditadura, constituindo história e memória. Foi também a forma encontrada para fazer circular documentos importantes e sigilosos. Escondendo os papéis muito bem dobrados, em bolsos escondidos nas costuras e desenhos das Arpilleras. Era também uma forma de comunicação da luta do povo chileno.
Mais tarde, as Arpilleras começaram a circular pelo mundo. A censura da ditadura proibiu e confiscou as peças, porém, à preservação feroz das mulheres, muitas Arpilleras originais hoje podem ser vistas em museus, centros de memória da ditadura, exposições online e nas mãos daquelas que conseguiram proteger as peças.
3 ciclos de memória e luta
O início das oficinas de arpilleras pela Rede de Saúde Mental do MST ocorreu com o ciclo 1 em agosto de 2021, no formato virtual, envolvendo a arpillerista e disseminadora da proposta no Brasil, Esther Vital, coordenando os primeiros encontros, acompanhada do apoio da arpillerista e bordadeira, Estela Carvalho. Foram cinco militantes do MST entre dirigentes e da brigada internacional, sete integrantes da própria RCVD/SP e duas arpilleristas do MAB. Foram realizados seis encontros para o bordado das peças de arpilleras. Nem todo o grupo conseguiu seguir até o final, e foram finalizadas 4 arpilleras.
Em fevereiro de 2021 foi realizado o ciclo 2, também totalmente virtual. Neste, a facilitação foi realizada por uma das integrantes da RCVD/SP que fez o 1º ciclo. Estavam presentes oito militantes do MST e três profissionais da RCVD, além do apoio técnico da Esther e Estela. Este ciclo foi composto por mulheres e a temática bordada foi: “Mulheres pela Vida, Semeando Resistência”.
Foram realizados dez encontros virtuais, nem todas conseguiram finalizar. Uma delas foi a companheira Aline Maria, mulher, militante, levada pela política de morte implementada durante a pandemia da Covid-19.
Em junho de 2021 aconteceu o 3° ciclo, em homenagem à Aline Maria. O ciclo Aline Maria contou com duas turmas: uma virtual e voltada às pessoas que passaram pela RCVD e, outra híbrida, com mulheres do acampamento Marielle Vive, de Valinhos (SP). A turma virtual foi composta por duas facilitadoras que participaram do 2º ciclo, além do apoio da Esther e Estela. Os encontros tiveram início com sete militantes e duas profissionais da RCVD, foram 12 encontros e o tema definido foi a luta LGBTQIA+.
A outra turma também foi híbrida, virtual e presencial, com três facilitadoras participantes do ciclo anterior, também com apoio técnico de Esther e Estela, e de dez militantes do Coletivo As Marielles, do acampamento Marielle Vive, onde a maioria se encontrava semanalmente, no barracão do coletivo e se conectavam virtualmente com as demais companheiras que estavam em outros lugares.
Foram realizados 13 encontros neste 3° ciclo. As mulheres quiseram encontrar uma temática comum e foram realizados três encontros com essa intenção. As companheiras puderam compartilhar sobre as dificuldades de acesso à água para o plantio e uso doméstico. Não por acaso, a água esteve presente em diversos trabalhos. Em julho de 2019, o companheiro Seu Luis Ferreira foi assassinado em luta pela água em frente ao acampamento em uma manifestação pacifica de reivindicação por água à prefeitura e, por isso, o tema estava aflorado na vida das companheiras que presenciaram o ocorrido. Por fim, após os debates, a temática escolhida foi: a história, os sonhos de cada uma na luta com o MST.
Ciclo 4: Continuidade e Memória
O acampamento Marielle Vive finalizou no dia 03 de Abril de 2022, domingo, seu segundo ciclo de confecção de arpilleras, sendo o 4º ciclo da Rede de Combate à violência doméstica do MST/SP, que iniciou em 06 de março de 2022. A temática escolhida foi a ameaça de despejo enfrentada pelo território, que atualmente está suspensa até final de junho de 2022 pela prorrogação ocorrida em 30 de março, pelo STF a partir da ADPF nº 828, que suspende durante a pandemia os despejos no Brasil.
Aconteceram 5 encontros semanais aos domingos, com 8 sujeites: 6 mulheres e 2 homens, sendo um deles, um homem trans que, juntes construiram uma arpillera coletiva. O ciclo homenageia a Comandanta Neusa Paviato (1961 – 2022) da regional de Ribeirão Preto, que dedicou sua vida à luta e organização popular e faleceu recentemente.
Para Paula Batista, que participou da construção do 4º ciclo de Arpilleras no MST e, que já passou por um processo de despejo:
Eu não desejo que ninguém passe por despejo, é uma coisa horrível, vemos tudo destruído. Aqui temos nossas crianças vivendo em liberdade, construímos nossas vidas, plantamos, construímos nossos sonhos, não é só barracos de madeira! Vejo que nos territórios do MST as pessoas se fortalecem na saúde mental, param de tomar remédios, mas não é fácil, converso com meus filhos sobre a possibilidade de termos que sair, deles se afastarem dos amigos e nesse sentido a devastação mental é enorme!”
Em 02 de Abril 2022 iniciou mais uma turma de Arpilleras do 4º ciclo Neusa Paviato, de forma virtual seguindo com o propósito de instrumentalizar as dirigentes de gênero das regionais de São Paulo, experimentando a técnica e incentivando a formação de novos núcleos de arpilleras no MST nas diversas regionais.
As arpilleras na RCVD fazem muito sentido, pois mulheres e homens tecem seus processos que muitas vezes são difíceis de serem ditos, mas que precisam ser mostrados, denunciados, expostos, evidenciados. As linhas costuram e expressam os sentimentos e pensamentos que não se podem mais calar.