Vitória Esquerda

Colômbia: da berraquera ao poder

Após o inconcluso acordo de paz, e como consequência de uma explosão social sem precedentes, a Colômbia agora será governada por uma coalisão progressista. Poderá um país com 70 anos de guerra interna converter-se em uma potência mundial pela vida?
Imagem: Reprodução Alai

Por Lautaro Rivara
Da Alai

Trinta anos. Setenta anos. Duzentos anos. Cada conta como bem entende, desde onde a memória alcança, a origem das frustrações colombianas. O certo é que a trajetória nacional da republica sul-americana tem sido a menos típica no cenário latino-americano e caribenho, pelo menos desde os tempos da dissolução da grande Colômbia e da derrotada tentativa do projeto bolivariano, no inicio do século XIX. Seria de fato em Barranquilla, no caribe colombiano, do local onde Simón Bolívar proferiria sua célebre metáfora derrotista: “o que serve à uma revolução ara no mar”, antecipando já em 1830 que o país cairia em mãos de “tiranos quase imperceptíveis”.

Colômbia já tentou de tudo para transformara a si mesma.: sublevações de escravos, rebeliões “criollas”, guerras civis, greves operárias, frentes populares, guerrilhas, movimentos insurgentes, acordos de paz, paralisações agrárias, “mingas” indígenas, processos constituintes, explosões sociais e um grande etecetera. Gente muito rebelde foi, de fato, o sugestivo título escolhido pelo professor Renán Vega Cantor para narrar, em quatro grandes volumes, algumas das peripécias deste país esmagado mas indomável.

“Em quase todos os índices de horror que se possa relevar, Colômbia pica en punta, de forma geral, no mesmo estágio que as nações que atravessam guerras civis ou guerras internacionais declaradas”.

Até o dia de ontem, o resultado ainda era um fruto amargo. A criminosa intransigência de uma das elites mais elitistas da região e o inestimável valor geopolítico do país – autêntica dobradiça que conecta América do Sul, Caribe e América Central – pareciam tê-la condenado a muito mais de 100 anos de solidão latino-americana.

Nas Terras de Cain e Abel

“Na Colômbia, eu não pude saber quem é Cai ne quem é Abel”, disse o fotógrafo jornalista colombiano Jesús Abad Colorado, que há décadas se dedica a fotografar e narrar o conflito interno armado. Suas fotos, como aquela mundialmente famosa “Cristo mutilado” de Bojayá, têm sensibilizado milhares de pessoas sobre as consequências mais atrozes da guerra. Um conflito que já dura mais de 70 anos e que, segundo o Registro Único de Vítimas, do próprio Estado colombiano (parte beligerante de um ménage à trois que há décadas envolve as Forças Armadas, com as insurgências guerrilheiras e com os atores paramilitares), tem um acumulado histórico de 8,1 milhões de vítimas, somente entre o ano de 1985 e presente momento.

Em quase todos os índices de horror que se possa relevar, Colômbia pica en punta, de forma geral, no mesmo estágio que as nações que atravessam guerras civis ou guerras internacionais declaradas: assassinatos de líderes sociais, defensores ambientais, opositores políticos; incluindo o mapa da fome, elaborado pela FAO, na qual Colômbia aparece na mesma categoria que Haiti e Honduras, com 7,3 milhões de cidadãos que sofrem de insegurança alimentar, feito grotesco para uma nação tradicionalmente agrícola e camponesa.

Em uma América Latina consolidada como um território de paz – ao menos em comparação com outras regiões do planeta – Colômbia permanece detida no loop eterno de uma guerra praticamente naturalizada, mas, sobretudo, silenciada por seus mais ardentes promotores, tanto locais como internacionais. Em particular, desde a “revolução conservadora” encabeçada pelo ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, no início deste século, com uma hegemonia sem fissuras, parecia ter se encerrado para sempre as expectativas populares.

No entanto, Colômbia também se destaca por uma série de fatos sui generis, modalidades especificamente colombianas das doutrinas contra-insurgentes, inventadas pela França em seus territórios coloniais e difundidas mundialmente pelos Estados Unidos, como é o caso dos chamados “falsos positivos”, execuções extrajudiciais pôr as quais camponeses e outras vítimas são assassinadas de forma sumária e apresentados como “baixas guerrilheiras”, em troca de um sistema de prêmios e estímulos. Segundo a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), construída com os acordos de Havana entre o Estado colombiano e as FARC – EP, 6.402 pessoas haviam sido vítimas desse procedimento, entre os anos de 2002 e 2008, ainda que diferentes analistas e familiares das vítimas estimam que os dados reais podem chegar ao dobro deste número.

A nação cafeteira é a forma coloquial de se referir à Colômbia nas competições esportivas. Mas o café, produto estrela da economia colombiana durante décadas e poderoso elemento de identidade nacional, há tempos foi substituído pelas economias ilícitas da papoula, da maconha e, sobretudo, da folha de coca.

A exportação de cocaína para os Estados Unidos, em particular, respondeu, em 2018, a 1,88% do PIB, mais que o dobro da riqueza produzida, esse mesmo ano, pelo grão de café. E assim como o boom do café produziu uma elite cafeeira, o crescimento incessante das economias ilícitas produziram uma poderosa elite narcotraficante e também uma subcultura: a cultura “traqueta”, caracterizada pela banalidade, pela ostentação, pela violência e pela morte. As chamadas narconovelas, responsáveis por glorificar os criminosos do nível de Pablo Escobar, são uns dos produtos mais conhecidos e estigmatizantes. 

Tivemos, há poucos dias, a oportunidade de percorrer as zonas rurais do departamento de Cauca, no Sul Ocidental colombiano. Passando pela vereda Yolombó, a mesma de onde se origina Francia Márquez, no município de Suárez. Ali, a coca, tão visível como ilícita, estende seu uniforme manto verde pelos morros, vales e montanhas até onde a vista alcança. E não por uma predisposição criminosa por parte dos camponeses e agricultores, se não porque a lógica da guerra perpétua – a localidade foi bombardeada no dia seguinte à nossa visita – o controle territorial por atores armados e a completa ausência estatal, tem possibilitado, há décadas, que a subsistência dos sujeitos rurais se reproduza com base em seus cultivos tradicionais, como tem documentado, em suas inúmeras crônicas, Alfredo Molano.

O elevadíssimo preço da folha de coca – mais elevado quanto mais perseguida e criminalizada está -, mas, sobretudo, suas facilidades para a conservação e transporte, tem feito deste pequeno arbusto lenhoso a imagem dominante de regiões inteiras do país, de uma geografia tão singular como a colombiana, emoldurada por dois oceanos e repartida por três cordilheiras.

A rebelião dos berracos

O cinismo é a superestrutura psicológica da guerra. Uma espécie de couraça que blinda as subjetividades assediadas pela fratura, pela dor e pela morte cotidiana. É por isso que o cínico humor dos colombianos pode resultar rude e até indigesto para os visitantes desprevenidos.

Um dos mais notáveis intelectuais da história colombiana, o sociólogo Orlando Fals Borda, soube referir-se, na última edição de um dos seus livros mais célebres, La subversión em Colômbia, ao que o país havia chegado a um ponto de saturação histórica que já não resistia ao acúmulo de maiores níveis de violência. A violência tem sido um problema tão importante para a compreensão da realidade nacional, que um novo ramo do saber surgiu precisamente para tentar desentranhar suas causas e consequências: “a violentologia”.

Mas, se de um lado encontramos os violentos, violentistas e violentólogos, do outro encontramos à berraquera e os berracos. Uma expressão, de origem castizo, que poderíamos traduzir como uma conjunção de valentia, bravura e fortaleza. Berraca é a dificuldade, mas também a superação. Berraca é a guerra, e berracos são os quem sobrevivem à ela. Não casualmente, esta foi uma das palavras mais altissonantes da explosão social que comoveu o país em abril do ano de 2021.

“A explosão (…) teve um indubitável efeito pedagógico sobre a população colombiana, ao produzir o deslocamento da guerra das zonas rurais para o centro dos grandes conglomerados urbanos.”

Centenas de milhares de pessoas se mobilizaram naquelas jornadas, impulsionadas por um impopular decreto de reforma tributária assinado pelo presidente Iván Duque, que pretendia jogar sobre as costas das classes trabalhadoras os onerosos custos da crise econômica. Muitas coisas mudaram em abril, como ponto de coroação de um processo que se vinha se consolidando desde a constituição de novos e massivos movimentos sociais em 2010, até uma série de paralisações agrárias e mingas indígenas, realizadas de forma quase incessante nos últimos anos.

A explosão, mas sobretudo a reação dos agentes de poder, teve um indubitável efeito pedagógico sobre a população colombiana, ao produzir um deslocamento da guerra das zonas rurais ao centro dos grandes conglomerados urbanos. Policiais, militares, mas, sobretudo, paramilitares, tentaram a retomada violenta das localidades que foram ocupadas pelos protestos.

Alguns padrões foram atribuídos às explosões sociais de outros países, como Chile e Equador: as detenções arbitrárias, a perda de globos oculares pelos disparos no rosto, a violência sexual contra as manifestantes. Mas incluíram aqui também o uso de artefatos militares sofisticados, como o tanque Venon e, inclusive, se suspeita de bloqueadores de sinais que causaram um apagão digital nos bairros periféricos de Cali e de outras cidades, para encobrir o acionar repressivo estatal e paraestatal, que deixou numerosos desaparecidos.

Os protagonistas foram as juventudes, o campesinato, as negritudes e os povos indígenas. E os principais epicentros a capital Bogotá e os departamentos de Córdoba, Cauca e Valle del Cauca. Por isso, quem tenta explicar algo do acontecido em termos eleitorais sem aquela referência fracassará de forma impiedosa, como se constata a quase perfeita sobreposição da geografia dos protestos e do mapa eleitoral desta campanha.

Em algumas das regiões, notavelmente no Sul Ocidental, o Pacto Histórico alcançou uma votação na ordem de 60%, 70% até 80% que, junto com as da capital, foram determinantes para explicar o triunfo, pela primeira vez em toda a história nacional, de uma força social e política alternativa, progressista e de caráter popular. Talvez, o maior símbolo da conexão virtuosa entre os protestos e as eleições, seja os cânticos, ouvidas ontem em todo o país, de “El baile de los que sobran”, a canção do grupo Los Prisioneros que percorre toda a região, entoada pela juventude descontente nas diversas explosões sociais que que atravessaram a América Latina e o Caribe desde o ano de 2019. E a equação menos medo e mais participação eleitoral foi, então, a grande responsável pela chegada à Casa de Nariño de Gustavo Petro Urrego e Francia Márquez Mina.

Uma potencia mundial de vida

Nas últimas semanas, voltou a circular pelas redes sociais, uma mensagem anônima muito significativa: “meus avós tentaram com Gaitán, meus pais tentaram com Galán, e eu tentei com Petro”, em relação aos magnicídios respectivos de Jorge Eliécer Gaitán em 1948 e de Luis Carlos Galán em 1989 (aos quais devem se somar os assassinatos dos candidatos de esquerda Jaime Pardo Leal, Bernardo Jaramilo e Carlos Pizarro Leon Gómez). Daí que não se pode exagerar a importância histórica da vitória eleitoral de Gustavo Petro: após 70 anos de frustrações democráticas, frente a uma elite excludente e magnicida, pela primeira vez na história, as aspirações populares encontraram – por enquanto – um caminho fecundo que não seja o das armas.

A consigna principal do Pacto Histórico revela as aspirações mínimas, no entanto, tão esquivas deste mosaico heterogêneo de partidos políticos, movimentos sociais e personalidades que querem fazer da Colômbia uma “potência mundial da vida”, em um país que se converteu em um exportador do paramilitarismo (os mercenários colombianos, tão bem ponderados internacionalmente, tem agido de forma comprovada da Venezuela ao Haiti, da Europa ao Oriente Médio).

Daí derivam algumas das principais prioridades políticas sublinhadas por Petro em seu primeiro discurso como presidente eleito, na Arena Movistar de Bogotá: uma integração regional “sem exclusões” (com uma clara alusão à fracassada Cúpula das Américas convocada por Joe Biden em Los Ángeles; o cumprimento aos Acordos de Paz e a convocatória de uma mesa de diálogo com os grupos insurgentes ainda em armas (de fato, o Exército de Libertação Nacional já manifestou sua disposição em sentar para negociar); uma política de desenvolvimento não extrativista que coloque a Colômbia na vanguarda da luta contra as mudanças climáticas; e a mais ampla liberdade e garantias para o exercício político, pela qual exigiu das autoridades judiciais da nação a libertação dos presos políticos da explosão, e também dos jovens encarcerados nos últimos dias do marco do Plano Democracia 2022.

“Vamos da resistência ao poder”, disse Francia Márquez frente às multidões empoderadas de los nadies, que hoje começam a adquirir rosto, voz e presença para o Estado colombiano. Ou melhor dizendo, da barraqueira al poder, porque tem sido este instinto atávico, essa autêntica pulsão de vida, que tem mantido em pé um povo que segue andando quando muitos outros já teriam se dobrado. No célebre romance La Vorágine, José Eustásio Rivera colocou na boca de seu protagonista as seguintes palavras: “Antes que me tivesse me apaixonado por alguma mulher, joguei meu coração à sorte e me ganhou a Violência”. Falta muito ainda, mas Colômbia tem hoje a oportunidade de jogar com novos baralhos e tirar as cartas de novo.

*Editado por Solange Engelmann