MST por Despejo Zero

A luta por Despejo Zero: como chegamos à prorrogação da ADPF 828

Levantamento de ações da Campanha Despejo Zero demonstram a importância desta discussão hoje
Manifestação do 17 de Março em São Paulo: MST por Despejo Zero. Foto: Acervo do MST em São Paulo

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

Com o fim do mês de Junho, uma demanda centenária parece ter dado uma trégua à 500 mil pessoas que estavam ameaçadas de despejos e remoções forçadas no Brasil. Após muita luta, a Campanha Despejo Zero, articulação de diversos movimentos sociais, conseguiu estender o prazo da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que proíbe despejos até 31 de outubro deste ano.

A decisão do ministro do STF, Luís Roberto Barroso, foi oficializada na última quinta-feira (30), assegurando que, durante esse período, as 142.385 mil famílias ameaçadas de despejo no país possam permanecer em suas casas e territórios ocupados. 

A luta por moradia e direitos humanos perpassa toda a história do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que se uniu à outros movimentos urbanos e rurais para fortalecer a resistência nas áreas ocupadas na cidade e no campo. “Só no campo temos uma situação de 30 mil famílias que dependem da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828 para não sofrerem despejo direto; em uma perspectiva geral das 90 mil famílias do MST acampadas, isso tem sido bastante importante”, afirmou Kelli Mafort, da direção nacional do MST.

Com um discurso categórico, Kelli Mafort ressalta que a suspensão de despejos no Brasil é vitória da luta do povo de diferentes formas. Ela destaca, por exemplo, uma petição protocolada junto ao STF no dia 15 de junho deste ano, requerendo à Corte a prorrogação da medida. “Nesse pedido reunimos uma vasta argumentação ligada tanto aos fatores sanitários, como também de agravamento social do país, que justificavam a prorrogação”.

Frente ampla e popular

Desta forma, o MST defende a luta popular e a pressão da sociedade para colocar a vida acima de qualquer outro interesse e pelo direito à comida, à moradia, à terra e ao trabalho. Por isso, o Movimento esteve presente em diferentes ações do calendário de lutas pelo Despejo Zero, como na semana de 21 de junho, quando dezenas de atos foram realizados em todas as grandes regiões do país, com mobilizações nas zonas rurais e urbanas dos estados.

Manifestantes protestam contra os despejos em frente ao Congresso Nacional em Brasília, DF. Foto MST

Para Mafort, estas ações ajudam a fortalecer tanto os vínculos de unidade na luta por terra e moradia, de movimentos urbanos e rurais, quanto na articulação política que a Campanha Despejo Zero tem construído junto ao STF.

“Além dos sujeitos Sem Terra e Sem Teto, que foram protagonistas destas lutas de resistência, tivemos também o envolvimento da sociedade que acompanha estes acampamentos urbanos e rurais, e pessoas apoiadores de diferentes segmentos da sociedade, como o movimento sindical, universidades, e organizações populares. Isso foi bastante importante também nesta decisão do STF”, Mafort.

Ao integrar a luta pela prorrogação da ADPF 828, o MST impulsionou internacionalmente a denúncia sobre despejos como violação dos direitos humanos e o agravamento dos riscos que o mesmo oferece em meio à atual crise sanitária, social e econômica que se passa no Brasil. Para facilitar a mobilização e pressionar o STF, foi criada uma petição de apoio que conta com versões em português, espanhol, francês e inglês, que pôde ser assinada por pessoas e organizações em todo o mundo, que apoiam a luta contra os despejos no Brasil.

Ao todo, mais de 1.000 cartas de diferentes países do mundo foram enviadas aos ministros pela prorrogação da ADPF. “Por ter uma capilaridade de articulação internacional, o Movimento colocou seus comitês de amigos e amigas do MST em outros continentes mobilizados para esta pauta do despejo. Esta campanha pela prorrogação foi assumida por esses amigos e amigas, alguns deles parlamentares que enviaram cartas para o Supremo Tribunal Federal, envolvendo um número maior da sociedade”, afirma Mafort.

A urgência do despejo zero nas cidades e no campo hoje

A preocupação internacional com os despejos no Brasil foi um ponto relevante na decisão feita pelo Ministro Barroso, segundo Mafort, ainda que o fator preponderante para a prorrogação seja a questão sanitária. “Esse tem sido o principal o argumento utilizado pelo ministro Barroso para pautar as suas decisões. Ele diz que não compete ao Judiciário interferir ou mesmo ditar a política fundiária ou habitacional, então a pandemia ainda é um fator que o STF destaca, ainda mais pelo aumento de casos de contaminação por Covid-19 e o aumento na média móvel de mortes”.

Além do aspecto sanitário, é necessário levar em consideração os impactos sociais e econômicos que a pandemia tem deixado, principalmente na vida dos mais pobres, somado a um agravamento das condições de vida devido a outros fatores como o desemprego, aumento dos preços de alimentos, dos aluguéis, do gás de cozinha e dos combustíveis.

“Outro fator considerado por Barroso foi o que ele chama de “flagelo social”, identificando o quanto a situação econômica se agravou e atinge os mais pobres. Como exemplo, o Ministro cita que, no Rio de Janeiro, 31% das pessoas em situação de rua estão lá há menos de um ano, e que a maior parte delas, se tivesse trabalho, não estaria nas ruas”, lembra.

Neste sentido, dados de que 33 milhões de brasileiros passam fome, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, foram colocados como argumentos neste sentido, além da queda na renda média dos brasileiros e brasileiras, especialmente os mais pobres. “Tudo isso fez com que o Supremo chegasse nessa decisão liminar de prorrogação da ADPF 828. Para nós, a situação de despejo agravaria muito o quadro social já que, a qualquer momento, poderíamos ter 500 mil pessoas despejadas”, desabafa Mafort.

Foto: Elineudo Meira/Fotos Públicas

Mafort ressalta ainda outros dois fatores preponderantes para o MST sobre a necessidade da prorrogação além desses destacados pelo ministro. “Primeiro está ligado à questão eleitoral, pois ter 500 mil pessoas na rua em um ano de eleições poderia ser um fator ainda mais agravante como uso político eleitoral; o outro fator é o aumento da violência. A situação da escalada de violência no nosso país piora e muito o problema vinculado à questão dos despejos. Então, para nós, esses dois fatores são muito sensíveis, delicados, que nós estamos prestando atenção”.

Como exemplo, Mafort cita o caso de indígenas no Mato Grosso do Sul, que foram violentamente despejados e, em uma situação de luta e retomada de terras, resultou no assassinato de dois indígenas. “Naquela situação, não tinha ordem judicial, os despejos estavam suspensos na pandemia. A polícia foi chamada a pedido do fazendeiro e atuou como jagunço, em um conjunto de fatores completamente errados, equivocados. Se com a ADPF 828 já acontece aquilo, imagina sem ADPF”.

Quando morar é um privilégio, a insurgência é a ordem

Diante desta conjuntura, Mafort lembra que é importante ressaltar que ADPF está valendo e os despejos estão suspensos, mas que ainda está previsto para o dia 04 e 05 de agosto uma confirmação dessa decisão pelo plenário do Supremo. “Esperamos que a maioria dos ministros, tal como ocorreu das outras vezes, sigam o voto do relator e que esse período possa nos dar um fôlego”.

Ainda assim, Movimentos e parlamentares buscam caminhos para evitar despejos em massa após as eleições. “Entendemos também com o que o relator aponta para PL 1501, um projeto de lei de autoria da deputada federal Natália Bonavides, do PT. Existe uma certa expectativa por parte do STF pela importância de ter um regime de transição para que volte a valer as reintegrações de posse no Brasil, para que os despejos não sejam feitos como uma bomba. A PL 1501 fala sobre um escalonamento dessa política de transição, sobre levar em consideração o tempo de ocupação daquela comunidade, se está consolidada ou não, se tem equipamentos público, tem escola, se tem unidade de saúde, a realidade do lugar”.

MST por Despejo Zero no DF – 17 de Março de 2022. Foto: Matheus Alves

Todas estas movimentações levam em consideração a busca por um plano para que não seja feito nenhum despejo que viole os direitos humanos. Dentre as alternativas que ainda estão sendo elaboradas, todas ressaltam que um processo massivo de despejos pode levar a um acirramento dos conflitos sociais diante de um problema que atinge o Brasil por séculos.

Se o direito à moradia ingressou no rol de direitos fundamentais, em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Campanha Despejo Zero segue trazendo a discussão ciente de que está longe de ser um tema pontual ou jurídico, mas um problema estrutural no campo e na cidade. Neste sentido, Kelli Mafort ressalta que outro apoio importante para a argumentação à Campanha Despejo Zero vem da Resolução nº 10 do CNDH – Conselho Nacional de Direitos Humanos e a Recomendação nº 90 do CNJ – Conselho Nacional de Justiça.

“A questão é levar em consideração que as remoções forçadas são uma exceção, não devem ser regra, inclusive o uso de força policial, observando a Resolução 10 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que garante soluções garantidoras de direitos humanos e medidas preventivas em situações de conflitos fundiários coletivos rurais e urbanos”.

Desta forma, diversas ações continuam a todo vapor para impedir processos desumanos de despejos. Além de serem monitorados pela Campanha Despejo Zero, um conjunto e coordenado das organizações, entidades, movimentos sociais e coletivos já conseguiram evitar 120 despejos e, dessa forma, mais de 24.231 famílias puderam manter suas moradias. A luta pelo direito de vida digna e moradia segue para todas as outras famílias.

*Editado por Solange Engelmann