Carnaval

A Revolução da Beija-Flor de Nilópolis

Artigo ressalta desfile de Beija-Flor de Nilópolis
Beija-Flor com suas faixas de protesto e a alegoria com a confecção de uma nova bandeira do Brasil. Foto: Ismar Ingber / Riotur

Por Tiaraju Pablo D’Andrea
Da Página do MST

Os resultados dos desfiles das escolas de samba, na maior parte das vezes, acabam mascarando o espetáculo. Após a apuração, intensos debates discorrem sobre perdas de pontos, injustiças, jurados, quesitos, más intenções e toda uma sorte de assuntos correlatos a uma competição. Como um verdadeiro paradoxo, a apuração passa a ser mais debatida que os desfiles.

Neste texto (e em outros que pretendo fazer), gostaria de discorrer sobre os desfiles em si e, fundamentalmente, sobre a mensagem que as escolas de samba transmitem a partir de um planejamento, um diálogo com suas comunidades e um desejo de se comunicarem com a sociedade. Pra começar, escreverei sobre aquele que, a meu ver, foi o enredo mais ousado e politizado dos desfiles de 2023 do Rio de Janeiro, o da Beija-Flor de Nilópolis, cujo título foi ” Brava Gente! O grito dos excluídos no bicentenário da independência”.

Como a escola não ganhou, este enredo corre o risco de cair no esquecimento, mas isso não pode acontecer. Esse desfile foi uma aula de Brasil. O intuito principal do enredo era o de mostrar os verdadeiros heróis da independência, questionando mitos construídos pela história hegemônica. A partir dessa premissa, foram apresentados os verdadeiros protagonistas invisibilizados da história do Brasil: indígenas, negros, mestiços, mulheres, pobres, do passado até as lutas contemporâneas. A escola não economizou na defesa de sua mensagem e na tomada de posição. Foi uma bomba semiótica que merece ser contada em detalhes. 

A comissão de frente criticava o papel cumprido pelo exército brasileiro na história do país, fazendo um nexo com o contexto atual. Dentre muitas reivindicações, as alas da escola representaram a Confederação do Equador, os botocudos, os malês, a cabanagem, a balaiada e outras revoltas negras, indígenas e populares.

Como uma verdadeira aula de sociologia, a escola apresentou alas que questionaram a república velha, o coronelismo e a autocracia, conceito aprofundado nas obras de Florestan Fernandes. Uma das alas representava “a ameaça vermelha – o fantasma do comunismo”, como forma para justificar intervenções autoritárias. Nada mais atual.

O quarto setor foi um espetáculo de luta e esperança. Intitulado “Brava gente por um novo nascimento”, contou com as seguintes alas: luta pela terra (contra o marco temporal); enquanto houver racismo não haverá democracia; se a classe operária tudo produz a ela tudo pertence (sim, foi assim mesmo); a pressa da fome; nem menos, nem mais: direitos iguais (inspirada nas passeatas LGBTQIA+); e a revolução será feminina. Todas essas alas eram precedidas de faixas coloridas que as apresentavam. No todo, davam um efeito estético de passeata.

A Marquês de Sapucaí virou palco de uma manifestação. Além dessas alas, dois casais de mestre-sala e porta bandeira representavam os direitos à saúde e à educação. Atrás desse setor vinha o carro alegórico mais emblemático de todo o carnaval: uma escultura gigante de uma senhora negra costurava uma bandeira do Brasil com as inscrições “por um novo nascimento”. Nas costas do carro alegórico aparecia a inscrição “devolve o Brasil pra nós”.

O sexto carro utilizou o recurso do tremular de bandeiras, como nos estádios de futebol. Muitas com o desenho da bandeira do Brasil, mas com distintas cores e dizeres. Lélia Gonzales foi lembrada na bandeira “pretuguês”; A bandeira “a ordem é samba” conclamava o verdadeiro progresso da nação. Simbolicamente, esse carro festivo avisava: a bandeira verde amarela com os dizeres ordem e progresso deve ser repensada ou superada.

O Brasil que queremos demanda outro símbolo. O desfile como um todo foi permeado de encenações e representações sobre os verdadeiros protagonistas e o Brasil que queremos. Este texto não tem condições de resumi-lo. Sugiro que o assistam para terem a dimensão do espetáculo.

Sublinhando o desfile, o samba foi permeado de versos e frases de efeito com poesia. O refrão pedia “abram alas ao cordão dos excluídos”. 

O desfile político-propositivo da Beija-Flor ganha relevância quando lembramos que o mesmo foi transmitido e aceito a contra gosto pela Rede Globo de Televisão, que o retransmite para dezenas de países. Não é sempre que esse tipo de mensagem crítica consegue alcançar tanta visibilidade. Os movimentos sociais que o digam. 

Na avenida, a escola teve problemas em seu primeiro carro alegórico, dentre outras pequenas falhas. O título merecido ficou com a Imperatriz Leopoldinense. Despontuada, a Beija-Flor acabou em um honroso quarto lugar. Ao que parece, os jurados não gostaram do tom da crítica, ou os mantenedores da história hegemônica ainda não está preparados para serem questionados de maneira tão visceral. 

A postura incisiva dos jurados adequou-se a um tipo de crítica observada nas redes sociais de que a escola foi panfletária ou pesou a mão na crítica. Vale lembrar: quem pesou a mão nos últimos anos foi a extrema-direita. Mão pesada no lombo do povo brasileiro.

Outras críticas apontaram que a escola repetiu o tema da Mangueira de 2019 (a história que a história não conta, com homenagem a Marielle Franco) e o efeito das bandeiras do abre alas da Grande Rio de 2022. Pode ser que hajam existido inspirações. De fato há semelhanças. Mas essa questão é menor. As boas ideias devem ser replicadas, defendendo o espaço cada vez mais reconhecido dos enredos politizados.

A Beija-Flor de 2023 dá sequência ao caminho aberto pela Mangueira de 2019, que por sua vez só foi possível por conta do desfile da Paraíso do Tuiuti de 2018 (sobre escravidão no passado e no presente, com críticas ao vampiro Michel Temer). Cabe ainda lembrar que o enredo da Beija-Flor de 2023 também dá sequência a uma história de temas sociais e políticos da própria escola. Como esquecer “Ratos e Urubus, larguem minha fantasia” concebido por Joãozinho Trinta naquele conturbado 1989 e que levou para a avenida moradores de rua e uma escultura gigantesca de um Cristo Redentor censurado com os dizeres “mesmo proibido, olhai por nós”? Especialistas afirmam que esse foi o desfile mais emblemático da história da Sapucaí.

Em 2003 a escola foi campeã criticando a ganância causadora da fome. O último carro tinha uma escultura do então e atual presidente Lula. Simples assim. Em 2018 a escola foi campeã, ainda que esteticamente tenha deixado dúvidas.

É simplista afirmar que o enredo desse ano foi senso comum. O debate é bem mais complexo. Em 2022 a escola reivindicou o espaço e a história da intelectualidade negra, também com um samba e um desfile de encher os olhos e os pulmões. O enredo de 2023 é a sequência dessa linhagem de enredos da escola. Esta linhagem não oculta os enredos mercadológicos que a escola já levou pra avenida.

A Beija-Flor não está imune à complexidade contraditória do mundo das escolas de samba. No entanto, não se pode negar a sua contribuição ao carnaval, enfatizando aqui seus enredos críticos. Mensagens de desfiles a parte, é incomensurável a importância da escola na construção da dignidade do povo preto e pobre da baixada fluminense, uma das regiões mais esquecidas e precárias do Rio de Janeiro.

O desfile da Beija-Flor de 2023 deve ser visto e revisto. Deve ser passado nas salas de aula e debatido nos movimentos sociais. A Beija-Flor deu um alento a quem sonha com um Brasil novo, totalmente antenada com debates contemporâneas que ratificam a necessidade de ser contada a verdadeira história do país, com seus e suas reais protagonistas. Como um convite, o começo do samba canta: a revolução começa agora. 

*Tiaraju Pablo D’Andrea é Professor da Unifesp/Campus Zona Leste e do Programa de Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da EACH/USP. É coordenador do Centro de Estudos Periféricos e músico.
**Editado por Fernanda Alcântara.