Soja Convencional

Caminhos e desafios na produção de alimentos mais saudáveis com a soja

Na segunda parte de entrevista, o professor Antônio Andrioli comenta sobre a transição da soja para uma produção mais sustentável e a necessidade de políticas públicas de apoio
Antônio Inácio Andrioli. Foto: UFFS

Por Gustavo Soares e Jaine Amorin/Setor de Comunicação e Cultura MST no Paraná*
Da Página do MST

“Mas, a transição pode se dar, muito mais por uma questão de auto-organização, de utilizar essa soja em outra cadeia alimentar, para produzir carne, ovos e leite, para produzir óleo, para produzir alimentos, do que simplesmente por uma questão de preço. E a comida deve ser produzida sem venenos”, afirma, Antônio Inácio Andrioli, professor do Mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável, no Campus da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) em Laranjeiras do Sul – PR.

Na entrevista o professor também reforça o papel da transição como caminho para a produção sustentável de alimentos e como isso vai se relacionar com as proposta do novo governo. Ele também chama atenção para os tipos de políticas públicas e ações essenciais para a agricultura familiar nesse período.

Comunicação MST no PR: Dá pra entender que, entre a soja transgênica e a soja orgânica, a soja convencional livre de transgênico pode ser encarada como uma uma transição para começar a diminuir a dependência das grandes tecnologias, da transgenia?

Andrioli: Muitos que estudaram camponeses concluem que existe uma possibilidade de mudança na estrutura agrária, desde que seja em forma de transição. Estamos em processo de transição, em tantas coisas no Brasil e uma delas, que eu discutia ao final dos anos 1990, era exatamente essa: o agricultor não precisa aderir à soja transgênica, mas pode fazer a transição para a soja orgânica.

O colega Pedro Cristoffoli também escreveu uma tese interessante sobre a soja transgênica no Brasil. Eu concordo com ele que, do ponto de vista da macroeconomia, dentro do capitalismo, havia uma tendência dos agricultores para a soja transgênica e não para a soja orgânica. 

O mainstream da ciência na época se baseava em três absurdos, que continuam sendo repetidos até hoje. Um deles é que se dizia que, com a soja transgênica, aumentaria a produtividade, mas nós sabemos que a soja transgênica não foi preparada para ser mais produtiva. Ela foi preparada para ser resistente ao glifosato. É aí que está a esperança, a expectativa de muita gente que, se melhorar o controle de inços (ervas daninhas), haveria um aumento na produtividade. Com o uso de glifosato sobre a soja resistente a esse veneno, isso faria com que aumentasse a produtividade. Mas, isso não se confirmou. Pelo contrário, a soja convencional pode ser mais produtiva que a soja transgênica, inclusive a longo prazo. Hoje já se verifica isso, há uma série de estudos publicados, ou seja, a produtividade da soja no Brasil não aumentou na forma como ela aumentava antes das variedades transgênicas. Historicamente, com as variedades convencionais produzidas no Brasil aumentava muito mais sua produtividade em dez anos do que o que constatamos, dez anos após com a liberação das variedades de soja transgênica.

A soja convencional pode ser mais produtiva que a soja transgênica, inclusive a longo prazo.”

E qual o segundo absurdo nesse sentido?

O segundo absurdo, que se dizia naquela época, e que muito agricultor acreditou, era que a soja transgênica iria diminuir o custo de produção.

Como é que um agricultor vai diminuir o custo de produção se ele precisa usar cada vez mais uma semente, sobre a qual incide o pagamento de royalties?”

Muita gente achava que as empresas detentoras das patentes dessas sementes iriam fazer isso de graça para os agricultores, ou seja, que elas não iriam cobrar royalties, que elas eram “boazinhas” com os agricultores, assim como foi nos primeiros anos com o contrabando de sementes transgênicas produzidas na Argentina.

E o terceiro argumento mais absurdo era imaginar que essas mesmas empresas, “boazinhas” para os agricultores, as mesmas que produzem os agrotóxicos, iriam produzir um tipo de soja que não precisaria mais dos agrotóxicos.

Produção de soja livre de transgênicos na Comunidade Fidel Castro, em Centenário do Sul, Paraná. Foto: Maicon Veirick
Quais as consequências disso hoje?

Hoje nós sabemos que desde a aprovação da soja transgênica em 2015, o uso de agrotóxicos triplicou nesse período. E isso é muito lógico, do ponto de vista das estratégias das empresas que produziram a soja transgênica. 

As promessas dos transgênicos não foram confirmadas e pode ser que agora seja novamente viável voltar a produzir soja livre de transgênicos no Brasil, porque já podem ser visualizados melhores preços e menores custos. Muitos já se deram conta disso há muito tempo, especialmente os que teriam sementes convencionais e grandes áreas de terras disponíveis para evitar a contaminação por parte de vizinhos. Se a saca de soja receber mais de vinte reais há uma possibilidade muito grande, inclusive dos grandes produtores voltarem a produzir soja não transgênica no Brasil.

A soja transgênica nunca recebeu um preço melhor, porque ninguém pagaria a mais para ter uma soja transgênica com as atuais características. E a soja não transgênica continuou tendo um preço melhor durante todos esses anos.”

Como esse cenário pode colaborar na transição para um aumento na produção de soja livre de transgênicos?

Os agricultores que eu entrevistei sobre a soja orgânica recebiam 50% a mais naquela época. Se já havia garantia de preço na França naquela época, imaginem agora! Então, é possível também haver uma transição para soja orgânica na sequência por esse argumento, mas não é só uma questão de custo de produção e de preço que faz com que um agricultor decida não produzir soja transgênica. Existe aquele agricultor que continua achando mais fácil combater as ervas daninhas com glifosato, mesmo recebendo um preço a mais por saca de soja não transgênica, porque eles consideram não ter gente disponível para fazer a capina. E para produzir milhares de hectares de soja sem ter gente para capinar, é realmente complicado. Então, no contexto da concentração de terras no Brasil a soja transgênica foi fundamental para expandir a produção para o Norte do Brasil em grandes áreas.

O ponto central no uso de transgênicos e agrotóxicos tem mais a ver com o custo da mão de obra nessas monoculturas?

Essa é, inclusive, parte do atual debate sobre a Reforma Agrária no Brasil. Porque aquela área que era para ser destinada à Reforma Agrária pode ser usada para a produção de soja em grande escala. Ela não é mais considerada improdutiva. Com a produção de soja essas áreas passam a ser mais produtivas do que antes e praticamente não se precisa mais de gente para produzir.

Eu aprendi isso desde criança, capinando na soja, debaixo do sol de um verão de quarenta graus de temperatura. A enxada representa a penosidade do trabalho no Sul do Brasil. Havia, inclusive, aqueles “rituais de queima de enxada” que o pessoal fazia. As pessoas eram convidadas a trazer enxadas para participar de um “dia de campo” patrocinado pelas empresas de agrotóxicos e, ao final, elas ganhavam um litro de glifosato de brinde, depois que as enxadas eram queimadas em um “ritual para se livrar da penosidade do trabalho”. 

E como fazer essa transição, então?

A transição pode se dar, muito mais por uma questão de auto-organização, de utilizar essa soja em outra cadeia alimentar, para produzir carne, ovos e leite, para produzir óleo, para produzir alimentos, do que simplesmente por uma questão de preço. E a comida deve ser produzida sem venenos. 

Por isso, há um outro debate que é importante levar em consideração, porque a soja não convencional, com essa ideia de que se reduziria o uso de agrotóxicos, acabou levando a fama de que os agrotóxicos que se usaria na soja não transgênica seriam piores, do ponto de vista ambiental e de saúde humana, do que o glifosato. Porque o glifosato em si realmente é menos prejudicial do que outros agrotóxicos que já vinham sendo usados na soja. Mas, para que o glifosato possa funcionar como herbicida, é adicionado em suas formulações comerciais um produto surfactante (para reduzir a tensão superficial do tecido vivo e permitir que o herbicida penetre na planta, deixando mais resíduos), a taloamina, que foi proibida na Europa por ser extremamente prejudicial à saúde humana, animal e o ambiente.

Embora tenha havido tentativas de proibição de seu uso, a taloamina continua sendo utilizada e ainda consta na maioria das formulações de glifosato usado no Brasil. O uso desse produto adicional, mais tóxico que o princípio ativo (glifosato), não é mencionado na maioria dos estudos sobre toxicidade do Roundup, por exemplo, a sua marca mais famosa no mercado. O outro argumento de que a soja sem transgênicos poderia ser mais tóxica porque nela seriam utilizados o 2-4-D e outros produtos, agora já está superado. Com a resistência de ervas daninhas ao glifosato, outras resistências foram desenvolvidas na soja transgênica e já se está utilizando 2-4-D na soja transgênica no Brasil, assim como outros agrotóxicos para combater essas plantas que se tornaram resistentes.

Quais as consequências do uso de tantos venenos proibidos na soja transgênica para a culturas convencionais e como mudar isso?

Nesse momento, avalio que estamos em melhores condições para fazer uma transição, porque a experiência da soja transgênica mostrou que ela não deu certo, inclusive, ela foi uma experiência de soja geneticamente piorada. Ao contrário da ideia de melhoramento genético, a transgenia é um pioramento genético. E um pioramento tão grande que cheguei a chamar os transgênicos de “sementes do mal”, naquele livro publicado no Brasil pela Editora Expressão Popular. São do mal porque não funcionam como havia sido prometido e porque a semente é pior, ainda contamina as nossas variedades que são melhores, aquelas que foram produzidas com dinheiro público. Então ela é tão ruim que ela contamina e destrói o que ainda há de variedades melhores disponíveis no Brasil. E, junto com ela, aumentam o uso de agrotóxicos, a concentração de terra, a desigualdade social, o êxodo rural, a pobreza e a fome.

Quais as perspectivas para alavancar a produção de soja não transgênica no Governo Lula?

Primeiramente, estou positivamente surpreendido com o novo governo, porque eu não esperava que ele tivesse esse discurso ecológico nesse momento. Mas, isso está ocorrendo e é fundamental, porque o mundo olha para esse Brasil que não vai mais destruir a Amazônia e também passa a se preocupar com as mudanças climáticas, etc. Na campanha eleitoral eu entendi que o foco do primeiro ano do governo Lula, vai ser o combate à fome. Se ele conseguir combater a fome e o Brasil voltar a ficar fora do mapa da fome da ONU, reduzir o desmatamento e diminuir a violência institucional, avalio que isso já representa muita coisa.

Também tenho visto um discurso muito forte de fortalecimento da agricultura familiar e camponesa. Isso se traduz, por exemplo, na volta do MDAF (Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar), que é algo muito importante no Brasil e, com a nomeação de um Secretaria de Agricultura Familiar (SAF), o Vanderley Ziger. E eu também acompanhei o discurso do ministro da agricultura no Paraná, dizendo que ele apoia a agricultura familiar e camponesa, em uma atividade do MST. Agora eu espero que ele esteja na abertura da colheita do arroz orgânico, porque eu acho que esse é um grande símbolo também usado muito na campanha eleitoral.

Esse é o grande debate quando a gente fala em soberania alimentar. Não é produzir alimento para alimentar os europeus, os chineses, etc. Precisamos produzir alimentos para alimentar os brasileiros. Acho que esse exemplo também foi muito bom durante a pandemia. Eu não vi um latifundiário fazendo doação de alimentos, vocês viram algum? Durante a pandemia essa discussão sobre soberania alimentar voltou muito forte e tem mostrado que os consumidores do Brasil também querem produtos orgânicos, comprando diretamente dos agricultores regionalmente.

Quais seriam as ações necessárias pelo Governo Lula para a transição da soja no país, até chegar à orgânica?
Partilha de alimentos pelas famílias das Comunidade Fidel Castro e Maria Lara do MST, que também produzem soja não transgênica, em Centenário do Sul/PR. Foto: Eliane Machado

O governo precisa voltar a fortalecer o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). São 47 milhões de crianças no Brasil podendo consumir alimentos saudáveis nas escolas. Se a maior parte disso pudesse vir dos agricultores familiares da região, isso teria um impacto muito grande e, claro, a volta do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), porque não é só comprar alimentos para as escolas, mas também para os hospitais, para todas as instituições públicas. E a volta do PLANAPO (Programa Nacional de Fortalecimento da Produção Orgânica e Agroecológica), criado com a participação ativa das mulheres agricultoras, que precisam de mais crédito governamental, assim como a juventude do campo, que é algo fundamental. 

Se a soja for transformada em alimento, assim como o arroz é alimento básico, assim como o feijão e a mandioca, e se o MST pudesse ser o campeão de soja orgânica, assim como tem sido o maior produtor de arroz orgânico, com apoio do governo federal, eu acho que esse aí é um mote muito bom para mostrar para o mundo a importância de produzir alimentos no próprio país.”

Dois ministros estiveram participando da festa da colheita da soja em Centenário do Sul [1ª Festa da Colheita de Soja Livre de Transgênico do MST no PR, realizado em 25 de fevereiro], apoiando essa iniciativa. Agora falta ter um apoio pesado em crédito, em seguro agrícola, em assistência técnica, incentivo à produção, industrialização e comercialização. Seria importante que o presidente da Embrapa entendesse isso, porque é estratégico para a soberania alimentar brasileira que voltemos a produzir sementes. No passado, 43% de sementes de soja, produzidas pela Embrapa, foram entregues para serem patenteadas pela Monsanto, que transformou essa soja, construída com dinheiro público, em soja resistente ao glifosato. 

Os ministros Agricultura, Carlos Fávaro, e do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, participara da 1ª Festa da Colheita de Soja Livre de Transgênico do PR, em Centenário do Sul. Foto: Juliana Barbosa

Anunciei a criação de um observatório social e ambiental da soja no CONESUL, com o lançamento no dia 15 de março. Essa é uma ideia antiga, só que agora nós queremos conectar com outras universidades do Brasil, também com Paraguai, Argentina e Uruguai. Lá em Assunção, por exemplo, há um grupo de pesquisadores na área da medicina trabalhando com efeitos do glifosato na saúde, medindo a quantidade de glifosato no leite materno. A gente está preparando esse observatório na UFFS em Chapecó e queremos também integrar ele com o pessoal que pesquisa Agroecologia em nossos campi do Paraná (em Laranjeiras do Sul e Realeza).

Muitos dos nossos pesquisadores estão colocando bastante energia nisso, e, quem sabe, o governo agora também nos ajude. A ideia é analisar os efeitos sociais, econômicos, ambientais e sanitários da produção de soja na América Latina. Podemos mostrar como a soja brasileira tem veneno, tem trabalho escravo, tem trabalho infantil e tem vários tipos de transgênicos combinados. Teremos um site em inglês/português/espanhol que já está sendo montado para apresentar nossas atuais publicações e, em breve, teremos mais novidades. A produção de soja apresenta fortes contradições, mas também há algumas saídas interessantes sendo apontadas. Então, não é só para mostrar o quanto ruim é a atual produção da soja brasileira e latino-americana. Também temos pesquisas mostrando que é possível produzir soja de outra maneira.

A tese de doutorado disponível para download gratuito: “Soja Orgânica Versus Soja Transgênica: um estudo sobre tecnologia e agricultura familiar na Região Fronteira Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.” Fonte: www.uffs.edu.br

*Esta é a segunda parte da entrevista, realizada por videoconferência no dia 29 de fevereiro, com o professor Drº Antônio Inácio Andrioli, que falou sobre as possibilidades, dificuldades e desafios do plantio de soja debatido na parte 1 (clique aqui para acessar).

**Editado por Solange Engelmann