Artigo

“Que fazer?”, de Lenin: atualidade e relevância para nossa prática política hoje

Na data que marca o nascimento do revolucionário russo, artigo reflete atualidade de uma de suas principais obras

Por Miguel Yoshida*
Da Página do MST

Em 22 de abril de 1870 nascia, na Rússia, Vladimir Illich Ulianov, mais tarde conhecido como Lenin, um homem que dedicou e empenhou toda sua vida em construir uma nova sociedade, baseada não na exploração do ser humano pelo ser humano, mas na cooperação entre si, a partir de novos valores que têm como princípio a humanidade e não a mercadoria.

Principal dirigente da Revolução Russa, de 1917, que transformaria toda a história da humanidade no século XX, Lenin deixou um grandioso legado prático – a direção do processo revolucionário que derrubou o capitalismo na Rússia e a construção de uma sociedade socialista – e teórico – conjunto de textos e intervenções que somam mais de 52 volumes de 400 páginas em média cada – fundamental ainda hoje para todos e todas que lutam por uma sociedade mais justa.

Um dos consensos em torno da figura de Lenin é a de que ele é um dos principais continuadores da teoria social elaborada por Karl Marx e Friedrich Engels desenvolvendo-a de maneira criativa, a partir da realidade da luta de classes russa, dos princípios e do método desta teoria. Nesse sentido, a reprodução nas ideias do movimento do real é o grande guia para a relação entre prática política e formulações teóricas.

É importante dizer que Lenin não é um ser genial que surge isolado na Rússia, ao contrário ele desenvolve sua práxis a partir de uma longa tradição de luta contra a autocracia russa e pela construção de uma sociedade livre da exploração; é só a partir desse acúmulo coletivo e em meio a um conjunto extremamente preparado de lutadores sociais que ele desponta como o principal dirigente do movimento revolucionário.

A revolução será o eixo organizativo da prática e do pensamento de Lenin, para Florestan Fernandes, ele “se impôs como tarefa de sua vida a adequação instrumental, institucional e política do marxismo à concretização da revolução proletária […] graças à situação e a experiências revolucionárias, o marxista russo ganhava uma nova compreensão a prática (e, por meio dela, da teoria), definindo ambas a partir da revolução e da ação revolucionária”.

É a partir dessa perspectiva que ele desenvolve seus estudos da teoria social de Marx e Engels e a ação política contra o tsarismo e pela construção do socialismo. Nesse sentido é interessante observar a relação entre as análises econômicas e sociais realizadas por Lenin e as formulações políticas revolucionárias estratégicas e táticas. Ainda segundo Florestan Fernandes, é possível dizer que a teoria do partido desenvolvida em Que fazer?, de 1902, é a contraface política da análise empreendida em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, de 1899; podemos estender essa formulação a outro paralelo encontrado na caracterização da nova fase de desenvolvimento do capital presente em Imperialismo, estágio superior do capitalismo, de 1916, e a proposta revolucionária de O estado e a revolução , de 1917.

Algo que chama a atenção na produção teórica com foco na política – como em Que fazer? e O estado e a revolução – do revolucionário russo é o fato de que apesar de suas elaborações dizerem respeito à realidade russa em que ele vivia, elas trazem também elementos e princípios que vão muito além dessa conjuntura.

Analisemos brevemente o texto de 1902 em que ele desenvolve sua teoria do partido. Esse livro que tem como subtítulo “questões candentes do nosso movimento” é um desdobramento detalhado do artigo “Por onde começar”, publicado, em 1901, no jornal Iskra. Nessa época Lenin já é uma figura reconhecida no movimento socialista russo – a social-democracia – e na segunda internacional. As reflexões e propostas de Que fazer? giram em torno dos debates organizativos da luta contra o tsarismo com duas outras correntes da social-democracia russa, uma inspirada no revisionismo teórico de Eduard Bernstein denominada como “economistas” e outra com forte atuação na Rússia, chamada de “terroristas” que defendiam ataques diretos contra as autoridades. A questão central é a relação entre as lutas operárias sindicais e a luta mais ampla pela transformação social, do que decorre a tensão entre a consciência sindical e a consciência social-democrata.

A teoria desenvolvida por Lenin leva em conta a diferenciação entre as lutas econômicas travadas pelos sindicatos que se restringem às reivindicações imediatas pela melhoria nos salários, nas condições de trabalho etc. e as lutas políticas que incluem aspectos para além da exploração entre patrão e operário, como, por exemplo, a relação de opressão do estado, das forças políticas repressoras, da religião entre outras.

Para o revolucionário russo, as lutas reivindicativas apesar de serem fundamentais não são suficientes para a transformação social, pois suas conquistas não se direcionam espontânea ou naturalmente para o questionamento da ordem social. Assim, é necessária uma estrutura organizativa que tenha como objetivo ampliar as lutas e a consciência desses que estão lutando numa perspectiva mais estrutural que tem como pano de fundo a tradição socialista desenvolvida até ali.

Pensando em termos mais atuais, poderíamos dizer que para Lenin, as lutas por direitos não têm, em si, um caráter revolucionário e podem ser acomodadas dentro da política burguesa. Nesse sentido, a tarefa da organização é a de fazer esse movimento avançar no questionamento e enfrentamento da estrutura social como um todo, ou seja, torná-lo revolucionário.

No livro, essa reflexão aparece a partir de uma formulação de Karl Kautsky de que a consciência revolucionária vem de fora, da intelectualidade revolucionária que tem o domínio da tradição teórica e organizativa socialista e não do próprio movimento operário. Tal princípio parece-nos bastante acertado no sentido que não há formação da consciência revolucionária de maneira espontânea e é a própria experiência histórica que nos demonstra isso, não nos faltam exemplos de movimentos sindicais ou de luta por direitos que não questionam a ordem burguesa. Se por um lado a luta social reivindicativa é um elemento central para o acúmulo de forças, a formação numa perspectiva questionadora da ordem e afirmativa de um projeto da classe trabalhadora – socialista – é fundamental para a construção de uma organização revolucionária.

Como desdobramento disso, Lenin trabalha a relação entre teoria, propaganda e agitação. Estas três atividades se diferenciam sobretudo por sua forma, as duas primeiras a partir de uma questão concreta traz elementos que estão por trás dela, como o próprio Lenin exemplifica: “da questão do desemprego deve explicar a natureza da crise capitalista […]”, ou seja, trabalha muitas ideias que podem ser apropriadas não diretamente pelas massas, mas por pessoas com algum acúmulo na luta social. Ao passo que o agitador trabalhará a partir desse mesmo fato uma única ideia – a contradição entre a concentração de riqueza e o aumento da miséria – que desperte a indignação e o descontentamento.

A propaganda e a agitação são fundamentais para o desenvolvimento da consciência revolucionária das massas, pois têm como tarefa fazer denúncias políticas em todos os terrenos: econômico, social, cultural, ambiental. Para tanto é necessária uma estrutura organizativa com uma ferramenta que traga essa unidade de análise em diferentes regiões em que a organização está presente. Lenin defendia, à época, a necessidade de um jornal para toda a Russia, em vez de diversos jornais locais. Ele não está interessado aqui em debater meios de comunicação, mas sim de pensar uma ferramenta organizativa que ao mesmo tempo que consiga veicular as denúncias que podem despertar a indignação contra o sistema social possibilite também a organização seja para a distribuição dos jornais, seja para a leitura coletiva e debate dos problemas comuns.

Estes são apenas alguns poucos aspectos desta obra que demonstram a sua atualidade e relevância para nossa prática política ainda hoje. É certo que há algumas questões tratadas ali que são muito próprias do contexto russo como a dinâmica do movimento operário e a necessidade de uma organização clandestina e bastante coesa. No entanto, ela se constitui como um importante ponto de virada no pensamento marxista e na teoria da organização política revolucionária.

Concordamos, mais uma vez, com Florestan Fernandes quando ele nos diz que “O que Lenin faz com o marxismo só pode ser definido de uma maneira: ele converte o marxismo em processo revolucionário real”. É nesse espírito que comemoramos (trazemos à memória) os 153 anos desse revolucionário cuja vida e obra nos deixam lições imprescindíveis para a construção de uma sociedade justa em que a humanidade prevaleça sobre a mercadoria.

*Doutor em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa e editor da Editora Expressão Popular
**Editado por Gustavo Marinho