Memória

“O monumento não pode ser destruído. A história não deve ser apagada e nem se repetir”, aponta MST

Projetado por Oscar Niemayer, obra às margens da BR-277 em Campo Largo (PR) homenageia vítimas da luta pela Reforma Agrária. Organizações reivindicam tombamento.
Todo ano, no dia 02 de maio, trabalhadores rurais Sem Terra se reúnem em frente ao monumento. Foto: Juliana Barbosa/MST-PR

Por Assessoria de comunicação Terra de Direitos

Toda pessoa que dirige à Curitiba (PR) ou retorna da capital paranaense pela BR-277 se depara, na altura do quilômetro 108, em Campo Largo (PR), com um grande monumento às margens da rodovia. Ainda que a obra projetada pelo renomado arquiteto Oscar Niemayer não seja amplamente divulgada como marco do Estado – em lugar de destaque como merece, o monumento erguido por força de mãos de Sem Terra, especialistas e organizações sociais representa uma memória coletiva da luta pela Reforma Agrária e é objeto de medidas de proteção e tombamento. 

“O monumento traz presente um dos piores momentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e da violência contra a classe trabalhadora. A história não deve ser apagada. Por isso o monumento não deve ser destruído, para que nunca mais na história possa acontecer o que aconteceu com a gente ali, naquele momento”, destaca o integrante da direção estadual Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Ireno Prochnow. Passados vinte e dois anos, os olhos de Ireno ainda marejam ao relatar o que presenciou naquele dia 02 de março de 2000.  

Nesta data cerca de 50 ônibus com trabalhadores rurais Sem Terra seguiam, no dia 02 de maio, em caravana do interior do Paraná para a capital para participar da Marcha pela Reforma Agrária, organizada pelo MST, em comemoração ao Dia dos Trabalhadores. Na BR-277, em razão de um bloqueio feito pela Polícia Militar do Paraná, os passageiros desceram de um dos ônibus para perguntar o que estava ocorrendo, quando policiais militares efetivaram sequenciais disparos contra os trabalhadores. Além de tropa de 1500 agentes de segurança pública, a obstrução e repressão conteve uso de cães, bombas de gás, cavalaria e armas letais. Sem amparo de qualquer ordem judicial, a ação da Polícia Militar agiu por determinação do Governo do Estado, que estava sob comando de Jaime Lerner (antigo PFL). A ação da polícia resultou em mais de 185 feridos e na morte do trabalhador rural Antônio Tavares.  

Logo após o episódio, Niemeyer tomou conhecimento da intensa repressão e projetou a obra de 10 metros de altura, com um trabalhador rural em pé no topo e portando uma foice. Como um corpo com área vazada por concreto, o movimento do sol sob o monumento ao longo do dia faz alternar a projeção do desenho do corpo do trabalhador ora no chão, ora no ar – em constante movimento. “E ainda que a gente não esteja ao lado do monumento todo dia, esse movimento do corpo nos faz lembrar que estamos lutando e resistindo”, rememora a integrante do setor de cultura do MST/PR, Sylviane Guilherme.  

Local de passagem, o monumento também tem sido como espaço de reafirmação da memória coletiva e dos símbolos de luta. “Nós, enquanto trabalhadores rurais de vários municípios, de assentamentos e acampamentos, viemos sempre à capital e ao passar pelo monumento dizemos ao companheiro Tavares que sua memória está viva entre nós e que transformamos a memória em luta”, relata a também integrante da direção estadual do MST-PR, Dilce Noronha.  

Os resgates, as memórias e a reafirmação da história paranaense não presente nos relatos oficiais foram compartilhadas no Seminário Monumento Antonio Tavares: diálogos sobre memória, patrimônio e direito à terra, realizado em Curitiba no dia 19 de abril.  

Sobrevivente do Massacre, a liderança estadual Ireno enfatiza que o que ocorreu naquele 02 de maio de 2000 não deve voltar a acontecer. Foto: Lizely Borges
Sobrevivente do Massacre, a liderança estadual Ireno enfatiza que o que ocorreu naquele 02 de maio de 2000 não deve voltar a acontecer. Foto: Lizely Borges

Corte Interamericana 

Desde 2001, quando foi construída, a obra tem sido mantida e preservada por esforços voluntários do MST e parceiros. No entanto, desde 2016 a empresa proprietária do terreno onde a obra foi instalada manifesta interesse em removê-la do local. Em 2001 a empresa cedeu a área para instalação do monumento. Segundo o contrato de comodato firmado entre a empresa e organizações sociais o período de vigência da sessão seria de cinco anos. Antes do fim de cada período de 5 anos o contrato poderia ser rescindido por manifestação expressa. Caso as partes não se manifestem durante o período, a renovação do contrato é automática, por um novo período de 5 anos – durante o qual a cessão da área está assegurada. A empresa tentou rescindir o contrato em fevereiro de 2016, mas notificou fora do prazo – após 21 de fevereiro – e já na vigência do novo período de 5 anos de validade do contrato, ou seja, em 2021. Desde então tem sido uma decisão excepcional da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), que tem assegurado a proteção ao monumento. 

Em junho de 2021 a Corte determinou, em caráter excepcional, que o Estado brasileiro proteja o monumento. O caráter excepcional da decisão pela Corte Interamericana de Direitos diz respeito ao fato de que o órgão acolhe medidas provisórias que assegurem proteção, principalmente, a pessoas em risco de vida, e não a um bem cultural – como um monumento. No entanto, a Corte reconheceu que o pedido realizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Terra de Direitos e Justiça Global para proteção da obra cumpre três condições fundamentais para determinação de medida provisória: a defesa da obra é urgente, tendo em vista o risco de dano com possível remoção do monumento; a ameaça ao monumento e à memória de luta é grave; e uma possível danificação à obra configura-se como dano irreparável.  

“A Corte reconheceu sua importância simbólica para os familiares e as trabalhadoras e trabalhadores Sem Terra vítimas desse episódio de grave violência”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Daisy Ribeiro. A medida cautelar tem validade até a Corte proferir a decisão sobre o caso “Antônio Tavares Pereira e outros vs. Brasil”. O caso foi levado à Corte pela ausência de resposta do Brasil ao conjunto de violências presentes neste episódio.  

Ações pelo tombamento 

Para garantir a integridade do monumento e amparada na Constituição Federal e leis municipais sobre preservação da memória, organizações sociais solicitaram ao município de Campo Largo, em 2021, o tombamento da obra. O processo administrativo ainda não foi finalizado, portanto não há decisão definitiva proferida.  

Com processo administrativo instaurado, o Departamento de Cultura do município solicitou uma análise da Procuradoria Geral da Prefeitura e notificou a empresa cessionária, que declarou não estar interessada em continuar com o contrato de comodato.   

Ignorando o elemento territorial como fator simbólico da obra – já que o monumento está nas proximidades de onde ocorreu a violência contra os trabalhadores -, a empresa sugeriu deslocamento da obra e declarou que o monumento “é apenas um pedaço de concreto no meio do mato”. 

Na denúncia realizada à Corte Interamericana as organizações apontaram que a remoção do Monumento não só o descaracterizaria, já que sua vinculação com o local específico onde se encontra é fundamental -, mas também traria consigo um risco de danos graves, inerentes a qualquer deslocamento de um bem cultural. 

Em 2016, o Ministério Público do Paraná já havia realizado pedido de tombamento do monumento ao Conselho Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico. Contudo, o pedido de tombamento foi rejeitado a partir de parecer da Procuradoria Geral do Estado. Desde o momento de sua construção, em 01 de maio de 2001 o monumento ainda não passou por um reconhecimento do Estado ou ação efetiva, ampla e integral voltada para a sua proteção e manutenção.  

“Esse monumento tem uma importância não apenas simbólica do passado e da memória de violência, mas também é uma obra de arte. Como arte, ela pereniza a luta pela reforma agrária. E por é isso que as pessoas contrárias ao MST se incomodam ao ver o monumento”, enfatiza o professor de direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Carlos Frederico Marés.  

“É importante que aqueles que venham ou saiam da capital paranaense sintam um incômodo e questionem o porquê daquele monumento. Com ele, é criada uma rasura, um rasgo na história paranaense, uma história oficial que não reconhece a história de luta dos camponeses”, sublinha o professor de direito da Universidade Federal do Paraná, Leandro Gordsdorf. 

A intensificação das ações de repressão a defensoras e defensores de direitos humanos e a retirada de direitos torna, na leitura dos movimentos, ainda mais necessária e urgente a preservação de símbolos da luta coletiva. “O monumento no Paraná se insere no conjunto de esculturas de protesto projetadas por Niemeyer. Elas representam um momento da redemocratização do Brasil, mas tratam de assuntos que continuam com ameaças ao estado democrático de direito e à vida das pessoas”, aponta o conselheiro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Nivaldo Vieira de Andrade Júnior.