Agronegócio

Expansão de eólicas ameaça comunidades e Caatinga no semiárido do Rio Grande do Norte

Moradores e pesquisadores denunciam barulho, cisternas danificadas, desmatamento e falhas no processo de licenciamento
Fotos: João Léo/Ronin Digital

Por Étore Medeiros e Iano Flávio Maia
Da Agência A Pública

“Onde eles botam essas bichas, ninguém pode trabalhar. Onde tem essas bichas, casa não pode ter perto. Que nem essa aí”, fala indignado José Ponciano de Oliveira, 73 anos, enquanto aponta para o enorme aerogerador, de 135 metros de altura, construído ao lado de sua casa. “Porque se uma bicha dessas voa para cima de uma casa, não acaba com tudo? Oitenta mil quilos?”, questiona o agricultor. Ele mora há mais de 40 anos no sítio Cabeça dos Ferreira, comunidade quilombola Macambira, entre os municípios de Bodó, Lagoa Nova e Santana do Matos, na Serra de Santana, interior do Rio Grande do Norte. A região é uma dentre diversas outras dos estados do Nordeste que têm experimentado o avanço de eólicas — e, com eles, ameaças ao estilo de vida da população.

Família Oliveira convive dia e noite com o aerogerador instalado em sítio vizinho, a 110 metros de sua residência, na comunidade quilombola da Macambira, na Serra de Santana (RN)

A monumentalidade e o barulho constante do aerogerador dominam todo o ambiente: casa, terreiro e curral. Pouco mais de cem metros separam a casa da turbina. O equipamento é instalado em uma propriedade vizinha, mas bem próximo à cerca e à casa de Ponciano.

“Essas torres, logo quando foram instaladas [em julho de 2016], eu tampava até os ouvidos com algodão, mode o barulho. Porque a pessoa se incomodava muito”, conta Maria dos Milagres dos Santos Pinheiro, 50 anos, mulher de Ponciano. “No início, tivemos que dormir em outras casas por causa do barulho e do medo, conta a filha, Ana Beatriz Pinheiro de Oliveira, 23 anos.

Pela regulamentação vigente, a resolução Conama 462, de 24 de julho de 2014, a distância não poderia ser menor que 400 metros, pelos riscos envolvidos e impactos gerados na operação do equipamento. 

Segundo os moradores, chegou a ser iniciada uma conversa com a empresa Gestamp Eólica Macambira para a construção de uma outra casa, mais longe das turbinas, mas a proposta nunca teve andamento. A empresa foi procurada pela reportagem, mas não atendeu aos pedidos de posicionamento.

Relatos como o da família da comunidade Macambira têm aparecido em várias regiões dos estados do Nordeste nos últimos anos junto ao avanço dos empreendimentos eólicos. O processo de transição energética pelo qual passa o país, que busca diversificar a matriz, a fim de reduzir a dependência das hidrelétricas e também o uso de combustíveis fósseis – cuja queima é a principal responsável pelo aquecimento global –, vem sendo acompanhado de impactos socioambientais que ainda precisam ser resolvidos.

Em viagem por Rio Grande do Norte, campeão de geração eólica no país, e Paraíba, a Agência Pública encontrou, além do incômodo perturbador do barulho, desmatamentos, danos a cisternas de armazenamento de água potável e violações a direitos. Para especialistas ouvidos pela reportagem, processos de licenciamentos ambientais simplificados, com poucas exigências, estão na origem do problema. Pesquisadores alertam também que nem mesmo a promessa de desenvolvimento local tem se concretizado.

Promessas das empresas de energia eólica ficaram no papel, dizem moradores

Em maio de 2023, o Brasil atingiu a marca de 10 mil aerogeradores em operação – há 10 anos, eram 1.300. A energia gerada por eles representa 13,4% da matriz elétrica brasileira, segundo dados de julho da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Somente no Rio Grande do Norte, 3 mil estão em operação, com 7,9 gigawatts de potência fiscalizada. A Bahia, segunda colocada no ranking, vem logo atrás, com 7,6 GW e 2.878 aerogeradores. Juntos, os dois estados já têm mais potência instalada que a usina hidrelétrica de Itaipu.

Embora não sejam novidade em solo potiguar, onde há parques eólicos em operação desde 2006, os empreendimentos têm se expandido a um ritmo acelerado nos últimos anos. Somente em 2023, até a primeira semana de julho, 262 novos aerogeradores entraram em operação comercial. Cada vez mais potentes e mais altos, os equipamentos atuais podem chegar à altura de 200 metros, o equivalente a um prédio de 66 andares.

Inicialmente instalados massivamente na faixa litorânea norte do estado, onde ainda continuam a se expandir, os novos empreendimentos têm se voltado também para o interior, sobretudo o sertão do Seridó. Hoje, a região já responde por 7% da produção do estado, puxada pela ocupação, entre 2015 e 2017, da Serra de Santana, onde fica a comunidade Macambira.

Por lá, a população sente a ressaca da instalação e operação dos projetos eólicos e reclama do incômodo na nova vizinhança. Moradores e comerciantes das comunidades ao longo da RN-087 – rodovia que liga os municípios de Lagoa Nova a Tenente Laurentino Cruz – também se queixam do tráfego de veículos pesados e das péssimas condições da via, que não é pavimentada.

“Quando chove, as pessoas não conseguem transitar porque é muita lama, muito buraco e nós não tínhamos isso. As pessoas adoeceram com bronquite asmática porque a poeira aumentou. [As empresas] falam que com um caminhão pipa conseguem mitigar essa poluição, mas não conseguem”, afirma Anderson Palmeira, presidente da Associação de Desenvolvimento Comunitário de Buraco de Lagoa, que representa moradores de cinco localidades na região. 

Francisco Canindé, da comunidade Baixa Grande, município de Lagoa Nova, lembra que o processo de convencimento da população começou ainda em 2002, com promessas de pavimentação de estradas e duplicação de pontes. “Nada foi cumprido, ficaram só as promessas no Powerpoint”, diz. A região onde vive não aceitou a instalação das turbinas, mas foi cortada por uma estrada de acesso que já provocou muita poeira e protesto dos moradores. Segundo ele, no Assentamento Santa Clara, foi preciso que os moradores bloqueassem a via para que as empresas pavimentassem trechos próximos às residências. 

Em outra comunidade próxima, na Serra de Santana, os problemas apontados pelos moradores são rachaduras nas cisternas de placas – fruto de projetos do governo federal com a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), executados a partir dos anos 2000. “No período de seca, as famílias dependem dessas cisternas para beber água, e as empresas não reconhecem que foram eles [que causaram os danos] com o trânsito de veículos pesados, com as explosões com dinamites. Quando a gente vai procurar, nenhuma delas se responsabiliza”, afirma o morador Anderson Palmeira. 

A própria ASA apontou este, entre outros problemas, em carta entregue ao presidente Luís Inácio Lula da Silva, quando ele visitou o Recife, em março deste ano. “As terras onde as turbinas estão instaladas tornam-se improdutivas; a saúde das famílias que vivem nas proximidades se deteriora física e mentalmente; as mulheres são expostas a todo tipo de violência física e sexual. Isso sem contar a quantidade de cisternas abandonadas, seja porque as famílias não conseguem permanecer em suas casas, devido ao barulho contínuo, ou pelo pó gerado pelas turbinas que contamina a água, seja porque as cisternas acabam danificadas no processo de geração da energia”, aponta a entidade. 

Avanço das renováveis pode aumentar desertificação

No novo ciclo de expansão dos empreendimentos de energia pelo Seridó, estão na mira os topos de serra. A expectativa é que a região forneça 25% dos próximos 9 GW de energia eólica previstos para o Rio Grande do Norte, com 538 dos 1.873 novos aerogeradores.

Do outro lado da fronteira estadual, na Paraíba, mais 213 torres eólicas já estão em operação e outras 618 devem ser instaladas nas serras, onde também já há forte investimento em energia solar.

Trata-se, porém, de uma região ambientalmente sensível. Dividido entre Rio Grande do Norte e Paraíba, o Seridó abriga um dos seis núcleos de desertificação mais avançada no Brasil. Situação que pode piorar com o desmatamento da Caatinga, causado, em parte, pela implementação dos empreendimentos.

No ano passado, cerca de 4 mil hectares foram desmatados na já fragilizada Caatinga para a implantação de complexos eólicos ou solares, segundo dados do Mapbiomas Foi a primeira vez que a plataforma monitorou especificamente a supressão vegetal para empreendimentos energéticos.

No Rio Grande do Norte, 326 hectares de Caatinga foram derrubados para instalação dos empreendimentos, sendo metade no Seridó. Do lado da Paraíba, a região concentrou 95,6% dos 901 hectares desmatados na Caatinga pelo avanço das duas fontes de energia renovável. 

Junto com a energia escoada da Caatinga para o Sistema Interligado Nacional, vão também os recursos dos impostos. Foto: João Léo/Ronin Digital

O desmatamento causado para a instalação de empreendimentos de energia eólica e solar representam apenas 2,9% da perda detectada no bioma, mas chamam a atenção por atingirem uma área considerada ainda mais preservada. “O desmatamento atual no bioma está mais fortemente associado à expansão das atividades agropecuárias”, explica o pesquisador Washington Rocha, que coordena as análises sobre a Caatinga no MapBiomas.

Mas as supressões ligadas às renováveis, diz o pesquisador, estão avançando para locais onde existem remanescentes de Caatinga onde há formações florestais. “Possivelmente é onde se encontram os refúgios da vida silvestre. Então precisaria haver uma discussão sobre o custo desse avanço. Que limites vai se dar a isso?”, questiona.

“A Caatinga é uma das regiões semiáridas mais biodiversas do mundo, com fauna e flora rica e adaptada, bem diferente daquele pensamento ultrapassado de um ambiente pobre e pouco importante”, complementa Paulo Henrique Marinho, biólogo e professor da Escola Profissional de Aracati (CE). 

Em seu doutorado em Ecologia, Marinho pesquisou os padrões de ocorrência de mamíferos de médio e grande porte na Caatinga potiguar. “Só de felinos, podemos encontrar até cinco espécies, entre elas os gatos-do-mato e as onças que, atualmente, por conta das ações humanas, estão cada vez mais ameaçadas e raras no bioma.” 

Na falta de um zoneamento ecológico específico e rigoroso, diz ele, os empreendimentos geralmente são instalados nas áreas mais estratégicas e prioritárias para a conservação da biodiversidade da Caatinga, como as serras, no caso das eólicas. Os topos de serras, por serem mais úmidos e com temperaturas mais amenas, são redutos de biodiversidade de fauna e flora, com ocorrência de espécies ameaçadas de extinção. 

Ele defende que a ocupação deveria ser acompanhada de medidas de conservação, como a criação de unidades de conservação como compensação dos empreendimentos. 

Empresas estariam omitindo informações para licenciar obras, questiona grupo independente

Um grupo de técnicos, cientistas e professores que se debruçou sobre os estudos de impacto ambiental de empreendimentos eólicos no Seridó alerta que os documentos feitos pelas empresas durante o processo de licenciamento ambiental são omissos e incompletos. Eles fizeram notas técnicas sobre, pelo menos, seis projetos na região.

“Os principais problemas que encontramos são ausência de informações relevantes para a qualidade desses estudos. A presença de animais ameaçados de extinção na área do empreendimento, por exemplo, não é sequer citada. Assim como questões sociais como a cultura local, a presença de comunidade tradicionais”, detalha Rani Sousa, integrante do grupo Seridó Vivo. 

Os pesquisadores apontam que as falhas começam nas exigências dos órgãos ambientais estaduais, que exigem apenas um estudo simplificado para este tipo de empreendimento, por considerá-los de baixo impacto.

A resolução 462/2014 do Conama diz que o órgão licenciador é o responsável pelo enquadramento. Quando considerar de baixo impacto, pode dispensar a realização do EIA-RIMA (Estudo de Impacto Ambiental, que é um documento mais completo) e audiências públicas. Porém segundo a resolução, entre os fatores que impedem a classificação como de baixo impacto está justamente a presença de espécies ameaçadas de extinção, o que tem sido ignorado pelos órgãos estaduais.

“A partir do momento que não se sabe o que existe no local, em termos de vida, de cultura, de patrimônio social, não se pode aferir com clareza quais são os impactos que serão gerados ou como minimizá-los. Se uma coisa não existe, ela não será impactada, logo, o impacto não precisa ser minimizado”, critica Rani.

Rani Sousa, do Seridó Vivo, instituto socioambiental que tem analisado e contestado a qualidade dos estudos de licenciamento. Foto: João Léo/Ronin Digital

Para Zoraide Pessoa, professora do Instituto de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e coordenadora do Laboratório Interdisciplinar Sociedade, Ambiente e Territórios (LISAT), o licenciamento ambiental de empreendimentos energéticos nos estados do Nordeste ficou tão simplificado que perdeu a capacidade de controlar os impactos. “Hoje, o licenciamento ambiental é utilizado do ponto de vista fiscal, como atrativo. Quanto menos obstáculo ele causar, mais atrativo vai ser para viabilizar. Há uma desconfiguração. A gente sente uma carência de política de estado, não apenas no Rio Grande do Norte, mas em todos os estados do Nordeste”, afirma.

O grupo de Zoraide comparou a dinâmica dos processos de licenciamento ambiental nos estados produtores de energias renováveis no Nordeste. Uma das primeiras coisas que eles constataram foi a falta de pessoal nos órgãos ambientais da região. Há casos em que 90% da força de trabalho é formada por profissionais temporários ou de indicação política.

Questionada sobre os apontamentos dos pesquisadores, Elbia Gannoum, presidente-executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), que representa mais de 100 empresas do setor, disse que o licenciamento no Brasil “é uma coisa séria”.

“Os órgãos ambientais estaduais, que são muito sérios, têm, na medida do possível, aperfeiçoado os seus modelos e aperfeiçoado inclusive as exigências junto às empresas. Do lado de cá, as empresas vão seguir a regra”, afirma. “O que eu tenho percebido nessas discussões ambientais mais recentes são propostas para aperfeiçoar o regulamento ambiental, o que na minha opinião não é algo absolutamente dramático: é natural do processo produtivo.”

Se a gente soubesse que ia acontecer, não tinha aceitado”,

diz líder quilombola sobre parque eólico.

A legislação, contudo, liberou sem muito rigor casos como o do Complexo Eólico Chafariz, inaugurado em março de 2023, com a presença do presidente Lula, em Santa Luzia (PB). Mesmo com 136 aerogeradores, o que o coloca entre os 10 maiores complexos eólicos do Brasil, a Superintendência de Administração do Meio Ambiente (Sudema) da Paraíba executou, a partir de 2015, um rito de licenciamento simplificado, destinado a obras de baixo impacto.

Em vez de fazer um EIA-RIMA, como a Sudema tem exigido de empreendimentos eólicos do mesmo porte desde 2020, o empreendedor apresentou somente um Relatório Ambiental Simplificado, o RAS, o que foi aceito pelo órgão licenciador à época. Entre outros fatores, isso foi possível pela divisão do complexo em 15 diferentes parques. Embora todos estejam muito próximos entre si, para efeitos do licenciamento foi como se fossem obras e processos diferentes – desconsiderando o fato de que eles juntos têm um impacto cumulativo.

Outro impacto da obra é social. O Chafariz fica a 1,6 km da comunidade quilombola Serra do Talhado, que se queixa de não ter sido bem informada dos impactos da construção e operação dos aerogeradores. 

“Se a gente soubesse que ia acontecer o que aconteceu, a gente não tinha aceitado nunca. Eles estão praticamente dentro da comunidade. Se eles tivessem explicado isso tudo: ó, vai ter explosões, vai acontecer isso e aquilo, a gente tinha se preparado melhor, para pedir uma compensação melhor, e não estava passando por esse perrengue que a gente está passando hoje”, afirma Marinalva dos Santos, 44 anos, agente de saúde e presidente da Associação Comunitária Quilombola Rural da Serra do Talhado.

Marinalva dos Santos, agente de saúde e presidente da Associação Comunitária Quilombola Rural da Serra do Talhado. Foto: João Léo/Ronin Digital

Há relatos de danos às cisternas. A adutora que abastece a região também teria perdido vazão após a construção dos empreendimentos no entorno da comunidade. 

José Godoy Bezerra de Souza, procurador do MPF na Paraíba, integra uma iniciativa conjunta, que envolve ainda o MP estadual, a Defensoria Pública da União e Defensoria Pública estadual da Paraíba, que tem buscado garantir a aplicação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) nos processos de licenciamento no estado. 

“A Convenção, da qual o Brasil é signatário desde 2004, assegura aos povos e comunidades tradicionais que toda política que os afete diretamente, eles têm de ser escutados de forma prévia, livre e informada. Tudo que o impacta na área demarcada, não apenas no que se refere às moradias, mas se há impacto na área demarcada da comunidade, ela tem que ser consultada”, explica. O grupo emitiu recomendações à Sudema e ao INCRA para que garantam o cumprimento da convenção.

Godoy compara o que está acontecendo com as energias eólicas e solares com o processo que se deu em relação às usinas hidrelétricas no Brasil. “Há violações muito graves, mas os governos só veem os empreendimentos como grandes feitos”, diz. 

Ele acredita que a imagem das hidrelétricas ficou comprometida com o histórico de violação de direitos humanos na instalação de usinas. “Foi tudo feito com tanto desleixo com as populações das margens dos rios impactadas, que ninguém hoje trata a hidrelétrica como uma fonte limpa. E acho que tanto a eólica quanto a energia solar caminham para deixar de ser energias limpas, pela forma agressiva como as comunidades estão sendo impactadas, sem nenhum cuidado dos governos, sejam municipais, estaduais ou federais.” 

Contratos sem transparência 

Outra queixa que a reportagem ouviu foi de pouca transparência nos contratos de arrendamento de terra e até mesmo descumprimento do que foi estabelecido. Situação ainda mais delicada se levado em conta o perfil de muitos dos moradores da região. “Muitos são pessoas analfabetas, que não lêem. Eles não sabem o que é que o contrato está dizendo”, afirma Gilvaneide Ferreira, pedagoga e moradora da Serra do Talhado.

O agricultor Cândido Daniel Pereira, presidente da Associação do Assentamento São José, entre Santana do Matos e Lagoa Nova (RN), conta que o contrato que fez com um empreendimento prevê o pagamento de acordo com o total de energia produzido, mas diz nunca teve acesso aos dados da turbina instalada em seu terreno. 

O agricultor Cândido relata não saber quanto produz a turbina instalada em seu terreno. Foto: João Léo/Ronin Digital

“No contrato tem [a previsão do pagamento] pela produção dela, mas a gente não recebe, não. A gente só recebe o salário [mínimo]. Não sabe nem o quanto ela produz. E eles não dizem. Se a gente tá com dinheiro no bolso, vai dizer ao outro quanto tem no bolso? Não vai. É a mesma coisa, é tudo escondidinho, né?.” 

Elbia Gannoum, da Abeeólica, admitiu que há, de fato, problemas com alguns contratos e disse que nos últimos dois anos vêm recebendo mais denúncias de irregularidades e falta de transparência. “As empresas têm obrigação, e isso está na maioria dos contratos, de apresentar esse extrato de produção. Algumas famílias estão reclamando, a gente tem problemas sim com alguns contratos, e nós agora estamos trabalhando para que as empresas façam um enquadramento adequado e que sigam as boas práticas”, afirma. 

Mariana Traldi, professora do Instituto Federal de São Paulo, que pesquisou o tema das eólicas no mestrado e doutorado, quando teve acesso a contratos sigilosos, afirma que os problemas vão além da falta de transparência e incluem restrições de circulação e de atividades que podem ser desenvolvidas no local. 

“Eu vi contratos que tinham renovação automática de 50 em 50 anos, ou seja, a empresa se tornou a proprietária real. Ela decide o que pode, o que não pode fazer; quem entra, quem não entra; e ela também vai ter a posse e o controle sobre aquela área por 100 anos, né? Não configura a venda propriamente dita, mas na prática o proprietário deixou de ser proprietário”, afirma a pesquisadora.

Desenvolvimento de curto prazo

A frustração dos moradores das áreas afetadas fica ainda maior quando eles percebem que o prometido desenvolvimento local que seria promovido por esses empreendimentos não os atinge. Quando uma megaobra eólica ou solar tem sua construção iniciada, o aumento de empregos é instantâneo. Mas por serem regiões interioranas, com acesso precário à educação formal, seja técnica ou de nível superior, a maior parte dos postos de trabalho locais são para cargos de baixa remuneração e temporários. Na mesma velocidade que a renda extra chega, ela vai embora – tão logo as obras de instalação dos empreendimentos terminem.

“Como é que tem um emprego, se não tem gente qualificada para ser empregada, para fazer manutenção, para trabalhar nisso aí? Pega uns três ou quatro de ajudantes, e logo cedo vão embora. Depois, fica tudo desempregado”, conta Vilmário Cândido Pereira, presidente da Associação do Quilombo Macambira, na Serra de Santana (RN).

Vilmário Cândido Pereira, presidente da Associação do Quilombo Macambira, na Serra de Santana (RN)

Em Santa Luzia, na Paraíba, a percepção não é diferente. “O pessoal da zona rural entra na eólica trabalhando em quê? No bruto, no pesado. Mas quem é que tá lá no escritório? Quem é que tá lá na manutenção das hélices? Não é o pessoal da zona rural, são os que já passaram por uma faculdade, os formados, os engenheiros, que vão ter um salário bom”, concorda Gilvaneide Ferreira, da comunidade quilombola Serra do Talhado.

Uma das pioneiras na análise econômica dos empreendimentos eólicos no Brasil, Mariana Traldi investigou, no mestrado, o impacto da expansão energética na geração de postos de trabalho em João Câmara e Guamaré, ambos no RN, além de Caetité (BA) e Beberibe (CE), entre 2004 e 2012. “É nítido que quando as empresas começam a construir efetivamente um parque eólico, há um boom de geração de empregos. Mas passadas as obras, ocorre uma queda brusca”, analisa. 

A Pública replicou a metodologia da pesquisa para avaliar a evolução de postos de emprego em algumas cidades com parques já em operação e chegou às mesmas tendências. 

Em Lagoa Nova (RN), por exemplo, entre 2003 e 2011, período anterior à chegada das eólicas, foram abertos apenas três empregos na área de construção civil com carteira assinada, segundo a plataforma RAIS-CAGED, do governo federal. Em 2012, com o início da construção dos parques eólicos, foram abertos 373 empregos no mesmo setor. No ano seguinte, 711. Em 2014, 534. À época, a cidade tinha 14 mil habitantes.

Tão logo a instalação dos empreendimentos cessou, contudo, o índice voltou a cair: em 2015, o município registrou somente 19 empregos no setor. A construção de um novo parque elevou novamente o número, em 2016, para 97, o que foi seguido de nova baixa: apenas um emprego formal na construção civil em 2017, e três em 2018. 

Em Santa Luzia (PB), com 15 mil habitantes, o enredo é parecido. Entre 2003 e 2010, havia uma média anual de 12 empregos com carteira assinada na construção civil. Em 2011, com as obras dos primeiros parques eólicos da região, houve um salto para 97. Em 2012, 49 postos de trabalho. De 2013 a 2018, sem empreendimentos, o índice novamente caiu para 19 carteiras assinadas por ano. Entre 2019 e 2021, com a chegada de mega complexos eólicos e solares na região, houve uma média de 486 empregos por ano, chegando a 776 postos de trabalho em 2020. 

“Quando a gente olha para os dados da geração de empregos, a gente vê que eles são temporários – prova de que se trata de uma atividade intensiva em capital e em área, mas não em mão de obra”, analisa Traldi, que questiona o “desenvolvimento local”, usado como cartão de visitas dos empreendedores junto às pequenas cidades.

“Para ter desenvolvimento local e regional, você tem que ter dois pilares: geração de emprego e renda, e arrecadação de impostos, que podem vir a ser traduzir em benefícios através de serviços públicos”, explica. “No caso dos impostos, a gente pode imaginar que a prefeitura vai investir em saúde, educação, né? Mas é temporário. Ou seja, isso não vai se reverter na contratação de professores, de enfermeiros ou de médicos, por exemplo.”

A Pública analisou os últimos 10 anos da arrecadação municipal (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, ISSQN) de 42 cidades, do Rio Grande do Norte e da Paraíba, que tiveram ou ainda têm obras relacionadas a energias renováveis. São cidades pequenas, com populações entre 2 mil e 45 mil habitantes – em média, 12,4 mil habitantes.

Cidades que estão com obras em curso experimentam um aumento de arrecadação impressionante. Em Santa Luzia, na Paraíba, a receita com o ISSQN entre 2013 e 2016 foi, em média, de R$ 722 mil por ano. A partir de 2017, quando começaram as obras relativas à geração de energia no município, até 2022, a média saltou para R$ 4,4 milhões, seis vezes mais, em valores já corrigidos.

Em Lajes (RN), de 11 mil habitantes, o imposto municipal rendeu, em média, R$ 740 mil por ano entre 2013 e 2020. Em 2021, o valor saltou para R$ 6,7 milhões com a construção de 13 parques eólicos, hoje todos já em operação. Em 2022, com uma nova leva de 14 empreendimentos de energia eólica, a cidade arrecadou R$ 24,6 milhões, mais de 33 vezes o valor médio anual entre 2013 e 2020.

Acontece que do mesmo modo que a arrecadação sobe, ela pode voltar ao patamar original ao fim das obras. É o caso de Galinhos, no litoral norte do RN, com menos de 3 mil habitantes. Quando foram construídos os dois parques eólicos que operam na cidade, a arrecadação somada de apenas dois anos (2013 e 2014) foi de R$ 4,9 milhões. Sem novos empreendimentos desde então, a soma do ISSQN dos oito anos seguintes, de 2015 a 2022, foi de R$ 5,4 milhões.

Embora as obras gerem o imposto municipal, a produção de energia, em si, não rende impostos diretos aos municípios que a produzem, uma vez que a cobrança é pelo ICMS, imposto estadual. Também não existem royalties, como no caso dos combustíveis de origem fóssil ou da energia hidrelétrica.

“Se a energia for consumida em outro estado, este município (gerador) não vai receber nada deste ICMS”, explica Traldi. “A energia gerada nesses municípios pode ser consumida em qualquer lugar do Brasil, complementa.

Elbia Gannoum, da Abeeólica, afirma que as fontes eólica e solar são diferentes de outras formas de produção de energia. “No caso da hidrelétrica, o rio é considerado um bem público, a propriedade não é privada. Então quando se utiliza um bem público, necessariamente é preciso pagar uma compensação financeira pelo uso do bem público”, explica.

“O caso da energia eólica é completamente diferente, ela é feita numa propriedade privada e você paga o arrendamento do terreno. Esse dinheiro tem que ir para o dono da propriedade, que é o proprietário privado, que vai receber por 20 a 25 anos o arrendamento. Então a renda pertence ao dono da terra, que vai consumir, vai construir casa, vai comprar gasolina, e ele vai levar isso para a atividade econômica”, argumenta.

Zoraide Pessoa, da UFRN, discorda. Ela entende que os recursos que “ficam” nos municípios, relativo aos arrendamentos, são insuficientes para a promoção do desenvolvimento de fato da região. “A gente tem que entender que o arrendamento gera uma mobilidade de renda, claro, mas que não vai impactar de forma contínua a economia daquele município, a ponto de fazer uma virada do ponto de vista da arrecadação.”

“Nós não somos contra as energias renováveis. É necessário que seja implementado um modelo de transição energética, mas com justiça social. A gente precisa que essa transição e que a expansão das energias renováveis sejam feitas pensando nas comunidades, na biodiversidade, no meio ambiente de modo geral e nos patrimônios naturais e culturais que a gente tem aqui,” afirma Rani Sousa, do Seridó Vivo. 

Outros lados

A Neoenergia – que opera parques nas regiões visitadas pela reportagem – afirma que está comprometida com o desenvolvimento regional das comunidades onde atua e que os estudos de impacto ambiental seguem as normas vigentes e as melhores práticas globais. A empresa reconhece a possibilidade de danos às cisternas durante a fase de construção e, quando detectados, oferece reparo ou indenização aos moradores. 

A AES – que tem parques na região da Serra de Santana – informa que não tem registro de ocorrências em cisternas nas regiões onde opera e que “mantém uma atitude responsável e preventiva em todas as suas atividades”. 

A reportagem entrou em contato por e-mail e telefone com a Gestamp, a EDF Renováveis e a Serra Verde, que também operam usinas eólicas na Serra de Santana, no Rio Grande do Norte, além do Grupo Rio Alto, que opera usinas fotovoltaicas, em Santa Luzia (PB), mas não obteve respostas. 

À reportagem, a Sudema atribuiu a responsabilidade do licenciamento ambiental do Complexo Eólico Chafariz a gestões anteriores, cujo “entendimento do corpo técnico” à época, “provavelmente”, foi de que o empreendimento se enquadraria no rito de licenciamento simplificado, por ser considerado “como de pequeno potencial de impacto ambiental”. 

Em nota, a assessoria de imprensa da superintendência informou que, desde meados de 2020, a análise dos complexos eólicos teria passado a ser mais rigorosa quanto ao enquadramento e a consequente necessidade de estudos mais completos (EIA-RIMA) e de compensações ambientais. 

Afirmou ainda que a criação da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), em 2023, seria sinal de compromisso do governo da Paraíba com o meio ambiente, ao lado de projetos de recuperação de nascentes, educação ambiental e da proposta de criação de uma unidade de conservação, o Parque Estadual da Serra de Santa Catarina, no Oeste do estado.

O Idema (órgão licenciador no RN) não se manifestou até a publicação desta reportagem.