Jornada de Lutas

Movimentos populares do campo e cidade se unem em mobilização contra a fome, em Curitiba 

Ato ocorreu nesta segunda-feira (16), Dia Mundial da Alimentação, com participação do MST, cooperativas da Reforma Agrária, articulação Despejo Zero, Marmitas da Terra e cozinhas comunitárias
Marmitas da Terra foram distribuídas a todas as pessoas participantes da mobilização. Fotos: Juliana Barbosa / MST-PR

Por Ednubia Ghisi e Helena Cantão, do Setor de Comunicação e Cultura do MST no PR
Da Página do MST 

Para Carolina Maria de Jesus, a fome é invenção dos que comem. A escritora paulista apresentou essa síntese em sua maior obra, “Quarto de despejo” de Carolina Maria de Jesus, publicada na década de 1960, e que escancarou um Brasil desigual e racista daquele tempo. 

As palavras da autora fizeram parte da mística de abertura da mobilização do Dia Mundial da Alimentação em Curitiba, porque seguem mais atuais do que nunca: segundo um relatório da ONU publicado em julho, 21 milhões de pessoas não têm o que comer todos os dias e 70,3 milhões estão em insegurança alimentar no país. São 10 milhões de brasileiros/as desnutridos. 

A cobrança de avanços das políticas públicas de combate à fome e de garantia da Soberania Alimentar para toda população estiveram no centro da mobilização realizada nesta segunda-feira (16), no ato ocorrido na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab-PR), no Bairro Alto da Glória, na capital paranaense. 

A iniciativa reuniu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Paraná (MST-PR), cooperativas da Reforma Agrária, cozinhas comunitárias e solidárias de Curitiba e Região Metropolitana, movimentos populares, além da articulação Despejo Zero e do coletivo Marmitas da Terra. 

Da esquerda para a direita: superintendente do Incra-PR, Nilton Bezerra Guedes; o deputado estadual Professor Lemos (PT); superintendente Regional do Paraná da Conab, Valmor Luiz Bordin; superintendente do MDA no Paraná, Leila Klein; a coordenadora do coletivo Marmitas da Terra e do MST, Adriana Oliveira. Foto: Juliana Barbosa / MST-PR

Um documento com o resumo das reivindicações foi entregue às autoridades presentes: pela liberação de recursos do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) para promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar no território brasileiro; o atendimento de demandas das cozinhas comunitárias, com apoio direto para as 7 cozinhas solidárias, destinadas a suprir as demandas de 21 ocupações urbanas e da população em situação de rua de Curitiba e RMC; e a retomada imediata do Programa Terra Sol pelo INCRA, com disponibilização de orçamento para fomento à agroindustrialização, à comercialização e atividades pluriativas solidárias. 

A mobilização começou às 10h e seguiu até por volta das 16h, com almoço diversificado e saboroso servido pelo coletivo Marmitas da Terra a todas as pessoas participantes. A refeição colorida foi preparada com alimentos produzidos em hortas e agroflorestas comunitárias no assentamento Contestado, e por assentamentos e acampamentos da reforma agrária. 

Ao longo da pandemia, o coletivo Marmitas da Terra produziu e distribuiu mais de 180 mil refeições a pessoas em situação de rua e famílias moradoras de ocupações urbanas. Foto: Jade Azevedo / MST-PR 
Fotos: Juliana Barbosa / MST-PR

Marli Brambilla, integrante da cooperativa Coana, de Querência do Norte, e da Cooperativa Central da Reforma Agrária (CCA) e da direção do MST no PR, reforça o objetivo central da atividade. “A gente está aqui porque ainda, num país como o Brasil que tem muita alimentação, tem milhares de pessoas que passam fome”. 

O superintendente Regional do Paraná da Conab, Valmor Luiz Bordin, dialogou com as organizações populares e enfatizou que “os programas dependem muito da pressão dos movimentos sociais fazerem justamente que os governos federal, estadual e municipal atendam as demandas, e façam com que se minimize essa situação de insegurança alimentar que hoje vivenciamos”. E reforçou: “Eu espero que haja um anúncio por parte do governo federal, de um aporte de recursos para que a Conab possa atender a demanda reprimida”. No fim da tarde de ontem, o governo anunciou a destinação de mais de R$ 250 milhões ao PAA.

Também participam da atividade o superintendente do Incra-PR, Nilton Bezerra Guedes, o deputado estadual Professor Lemos (PT), e representantes de outros mandatos parlamentares. Estavam presentes representantes das cooperativas da Reforma Agrária TERRA LIVRE, Lapa; COANA, Querência do Norte; COPAVI, Paranacity; COCAVI, Jardim Alegre; COPRAN, Arapongas; COPRAUF, Ortigueira; COOPERMATE, Santa Maria do Oeste.

Cozinhas comunitárias e a garantia do direito à alimentação

A realidade nas comunidades periféricas é de convívio diário com famílias que têm dificuldade em garantir o alimento na mesa, principalmente após a pandemia da Covid-19 e o governo anterior de extrema-direita. Juliana de Souza faz parte de uma cozinha comunitária da Vila Formosa, criada nesta época, e relata a realidade em que vivem: “[…] é um direito básico que muita família não tem, ou às vezes tem uma refeição por dia, muitas crianças às vezes esperam ir pra escola pra comer, porque não tem nada pra comer”.

Juliana de Souza integrante da cozinha comunitária da Vila Formosa. Foto: Leonardo Henrique/ MST no PR

Nos últimos meses, houve uma queda das doações, o que obrigou a cozinha a reduzir a produção pela metade. “Mas agora nossa esperança é no PAA, porque a gente está aqui pra esperançar de novo. Então, todos unidos, vamos continuar nessa luta e, se Deus quiser, não vai faltar pra ninguém, não vai sobrar pra muitos nem faltar para todos”, garante Juliana, que é integrante do Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD) e da União de Moradores e Trabalhadores (UMT). 

Rosângela Lima relatou a organização das comunidades para garantir cozinhas comunitárias na ocupação Britanite, do Tatuquara, e da Vila Pantanal, ambas em Curitiba. Ela conta que somente na Britanite são mais de 200 crianças e 20 gestantes, que recebem as marmitas. “Se a nossa cozinha está ali é porque teve pessoas como vocês [de movimentos populares] que ajudaram”, relatou a militante, que é integrante do Fort.

Rosângela Lima, das cozinhas comunitárias da Britanite e do Pantanal.  Foto: Leonardo Henrique/ MST no PR

PAA fortalece a produção de alimentos saudáveis 

A garantia de comercialização significa uma alavanca para a agricultura familiar e da Reforma Agrária, como conta a camponesa Ana Paula Steklain, moradora do assentamento Imbauzinho e integrante da cooperativa Coprauf, de Ortigueira: “A gente começou lá com uma associação em 2014, quando acessamos nosso primeiro PAA, e desde lá vem melhorando a saúde do pessoal, porque eles optaram pelo orgânico e vem melhorando cada dia mais, fortalecendo a renda. Muitos não tinham mais o que estar produzindo, porque eles produziam e não vendiam, não tinha pra onde vender”. 

A distribuição dos alimentos saudáveis está chegando a muitas famílias urbanas atendidas pelo Centro de Referência de Assistência Social do Brasil (CRAS). “Até hoje tem CRAS lá que tem 200 famílias que chegam na fila às 9h da manhã pra pegar o alimento após o almoço, com medo de não ter, sabe? Porque tem muita dificuldade na cidade”, relata a camponesa. “O PAA pra gente lá é de suma importância tanto para os produtores como pro pessoal que tá lá na cidade que depende do alimento”, completa.

Foto: Juliana Barbosa / MST-PR

Liane Franco, camponesa moradora do assentamento Contestado, na Lapa, conta que o PAA também fortaleceu a autonomia das mulheres do campo para conseguir melhorar a produção e a comercialização. Ela cobra a ampliação dos programas públicos de incentivo à agricultura familiar: “A gente tem uma produção da cooperativa Terra livre hoje com excedente muito grande do PNAE do estado, e se nós tivéssemos o PAA hoje, com certeza a nossa produção sairia do campo e estaria matando a fome das nossas comunidades”. 

Record na produção de commodities X record da fome

O aumento da fome ocorre em um período de recordes da produção de commodities agrícolas, o que aponta para a inviabilidade do modelo de produção agrícola baseado no agronegócio. 

Leila Klein, superintendente do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) no Paraná. Foto: Juliana Barbosa / MST-PR

“Não adianta produzir toneladas que só sejam para exportação”, afirmou a  superintendente do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) no Paraná, Leila Klein afirmou, enfatizando que também precisamos deste tipo de produção, mas que é fundamental o incentivo à produção de alimentos. “O pequeno produtor é o produtor de alimentos”. “Eu lembro bem na década de 70 com a Revolução Verde, que tínhamos que triplicar a área de produção. Aumentou a área de produção e produtividade e o povo continua morrendo de fome. Não é essa a questão, e sim produzir comida e distribuir para quem precisa”, avaliou. 

O governo deve avançar em políticas para fortalecer a produção, mas outro gargalo, segundo Klein, é a distribuição. “É preciso investimento na produção e também na distribuição […] O PAA é uma das principais políticas, mas também nós pensarmos em produzir comida barata e podemos romper a forma como o mercado está posto. Os grandes mercados não permitem que isso ocorra hoje e faz com que haja uma barreira. Imagina, é apartheid social que mata de fome. Então nós temos que fazer essa luta no dia a dia”. 

*Editado por Fernanda Alcântara