Natal Sem Fome

Organizações populares realizam Jornada Nacional de Solidariedade contra a Pobreza e a Fome

Com ações de solidariedade previstas para mais de cem cidades, Jornada quer combater e discutir a fome no Brasil
Organizadas pelos Comitês Populares, em todo país estão previstas ações de arrecadação e doações de alimentos, brinquedos, informações sobre direitos e culturais. Foto: Aspásia Mariana

Por Solange Engelmann
Da Página do MST

Com o fim da pandemia da Covid-19 e a eleição do presidente Lula no Brasil em 2022, é possível observar algumas melhorias nas condições de vida de grande parte da população brasileira, em especial dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, com a retomada de políticas públicas tradicionais de combate à miséria e à fome. Porém, ainda assim, uma parcela da população convive com a miséria e a fome no país, todos os dias.

Segundo levantamento do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, 33,1 milhões de pessoas, ou seja, 15,5% da população ainda passa fome todos os dias. Diante deste cenário e com a proximidade do Natal e as festas de final de ano, que mobilizam um espírito maior de solidariedade em todo dos alimentos e da união entre as famílias e grupos, um conjunto de movimentos populares, sindicais, partidos progressistas e igrejas, entre ele o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), realizam a Jornada Nacional de Solidariedade contra a Pobreza e a Fome de 2023.

Com a intenção de combater e debater o tema da fome no Brasil, a Jornada foi lançada no dia 25 de novembro e se estende até o dia de Natal, 25 de dezembro deste ano. A previsão é que as principais ações de solidariedade ocorreram nesse final de semana, de 16 a 17 de dezembro, em mais de cem cidades de todo o Brasil.

Foto: MST

Nesse período estão previstas diversas atividades como arrecadação e doações de alimentos, atividades de cidadania, cultura e lazer, entre outros, puxadas pelos Comitê Populares de Luta. “As ações serão de instalação de Cozinhas Populares e doação de marmitas, arrecadação de alimentos para as famílias mais pobres e de brinquedos para as crianças, além da montagem de barracas para utilidade pública, com esclarecimento em relação a direitos e às políticas públicas. E ações culturais, de lazer e esportivas”, explica Igor Felippe Santos, da coordenação nacional dos Comitês Populares de Luta.

Assim, além da distribuição de alimentos, por meio de cestas básicas e de refeições, que devem ocorrer a partir da articulação com outros setores que já atuam no combate às desigualdades, a secretária nacional de mobilização do Partido dos Trabalhadores (PT), Mariana Janeiro, expõe que a Jornada também será um momento para promover o acesso aos direitos básicos.

“À exemplo de emissão de carteira de identidade e CPF, regularização do cadastro no Cadastro Único [CadÚnico], cadastro no Gov.br, orientação para o programa Desenrola, orientação sobre a Previdência Social. Há também a possibilidade de trabalhar de forma articulada com os serviços de saúde municipais, com estratégias de mobilização para vacinação infantil e saúde da mulher, por exemplo, bem como articulação com os serviços do estado, como a Defensoria Pública”, afirma.

Em Pernambuco, Mayara do Movimento Brasil Popular, relata que as atividades da Jornada Nacional, organizadas pelo movimento no estado devem ocorrem em dois momentos, no bairro de Brasília Teimosa, no Recife e no bairro Cidade Tabajara, em Olinda.

“Dia 22 de dezembro, em Brasília Teimosa, a gente vai fazer uma festinha de fim de ano, na fábrica de Brasília Teimosa, com a comunidade, as mulheres, com momentos cultura e lazer, brincadeiras para as famílias e as crianças. E após, teremos a doação do que foi arrecadado. No dia 23, a gente vai fazer uma festinha com essa temática de fim de ano de solidariedade na Cidade Tabajara, onde vamos promover um cineclube e depois vamos ter uma ceia coletiva. Estamos fazendo uma campanha para isso, pedindo doações e apoio para algumas organizações e figuras públicas”.

Jornada é composta por diversas organizações populares

Além de movimentos populares do campo, como o MST a Jornada de Solidariedade contra a Pobreza e a Fome deste ano é articulada por Comitês Populares de Luta, espalhados por diversos territórios urbanos e rurais do país, e conta com a participação de movimentos que integram a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), Partido dos Trabalhadores (PT), Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), Marcha Mundial das Mulheres (MMM), Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras por Direitos (MTD), Movimento Brasil Popular (MBP) e Levante Popular da Juventude.

As ações de solidariedade serão realizadas em forma de mutirões contra a pobreza e a fome, com doações de alimentos e entregas de marmitas, entre outros produtos, para as populações que se encontram em situação de vulnerabilidade social, em mais de cem municípios pelo país.

Foto: Leonardo Henrique

Nesse espírito, Mariana Janeiro, ressalta que as atividades da Jornada pretendem atingir um público mais amplo este ano, desde as pessoas em situação de fome e vulnerabilidade social, até quem faz parte da militância dos movimentos populares brasileiros.

“A jornada tem alguns públicos à atingir: Primeiro, são os que tem fome. As ações de distribuição de refeições e de cestas básicas focam, essencialmente, neste grupo. Outro grupo, são os que estão em vulnerabilidade social e, neste sentido, as ações que oferecem alguns serviços e orientações sobre as políticas sociais. Há também um terceiro grupo, que é a nossa militância que deverá se envolver com a jornada. É nosso desafio produzir um trabalho conjunto que politize, que instrumentalize e eduque essa tendência.”

Partilha de alimento em Guarapuava/PR, em 2022. Foto: Juliana Barbosa

Na mesma linha, Igor Felippe, pontua que, na etapa anterior, antes de chegar até a população em situação de vulnerabilidade, a Jornada busca estimular a militância, organizada nos Comitês Populares de Luta no país para a organização de atividades de solidariedade, que busquem amenizar a fome e o abandono, em um período de festas de final de ano e espírito natalino.

Estamos bastante animados com com a possibilidade de conseguir contribuir e ajudar a população mais pobre, os/as trabalhadores/as a terem boas festas nesse final de ano”, afirma.

Diante disso, Mariana e Igor estão de acordo sobre o potencial da Jornada na organização e fortalecimento dos Comitês Populares pelo país, ampliando o trabalho dessas organizações nos territórios mais vulneráveis e em regiões em que a pobreza e a fome se encontram mais latentes. “Nos Comitês Populares de Luta, temos muita certeza de que essa é uma tarefa propícia, em um momento importante, simbólico, pra que a militância possa se conectar profundamente, com ações concretas que trabalham os temas da pobreza e da fome”, argumenta Mariana.

Políticas públicas para combater a fome e a pobreza

Mesmo com os esforços do terceiro Governo Lula em retomar políticas públicas destruídas durante o governo de Bolsonaro, o país ainda enfrenta o problema da fome, com mais 30 milhões de pessoas que não tem como se alimentar todos os dias. Encontra-se ainda no país uma camada da população, que não tem conseguido acessar políticas públicas governamentais para se alimentar.

Segundo Igor Felippe, é, justamente esse público que os movimentos populares, partidos progressistas, sindicatos, igrejas progressistas e os Comitês Populares “têm buscado atender as necessidades, a partir de uma política de mutirões contra a pobreza e a fome, para contribuir e acabar com essa chaga que ainda existe no Brasil.”

As forças populares do país, reconhecem o esforço do presidente Lula com a retomada de políticas tradicionais de combate à fome, como o Bolsa Família; porém, reivindicam ações governamentais mais completas e diversas por parte do Estado brasileiro, como a criação de cozinhas populares, que envolvam as comunidades do campo e das periferias urbanas, por meio de mutirões e ações conjuntas para combater a fome e a pobreza.

Estamos propondo que, de forma emergencial, o governo implemente um programa robusto de instalação de cozinhas populares nas comunidades para atender essa camada mais carente da população. É necessário medidas no campo de apoio à agricultura familiar e de compras públicas, para que essa comida chegue aos mais pobres. E o governo precisa empreender um projeto nacional de desenvolvimento para gerar empregos de qualidade, para que as pessoas possam sair da pobreza, acabar com a fome. Isso se dá a partir de reformas econômicas e estruturais, como a reforma urbana e reforma agrária”, ressalta Igor Felippe.

Foto: Igor de Nadai

Mariana Janeiro pontua que a crise política, econômica e as políticas de destruição da vida e insegurança do governo de Bolsonaro, trouxeram a fome de volta à vida da população brasileira, erradicada em 2014 no país. Nesse sentido, ela considera que o Brasil tem bons programas para combater à fome e à pobreza, mas que essas políticas precisam retornar para ao centro do orçamento do governo.

“Essas políticas estão sendo retomadas pelo Governo Federal para erradicar, mais uma vez, a fome no Brasil. Neste ano o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] foi recriado; o governo fez o maior investimento da história no Plano Safra, com mais de R$ 71 bilhões de crédito rural para os pequenos agricultores; houve uma completa reestruturação do Bolsa Família e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)“, defende Mariana.

Contudo, as políticas de combate à pobreza e às desigualdades no país, necessitam de políticas e estratégias estruturais de longo prazo, e que promovam mudança no clico histórico e estrutural de exploração de uma parte da população por uma minoria privilegiada, destruindo a cultura de dominação, racismo, descriminação, entre outras violências e desrespeito à direitos e necessidades dos/as trabalhadores e das populações vulneráveis.

“Destaco alguns elementos que constam da Ação Brasileira de Combate às Desigualdades (ABCD), que estruturados a partir do racismo e da opressão de gênero, precisam ser superados para que, assim, o Brasil começa a superar suas desigualdades: Reestruturar a política tributária brasileira, rever políticas de austeridades e pensar em políticas de reparação a grupos historicamente excluídos. É apenas nesse sentido que iremos conseguir construir um Brasil com mais justiça social”, conclui Mariana.

Solidariedade como um valor de luta

Desde 2020, o MST realizou ações solidárias, doando quase 10 mil toneladas de alimentos. Foto: Giorgia Prates

As Campanhas de Solidariedade do MST é uma prática enraizada na base social do Movimento desde a sua fundação e tem se tornado uma prática permanente, em períodos do Natal e, inclusive em outros momentos do ano, se transformando em um valor de luta, humanidade e defesa da vida dos trabalhadores/as, junto às comunidades periféricas do campo e da cidade em todo o país. As ações se intensificaram ainda mais por parte das famílias Sem Terra, principalmente após o início da pandemia em 2020 e o governo de Bolsonaro, que agravou a situação de fome e pobreza da população, colocando o Brasil novamente no Mapa da Fome.

Desde 2020, o MST intensificou as ações solidárias, com a distribuição de quase 10 mil toneladas de alimentos e 2,7 milhões de marmitas, em periferias urbanas e rurais do Brasil, locais que ainda demandam de políticas públicas mais robustas pelo governo federal no país.

Premiação da ONU

Umas das ações de solidariedade do MST e exemplo de trabalho junto à população em situação de venerabilidade no Nordeste, a Campanha Mãos Solidárias do MST recebeu em outubro de deste ano o prêmio Pacto Contra a Fome das Nações Unidas (ONU). A premiação ocorreu a partir da iniciativa da campanha de doação de alimentos criada durante a pandemia, em Recife, no Pernambuco.

Ação Mãos Solidárias no Armazém do Campo Recife-PE. Foto: MST-PE

As ações da Campanha chegara às moradias de famílias vulneráveis nas cidades Recife, Olinda, Caruaru, Garanhuns, Vitória de Santo Antão, Petrolina, entre outras. Mas, somente na Região Metropolitana do Recife, local em que se encontrava o espaço de organização e ações diretas junto às comunidades urbanos, o Mãos Solidárias entregou cerca de 1,6 milhão de marmitas nos últimos três anos.

No início das medidas de restrições da pandemia da covid-19 em março de 2020 a Campanha iniciou as atividades com foco no atendimento às pessoas em situação de rua, porém, aos poucos a produção de marmitas se multiplicaram e o trabalho de produção e distribuição de milhares de marmitas se torna diário, com o envolvimento de militantes do movimento populares e voluntários.

Fome persiste no Brasil

A fome segue presente e persistente no Brasil entre a população vulnerável que vive, principalmente nas periferias urbanas e rurais. Somente 4 entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação, os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN).

Discriminação de raça e gênero

Porém, os números da Rede PENSSAN também constaram a existência de um recorte de recorte de raça e gênero na insegurança alimentar das famílias brasileiras, registrado em entre novembro de 2021 e abril de 2022.

Uma em cada cinco famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pardas e pretas no Brasil sofre com a fome (20,6%) – o dobro em comparação aos lares chefiados por pessoas brancas (10,6%). A situação é mais grave quando se considera a questão de gênero: 22% dos lares chefiados por mulheres autodeclaradas pardas e pretas sofrem com a fome, quase o dobro em relação a famílias comandadas por mulheres brancas (13,5%), os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.

Os dados demonstram o reforço ao racismo estrutural e da descriminação de gênero contra as mulheres autodeclaradas pardas e pretas, somado o sofrimento da fome. Mas, não para por ai, as mulheres negras também são as maiores vítimas da violência doméstica, da violência patrimonial e violência política, entre outras, que vem crescendo entre parlamentares e mulheres negras em cargos públicos. Para além disso, parte das famílias chefiadas por mulheres e homens autodeclarados pardos e pretos, também vivem em áreas de risco e são afetados pelos efeitos da crise climática com, enchentes, deslizamentos e secas, reforçando também o racismo ambiental, que permeia o país.

Nesse sentido, o combate à miséria, à fome e à crise climática dependem de políticas públicas que provoquem mudanças estruturais, como a reforma agrária e reforma urbana, garantindo direitos sociais, humano e fundamentais à população pobre e em conduções de vulnerabilidade social nas periferias urbanas e rurais do país.

*Editado por Fernanda Alcântara