Mulher Sem Terra

Dirigente do MST no PR coordena o coletivo Marmitas da Terra, criado na pandemia

Em entrevista liderança no trabalho solidário aponta que "o capitalismo tirou nós o vínculo com o território"
Adriana Oliveira, da direção do MST, vem coordenando o coletivo Marmitas da Terra desde o início da pandemia. Foto: Joka Madruga

Por Pedro Carrano
Do Brasil de Fato Paraná

Uma das principais dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Paraná e no Brasil, Adriana Oliveira ajudou a conduzir o coletivo Marmitas da Terra, que se destacou durante a pandemia, em ações de solidariedade, em Curitiba e região, a partir de doação de alimentos, e ampliando as ações para parcerias com movimentos populares, apoio em Saúde e Educação, em áreas de ocupação urbanas. Do aprendizado neste período, Adriana destaca a capacidade de perceber a dinâmica de vida da mulher trabalhadora urbana.

“Então, tinha alimentação, tinha saúde, tinha reforço escolar e a partir dali a gente começou a entrar e ver que ali, apesar de a gente ainda achar que tem um bom caminho a percorrer, ali é um diálogo que vale a pena. E é um construir mesmo. De construir coletivos que possam ser protagonistas. De conhecer o território. De se unir em lutas estruturais daquele território”, afirma.

O MST participou também, nesta semana do Dia Internacional da Mulher, tanto do ato das mulheres das ocupações, no dia 7, como no ato geral de hoje, dia 8, organizado pela Frente Feminista. Os desafios, para a dirigente, são vários, na construção do feminismo popular, da aliança campo e cidade, e dos desafios organizativos da campanha Despejo Zero e das áreas urbanas. Complexos, assim como são simples e possíveis: “Então, a pandemia foi de fato uma possibilidade da gente se enxergar enquanto classe, enquanto necessidade, enquanto projeto comum”, define.

Brasil de Fato Paraná: A partir da campanha de solidariedade na pandemia, nos trabalhos do movimento e da campanha Despejo Zero, mostram um aprendizado no Paraná das forças populares de se preocuparem primeiro em garantir essa condição para essas mulheres que já são lideranças reais em suas comunidades, mas que têm uma condição de trabalho e de vida muito instável. Como você vê isso?

Adriana Oliveira: É muito trabalho. Na medida em que uma mulher está ali, 24 horas pensando como você vai viver, você não tem condição de ver a exploração que está ao seu redor. Então, para nós a gente fala do ócio produtivo. O ócio é você também olhar para aquela condição sua e que você vive e refletir sobre ela. No campo também. E no campo qual é a nossa pauta que é muito forte? Na medida que a gente fazia aqueles lotes, sem vizinho perto, tudo distante, as mulheres não tinham um coletivo para dialogar. Acaba que os problemas são seus. E você vai se fragilizando mesmo e vai achar que aquilo que aquela condição é natural. Mas, por outro lado, as mulheres do campo, elas têm uma coisa que é o tempo da natureza. Que o agronegócio também tira isso. De acelerar, de usar veneno para acelerar o ciclo. Acelerar a galinha a tomar hormônios, mas, ao mesmo tempo, você vê que as coisas têm um tempo, têm um tempo de você plantar o arroz, de você plantar o feijão, o tempo, mesmo acelerado ainda, você consegue refletir sobre esse ciclo da natureza e o ciclo da condição como ser humano, desse cuidado. Eu acho que a gente tem perdido isso, sabe? Do acelerar. E daí você não consegue refletir sobre a sua condição mesmo coletiva, daquele território em que você está inserido. Então, o desacelerar te dá a possibilidade de ouvir uma música, de fazer um lazer, de fazer um esporte, de conversar com a tua vizinha, que às vezes está na mesma condição tua, de achar saídas coletivas, então talvez nas ocupações urbanas o nosso maior desafio é como você também, a mulher, se permita vivenciar o momento do ócio sem que se penalize com o ócio.

A expressão mais comum é a “tua correria”, ei, como é que tá a correria? De madrugada, a madrugada.

E ainda sem ser algo passivo. Sem ser, digamos, ficar na frente da TV, recebendo informação que vai se nutrindo do capitalismo mesmo. E a TV ajuda isso. Você não precisa interagir. Você é passivo na nas informações. E ali é capitalismo o tempo todo na veia. Você precisa usar esse ou aquele produto. Tanto é que as redes de cosméticos foram as que mais lucraram no último período. Tipo, está dando tudo errado na tua vida, você não tem dinheiro para nada, mas que ainda a mulher tem esse papel de estar bem, de estar bonita, etc.

“Ali é um diálogo que vale a pena, sabe? E é um de construir mesmo. De construir coletivos que possa ser protagonista”. Foto: Jade Azevedo

No Paraná, em especial, e nacionalmente, teve muita força o processo de solidariedade na pandemia. Muita experiência, muito trabalho de solidariedade. Que destaques que daria para fazer? Que aprendizados desse processo para esse trabalho urbano que o MST já tinha como ponte, como articulação, mas que me parece que a pandemia forçou a ser algo mais orgânico, mais territorial?

Logo no início da pandemia, a gente dialogou, de alguma maneira, sobre proteger a nossa militância. Então, fecha acampamento, fecha a porteira e fica lá. Quem não for possível, fica em casa. Fica em atividade do movimento na pandemia de forma ativa, porém se cuidando. E o primeiro trabalho que a gente começa mais intenso foi nas capitais. E tendo o horizonte que os restaurantes fecharam, tudo fechou. Tinha uma população em situação de rua e a gente começa a trabalhar com a população entregando alimentos, marmitas. Nas periferias, a gente começa essa iniciativa de entregar sacolas. Essa cesta com os produtos e, como a nossa militância, a maioria estava nos territórios, estava no campo, e sem muito contato com o vírus, continuou plantando. Continuou fazendo o trabalho normal. E até intensificou a produção. Porque parou de viajar, fazer atividades fora, então foi intensificando. Desse partilhar nos nossos territórios, a gente fazia o trabalho de base aqui em Curitiba e entregava os alimentos. Fazia essas ações de solidariedade. Daí, quando a gente olha para a população em situação de rua mesmo, começa a entregar alimentos, começa a ter mais contato com eles, a gente percebe que é um processo de tamanha exclusão, por drogas, por problemas com as famílias, por ‘n’ problemas assim, sabe? Tem vários problemas que daí a gente precisaria ter mais preparo para falar sobre isso da população em situação de rua. Mas a gente olhou e viu que ali era apenas ações de solidariedade. Não que não seja importante. Mas a gente olhava assim, qual é o nosso papel? Qual a população na situação de rua? Matar a fome. Um caso ou outro a gente conseguiu dar outras perspectivas, mas no geral é um processo tão de desumanização enraizada que requer um outro trabalho, mais intenso. E, para esse seu trabalho, a gente pensou que o poder público teria que vir com muito mais força. Por outro lado, a gente olhou para uma outra população que estava na periferia, que tinha várias necessidades, daí era pautas diversas, desde violência doméstica, a falta de trabalho, a infraestrutura, problema de creche, ao problema de saúde e, nesse momento, a gente falou: a gente precisaria pensar o trabalho de base. Então, a gente continua fazendo as duas coisas. O imediato que é matar fome. E o outro lado? Dá uma perspectiva de quem estava lá, então a gente inicia com os Agentes Populares de Saúde, que era no auge da pandemia ensinar a lavar as mãos, como usar máscara ou depois de tantas horas a máscara já não têm efeito, tipo cuidados bem básicos assim de saúde. A pandemia também foi muito pesada. As crianças ficaram praticamente três anos sem ir para a escola. Então, entrou um pouco com o reforço escolar, com acompanhamento escolar. Então, tinha alimentação, tinha saúde, tinha reforço escolar e a partir dali a gente começou a entrar e ver que ali apesar que a gente ainda acha que tem um bom caminho a percorrer, ali é um diálogo que vale a pena. E é um construir mesmo. De construir coletivos que possa ser protagonista. De conhecer o território. De se unir em lutas estruturais daquele território.

Me parece que o MST, claro, já tinha uma certa referência. Vamos dizer que pessoas nos territórios muitas vezes já conheciam a caminhada do MST, daí vocês ainda trazem algo muito concreto que é o alimento. Num processo difícil para a esquerda brasileira. A gente está falando de 2020, daí a partir de então, na crise da pandemia e do governo Bolsonaro. E nisso, vocês e a esquerda como um todo vão tentando retomar uma confiança política nesses territórios.

Eu acho que a gente entrou com duas coisas, uma era o alimento que estava gritante naquele momento com o governo, ou desgoverno Bolsonaro, que a gente não via nenhuma esperança. Então, o alimento também foi essa possibilidade de esperança. A segunda, olhando para essa perspectiva das lutas unitárias do campo e da cidade. Por exemplo, a gente planta, ó, vocês precisam do alimento. E de que alimento? A gente estava, lógico, pela primeira vez, para quem estava nas periferias e recebia o alimento, a reforma agrária fez sentido. Ah, vocês estão falando que vocês querem terra para plantar. E essa terra é pra isso, para vocês entregarem alimento. E a gente conseguiu abrir um leque assim de prosa no sentido de não é qualquer alimento. A gente está falando que esse alimento que a gente está oferecendo é agroecológico. Daí tinha essa abertura de saber o que é agroecologia e tudo mais, que depois se desdobrou nos mutirões de de ir para o assentamento. A outra coisa era até nós se enxergar: a gente faz luta por terra. Aqui, a luta é por moradia. Mas as duas coisas, se encontram, sabe? E acho que a pandemia fez a gente reafirmar esse papel enquanto classe, mesmo, de lutas comuns, de possibilidade de a gente se juntar. Eu acho que o Despejo Zero é a prova disso. Então, o MST tinha de fato uma experiência na luta, da organicidade e essa experiência a gente conseguiu trocar. E, por outro lado, a gente olhava para as periferias e via problemas que, de certa forma não era problema no nosso território. Mas tinha uma unidade das necessidades, sabe? E quando a gente falava em partilhar alimento para a nossa base, era um negócio assim. Ah, na cidade, tem gente passando fome. Não precisávamos explicar isso, porque nosso povo hoje está na terra, mas também já tinha passado isso. Então, a pandemia foi de fato uma possibilidade de a gente se enxergar enquanto classe, enquanto necessidade, enquanto projeto comum ir para a cidade também.


Coletivo Marmitas da terra teve destaque nas ações de solidariedade para áreas da campanha Despejo Zero. Foto: Jade Azevedo

O MST, nos últimos anos, em que pese a dificuldade da esquerda brasileira, é fato que conseguiu formar quadros nesses 40 anos, na base, quadros militantes, quadros dirigentes, uma estrutura que nas cidades a gente não tem, às vezes sequer nas organizações constituídas. Que dirá nesses territórios. A dificuldade de trazer as pessoas para essa cultura organizativa, como vocês avaliam isso?

É porque é um pouco diferente a luta do campo com a luta da cidade. Por exemplo, a gente luta por território e o nosso povo defende território. Por exemplo, quando eu vou para um acampamento e depois eu quero que aquele lugar vire um assentamento. Eu estou dizendo que naquele lugar eu quero que tenha escola, quero ter trabalho, quero que meus filhos estudem ali. Então, não é algo que eu quero sair dali. Sabe? Algo que eu quero me constituir enquanto coletivo ali. Uma ocupação urbana, às vezes dá impressão que eu estou aqui, mas eu não crio laços, não é? Então, porque a qualquer momento eu posso sair daqui. Então, eu acho que, talvez, o nosso maior desafio é como que a gente unifica o território. Como algo de poder popular, como algo de moradia, de trabalho. Então faz total a diferença quando você cria vínculos ali, quando você vai fazendo o coletivos capazes de ter ali resistência com trabalho e renda, por exemplo. Uma pessoa que mora no Tatuquara e trabalha em Colombo, Tatuquara vai ser só para dormir. Então, quando ele chega lá, ele não tem condição de dialogar com os vizinhos, de saber o que está acontecendo ali. Mas na medida que seus filhos estudam ali perto, na comunidade que você também precisa do transporte ali, que os seus filhos no contraturno se alimentam da cozinha comunitária. E você vai criando vínculo, sabe?

 E talvez isso é uma coisa que o capitalismo tirou nós, do vínculo do território, porque sabe que isso é poderoso, e do vínculo afetivo com o território também. De querer ficar ali, de querer construir, de gostar de morar ali. Então, as ocupações urbanas não é à toa que sofrem de tempo em tempo essa ameaça de despejo, né? porque quando você vai enraizando um processo também o poder local se toca. Enraizar processo também é enraizar poder das famílias que estão ali. De querer criar vínculo do comércio, olhar para as pessoas que não é uma ocupação, mas que tem gente que compra, que paga, que vive, movimenta o bairro, sabe? Então essa movimentação é um vínculo importante uma ocupação como aquele território. 

Qual a sua definição de feminismo popular? Como explicar essa construção?

“Então, a pandemia foi de fato uma possibilidade da gente se enxergar enquanto classe”. Foto: Giorgia Prates

Quando você fala, olhe, você, catadora individualmente, você não vai conseguir. Mas se a gente pensar num todo, nós, por exemplo, dez de uma comunidade, fazendo uma cooperativa, uma associação, junto, a gente pode fazer um projeto e pode ter um caminhão. E, além disso, a gente não precisa entregar para atravessador o material reciclável. A gente pode ter uma prensa e nós vamos ser donas do nosso negócio. E alguma de nós pode estudar administração e administrar o nosso negócio e as nossas filhas não precisam sair daqui e ser empregada doméstica ou balconista no shopping. Então, esse coletivo, que eu acho que é o que é o feminismo popular. Essa é a maneira de você ir olhando: está enraizado o machismo aqui, existe violência e a violência também passa pelo econômico. Não tem como não passar. A maioria das mulheres são chefes de família nas ocupações. São elas que trazem a maior renda.

*Editado por Solange Engelmann