Frente Parlamentar Mista com Participação Popular faz carta à CNBB contra pacote anti-crime
Em nota, entidade faz apelo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em prol do debate público sobre às mudanças propostas pelo ministro Sérgio Moro

Da Página do MST
Entendendo que as medidas propostas pelo ministro da Justiça Sérgio Moro representam um risco a às populações mais pobres, a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e Direitos Humanos com Participação Popular emitiu uma carta para a sensibilização da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil sobre o debate.
O pacote anti-crime de Moro promete “reduzir drasticamente” os índices alarmantes de crime no Brasil. Entretanto, especialistas apontam que, caso seja aprovado, o pacote legitimará execuções e extermínios praticados por policiais, além de facilitar enquadrados de crimes passionais e feminicídios e aumentar número de encarcerados, dentre outros problemas do projeto. Segue abaixo a carta:
Carta à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
A sociedade civil organizada e movimentos sociais, por meio da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e Direitos Humanos com Participação Popular , movidos pelo ímpeto de defesa dos direitos fundamentais, sobretudo das populações mais vulneráveis, vêm, à CNBB, apresentar suas preocupações quanto aos Projetos de Lei n. 881/2019 e 882/2019 em tramitação na Câmara dos Deputados, bem como quanto aos Projetos de Lei do Senado n. 1.864/2019 e 1.865/2019, popularmente denominados “Pacote Moro” e/ou “pacote anti-crime” e solicitar o engajamento da CNBB.
O “pacote anti-crime”, apresentado pelo Ministério da Justiça ao Congresso Nacional, apresenta alterações ao Código de Processo Penal, Código Penal, Lei de Execução Penal e se propõe a “enfrentar a corrupção e o crime organizado”, a partir do recrudescimento penal e da relativização dos direitos e garantias individuais.
Os projetos estão com tramitação avançada: na Câmara dos Deputados foi composto um Grupo de Trabalho para conduzir audiências públicas e analisar as propostas e, no Senado Federal, já possuem relatores designados e, a princípio, tramitarão somente pela Comissão de Constituição e Justiça (em apreciação terminativa), sem qualquer discussão aprofundada.
As fórmulas primordialmente baseadas recrudescimento penal estão sendo experimentadas há anos pela sociedade brasileira e têm se mostrado ineficazes e, na prática, ensejado o aprofundamento da insegurança pública e da violência contra a população periférica, incluindo o encarceramento em massa.
A ampliação das excludentes de ilicitude para policiais, um dos itens de destaque da proposta em comento, vai de encontro à necessidade de adoção de medidas voltadas à diminuição da morte de civis por agentes de segurança pública, com atenção à evidente seletividade no que toca ao exercício da violência letal por parte desses agentes.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Núcleo de Estudos da Violência da USP mostram que, em 2017, apenas no Estado de São Paulo, 19,5% das mortes violentas foram provocadas por policiais, sendo que três quartos desse contingente é composto por jovens negros. Tal número, no entanto, é inferior ao real e de difícil aferição em escala nacional, dada a subnotificação, especialmente nos casos envolvendo a associação de agentes de segurança pública e grupos de extermínio ou milícias.
A inclusão do “medo, surpresa e violenta emoção” como possíveis causa de redução ou isenção de pena, ampliam a discricionariedade do judiciário e podem contribuir para a ampliação da violência contra a mulher – retomando a tese da legítima defesa da honra, por exemplo. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no Brasil, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras e uma média de 13 mulheres assassinadas por dia no país. Os dados são do Atlas da Violência 2018, que aponta ainda que, em dez anos, entre 2006 e 2016, observou-se um aumento de 6,4% na taxa de homicídios de mulheres. A taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3%) do que entre as não negras (3,1%) — uma diferença de 71%.
Diante ainda desse quadro, a adoção de medidas de estímulo à posse e porte de armas de fogo, responsáveis por mais de 70% das mortes violentas no país, merece também especial destaque. Há o risco de aumento dos feminicídios também pela ampliação da posse de armas, dado o fato de que a maioria desses delitos ocorre em ambiente doméstico, além da precarização da atividade de segurança pública, a partir dos riscos que a política de confronto traz à vida dos policiais.
Vale destacar ainda a inadequação da adoção de mecanismos negociais como solução para a ineficiência e morosidade do sistema de justiça criminal brasileiro. A proposta viola a garantia constitucional do devido processo legal e ignora a ausência de efetivo controle sobre a atividade do Ministério Público. Importar o mecanismo de acordos penais, previstos em legislações estrangeiras, desconsiderando as diferenças entre os sistemas jurídicos dos países, agravará o superencarceramento.
Outro problema da proposta apresentada pelo Ministério da Justiça está na inconstitucionalidade da execução antecipada da pena, após a condenação em segunda instância ou mesmo em primeiro grau, no caso do procedimento do júri. Diante do número considerável de provimento de recursos pelos Tribunais Superiores, a execução antecipada é um caminho aberto para o aumento de casos de erros do judiciário.
O aumento dos lapsos para progressão de regime – e a vedação da progressão em alguns casos – viola o princípio constitucional da individualização das penas e ignora o crescimento exponencial das taxas de aprisionamento no Brasil, especialmente por crimes menos graves. A proposta contraria o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que valoriza o sistema progressivo de penas (Súmula Vinculante 26 e HC 82.959). A vedação da liberdade provisória e progressão de regime a pessoas com conduta criminosa considerada “reiterada ou habitual”, poderá ter impacto significativo no encarceramento de acusados da prática de delitos leves, como mulheres em situação de vulnerabilidade social e usuários de drogas.
As medidas de endurecimento da execução das penas, como os modelos de segurança máxima ou os que implicam em isolamento, restrição de visitas e monitoramento indiscriminado de conversas (com advogados, familiares, representantes religiosos, etc), bem como a obstrução de saídas temporárias, também objeto dos projetos de lei, violam direitos e garantias constitucionais, incluindo de familiares, tendo se mostrado problemáticas e inefetivas nos países em que foram empregadas.
O “pacote anti-crime” foi elaborado sem qualquer participação ou consulta à sociedade civil e a integrantes do sistema de justiça, carecendo de efetiva construção democrática, de embasamento teórico e de análise de impacto social e econômico.
Não olvidamos que a violência é uma realidade que hoje assola o país, contudo temos claro que as estratégias para o enfrentamento devem ser consistentes e embasadas em pesquisas empíricas, observando os direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição Federal e nos tratados internacionais de Direitos Humanos.
A complexidade e magnitude dos problemas em questão requerem a construção de respostas sistêmicas e sofisticadas, que passam pela implementação de direitos sociais, pela discussão das competências federativas e reclamam um amplo planejamento e uma reorganização estrutural da governança, gestão e controle social dos órgãos de segurança pública, do sistema prisional e do sistema de justiça criminal.
A insistência em soluções calcadas na ampliação do encarceramento revela despreocupação com o estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário nacional, cuja superlotação tem servido menos à redução da violência e mais ao recrutamento de pessoas em situação de vulnerabilidade pelas facções que se pretendem ver desarticuladas.
Desta feita, as entidades e Parlamentares aqui presentes, por meio da Frente Parlamentar Mista com Participação Popular em Defesa da Democracia e Direitos Humanos, conclamam, por fim, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil a se unirem a nós na luta em defesa aos direitos fundamentais, os quais encontram-se vilmente ameaçados por tais projetos de lei que, repisa-se, não devem prosperar.
Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e Direitos Humanos com Participação Popular
Brasília, 03 de abril de 2019.