Haiti, antes e depois da tragédia anunciada
Por Jose Luis Patrola
A conquista da independência haitiana efetivada mediante uma verdadeira guerra de escravos contra o exército de Napoleão no ano de 1804 se tornou a primeira revolta de escravos que triunfara na história da humanidade, reativando as lutas pela independência no continente. A revolução haitiana rompera com três grandes lógicas do período colonial: a escravidão, a dependência e a propriedade da terra. Os principais lutadores pela liberação colonial latino americana daquele período, como Jose Martí e Simon Bolívar, espelharam-se na revolução haitiana. Ao mesmo tempo, os ideais internacionalistas da solidariedade e do apoio mútuo estiveram presentes na estratégia política dos principais generais haitianos como Dessalines, Petion, Kristophe e outros que venceram as batalhas contra o exército do império francês.
Em março de 1806, durante o governo do pai da pátria haitiana, Jean Jacques Dessalines, Francisco de Miranda (um dos pais da pátria venezuelana) desembarcou no Haiti e jurou levar aquele exemplo vitorioso e inspirador para seu país e para todo o continente. Naquele momento, o país que acabara de sair de uma guerra que havia durado mais de 13 anos não tinha muito a contribuir além do exemplo e da inspiração aos demais lutadores. Miranda retornou à Venezuela inspirado.
Em 1815, depois de ter travado várias batalhas contra os espanhóis na costa caribenha, Simon Bolívar desembarcou na ilha liberta. Seu exército havia sofrido várias baixas e se encontrava muito enfraquecido, além de lhe faltar recursos básicos para uma série de batalhas que alguns anos após triunfariam. Na época, o governo da recém fundada república haitiana, Alessandro Petion, realizara uma campanha nacional para arrecadar fundos para o Libertador latino americano. Uma imensidade de armas, alimentos, água, barcos e um batalhão de 300 combatentes conformou a solidariedade do povo haitiano para fortalecer a luta que encabeçava Bolívar pela independência na América Latina naquele momento. Em 1816 a mesma ajuda seria repetida.
A conquista da independência da Venezuela, Colômbia, Equador e Bolívia levada a cabo por Simon Bolívar foi capaz graças a solidariedade haitiana que exigia apenas a liberação colonial como reciprocidade. Não há dúvidas que, em grande parte, o triunfo de Miranda e Bolívar se efetivou com o apoio daquele pequeno país liberto que servira de base para o fortalecimento das lutas pela independência no continente.
Depois de 1825 o Haiti ingressa num processo de grave crise econômica sendo obrigado a pagar uma dívida milionária por sua independência. Naquela época, a França impôs um novo mecanismo de colonização; a partir desse período quase toda a economia do país se destinou ao pagamento da “dívida da independência”. Depois desse evento lamentável a economia haitiana jamais se recuperaria pois mergulhara em várias crises estruturais relacionadas à terra e ao meio ambiente, à autonomia econômica e à autonomia política.
Um século de ocupação militar norte americana
No início do século XX os Estados Unidos começam a exercer influencia sobre a região e para assegurar o controle absoluto instala em 1915 a primeira ocupação militar norte americana. Os 19 anos de ocupação militar alem de estabelecer uma “nova ordem econômica” forçando um novo reordenamento territorial e demográfico a partir de interesses de empresas agrícolas, elimina fisicamente uma geração de lutadores sociais. Benwa Batravil e Chalmay Peralt, junto a mais de 19 mil haitianos, foram assassinados após travarem sangrentas batalhas contra os marines daquele momento.
No ano de 1957 após receber o apoio direto e irrestrito de organismos norte americanos o ditador Jan-Claude Duvalier assume o poder impondo a ferro e fogo um terrível silencio ao povo haitiano. Após a morte de Jean-Claude, seu filho François Duvalier foi nomeado presidente em reunião ocorrida na própria embaixada dos Estados Unidos em Porto Príncipe. Em 1986, após forte movimento interno a ditadura é derrubada deixando um saldo de mais de 30 mil mortos finalizando a segunda ocupação militar norte americana.
Em 1991, após sete meses de governo do presidente democraticamente eleito Jean Bertran Aristides, um golpe militar patrocinado pelos Estados Unidos em aliança com setores locais derruba o primeiro presidente eleito nas primeiras eleições livres na história do Haiti. Por três ano a violência se instalaria com a presença de 20 mil marines, deixando um saldo aproximado de 4 mil mortos na efetivação da terceira ocupação militar norte americana.
No ano de 2000, Aristides seria eleito presidente pela segunda vez. Nesse período o Haiti comemoraria 200 anos de sua independência. Aristides, eleito democraticamente, começara a cobrar a “dívida histórica” existente de países como Estados Unidos e Franca para com o pequeno país caribenho. Não contente com as exigências feitas naquela ocasião, setores norte americanos patrocinam uma campanha “cívico para militar” desestabilizando o governo de Aristides. Em 2004 tudo estava preparado para a efetivação da quarta ocupação militar norte americana apoiada pela França.
No dia 12 de janeiro do ano de 2010 um terrível terremoto afeta duramente o empobrecido e desestruturado país. De imediato, os Estados Unidos decidem, unicamente por sua “boa vontade” enviar 20 mil marines, porta-aviões, helicópteros e outros instrumentos de guerra. Nessa ocasião se efetiva a quinta e maior ocupação militar norte americana. Esta por sua vez, estendida a todo o continente sul americano.
O terremoto e os efeitos colaterais
Depois de todo o sensacionalismo midiático envolvendo a tragédia, começam aparecer os verdadeiros estragos ocasionados pelo abalo sísmico no interior da sociedade. Vejamos; A zona mais populosa do país com toda sua precária estrutura urbana destruída; Centenas de milhares de pessoas sem casas e sem perspectivas de trabalho; Uma nova ocupação militar massiva preparada para a guerra; Uma massiva migração urbano rural inchando ainda mais o empobrecido meio rural; Empresas especialistas em segurança e reconstrução criam sites oferecendo-se para “ajudar” o país pobre; A imposição do controle norte americano, consentido pelo governo local, distante de qualquer decisão da ONU e da OEA; Uma população pobre, desorganizada, mas resistente mostrando-se capaz de enterrar seus mortos e lutar contra a morte eminente.
Onde o problema é mais grave
Os problemas sociais do Haiti sempre foram graves. As denúncias de ausência de infra-estrutura básica e inexistência de programas estruturantes de ajuda encheram páginas, entrando e saindo dos olhos e dos ouvidos de muitos. Com o terremoto, os problemas se agravaram ainda mais e a impossibilidade de não ver e de não escutar fez com que a dita “comunidade internacional” olhasse de maneira mais séria àquele país duramente castigado pelas forças da natureza e pelas potencias internacionais.
É evidente que o atual momento consiste em ajudar naquilo que consideramos emergencial. Significa auxilio em alimentação, água, saúde, acampamentos assegurando condições mínimas para os atingidos. No entanto, a médio prazo já sentimos a necessidade da ajuda estrutural no processo de reconstrução e na ativação de produção de alimentos. O Haiti necessita urgentemente de reforçar sua capacidade produtiva com um processo de incentivo a produção rápida de legumes, de grãos, de aves e porcos, construção de açudes para armazenamento de água, bem como um urgente plano de reflorestamento. A maior parte da economia haitiana sempre foi rural e agora a já pobre população receberá cerca de um milhão a mais de habitantes e terá incumbência de produzir alimentos prioritariamente para este novo público, bem como para a população das zonas afetadas. Os movimentos sociais camponeses do Haiti em conjunto com governos progressistas do continente e do mundo deverão instalar uma revolução agrária para não permitir o aumento ainda maior da fome e a possibilidade de uma catástrofe demográfica eminente e sem precedentes históricos.
A solidariedade consiste em ajudar a resolver os problemas mais graves e estruturais da sociedade haitiana. Ajudar os camponeses significa atacar o problema por sua raiz.
Na da história da humanidade, os camponeses sempre conformaram a categoria social mais solidária nas relações sociais internas a eles. No caso haitiano se comprova mais uma vez essa realidade. Milhares de pessoas migram das zonas afetadas, buscando melhores condições nas regiões não afetadas. Mais de 10% da população migra de maneira desesperada buscando a solidariedade. Os pobres se tornarão ainda mais pobres. A fome se tornará ainda mais eminente. A falta de água será constatada de forma ainda mais sistemática. A população se auto ajudará ainda mais. E nós, o que faremos na eminência de uma tragédia anunciada?
Membro do MST e coordenador do programa de cooperação entre a Via Campesina e organizações camponesas do Haiti