Reforma Agrária: vantagens sociais e econômicas
Da Página do Instituto Humanitas Unisinos
Vantagens sociais, políticas e econômicas para a produção agrícola. Esses seriam os pontos positivos trazidos pela reforma agrária no Brasil, junto da limitação da propriedade da rural. “Não havendo limite para a expansão da propriedade da terra, não há limite, igualmente, para o crescimento da pobreza da população sem terra”, acrescentou o advogado Jacques Alfonsin na entrevista que concedeu à IHU por e-mail. Além disso, caso essa limitação não seja colocada em prática, a reforma agrária não passará de uma “mera” hipótese.
Ele analisou, também, os efeitos perversos que a mercantilização da terra provoca em nosso meio-ambiente, destacando que jamais o latifúndio tomou em conta “que, além da relação de pertença do proprietário com o seu bem, o direito de propriedade da terra tem de respeitar o seu destino”.
Segundo Alfonsin, há uma desproporção entre as benesses oferecidas pelo Poder Público ao agronegócio, sobretudo ao exportador, comparativamente àquelas destinadas à agricultura familiar. Tal postura reflete uma opção política que “se assemelha ao velho e perverso modelo colonizador que nos oprimiu no passado e ainda deita suas raízes nos dias de hoje”.
Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul. É mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. É membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e publica, periodicamente, seus artigos nas Notícias do Dia na página do IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o contexto histórico do surgimento da propriedade privada da terra?
Jacques Alfonsin – Como o ordenamento jurídico brasileiro ainda conserva muito da sua principal fonte histórica e mais remota, que é a do Direito Romano, o surgimento da propriedade privada da terra também guarda afinidade com o tratamento jurídico que aquele Direito dava a esse mesmo bem. Lá, o direito de usar e abusar da terra, “contanto que a razão e o direito permitissem”, desdobrou-se na história, de regra, muito sem razão e pouco ou quase nada de justiça. Cícero, à época em que vigia tal direito, já denunciava os efeitos nefastos que ele geraria.
Para ele, a propriedade privada da terra somente poderia ser respeitada no que bastasse ao trabalho e ao consumo dos seus proprietários. Esse tipo de crítica, além de antecipar, em séculos, a racionalidade e a conveniência do plebiscito agora em campanha no nosso país, constitui evidente censura às características opressoras que o sistema capitalista impôs, mais tarde, e que ainda está em vigor hoje, como se refletisse um processo civilizatório superior e mais humano. O sentido de propriedade privada, então, não seria igual ao da propriedade particular, somente, como hoje conhecemos. Mas seria, isto sim, o de privada de outra serventia, isto é, de que ela não deveria ultrapassar a medida indispensável à satisfação das necessidades vitais das pessoas proprietárias. Isso demonstra que o supérfluo e tudo o que excedesse tal medida, já requereria outro tratamento jurídico.
Não é de se duvidar que tal concepção de direito tenha influenciado Proudhon e Rousseau (Cf.: O que é a propriedade? e Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, respectivamente). O primeiro, quando afirmou que, assim como a terra, também a água, o ar e a luz são coisas comuns não porque inextinguíveis, mas porque indispensáveis. O segundo, quando bradou, referindo-se a quem contrariasse o primeiro homem que, cercando um terreno, falou “isto é meu”: “Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: Evitais ouvir esse impostor. Estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém”. Esse “ninguém”, à luz do Direito Moderno, bem poderia ser traduzido como “comum”.
IHU On-Line – Qual é a necessidade e a importância de se estabelecer um limite para a propriedade da terra?
Jacques Alfonsin – A necessidade deriva dos efeitos que um direito com potencial de expansão ilimitada pode causar ao povo e à terra. Ao primeiro, pelo fato de que, com a concentração progressiva da propriedade individual sobre esse bem da vida, o seu poder de exclusão diminui progressivamente também a disponibilidade de espaço-terra para a presente e para as futuras gerações. À segunda, pelos danos que a sua exploração predatória já causou, causa e ainda causará ao meio-ambiente, à biodiversidade que a natureza criou em favor do ar, das águas, da flora e da fauna. Daí a importância de se estabelecer um limite para esse poder expansionista e de exclusão que o direito de propriedade tem, por sua própria natureza, não prosseguir escravizando terra e gente.
IHU On-Line – Limitar a propriedade da terra seria um elemento importante para promover a reforma agrária brasileira? Por quê?
Jacques Alfonsin – Sem o estabelecimento de um limite de terra titulada por domínio particular, a reforma agrária tende a se perpetuar, seja como mera hipótese (como já está acontecendo atualmente, tão modestos são os seus resultados), seja como solução efetiva para o problema da mais justa partilha da terra. Não adianta essa reforma se preocupar apenas com os efeitos econômicos e sociais de um determinado tipo inadequado de uso e exploração da terra – aquele que o latifúndio desenvolve, com raras exceções, por exemplo – sem que as causas dessa forma de extensão do espaço físico territorial que ela comporta fiquem imunes à utilidade social e à vigilância pública indispensáveis às garantias devidas, de forma particular, aos direitos humanos fundamentais de alimentação e moradia para todo o povo. Entre tais causas se encontra, justamente, a licença legal indiscriminada concedida a quem, por sua fortuna, não considere nenhum limite legal para aquela extensão.
IHU On-Line – O que mudaria no mapa da produção agrícola brasileira com a limitação da propriedade da terra?
Jacques Alfonsin – A produção agrícola receberia vantagens sociais, políticas, e econômicas. Sociais, porque facilitaria o acesso das pessoas pobres à terra, coisa que, de regra, somente acontece com quem, por já ser proprietário de terra, tem crédito facilitado, dinheiro e, consequentemente, poder de estender a sujeição do seu direito (!) a mais terra; políticas, porque o território do país, melhor partilhado e distribuído entre seus próprios filhos e filhas, teria mais chance de resistir à verdadeira desterritorialização que está sofrendo com o avanço das empresas transnacionais sobre ele, interessadas apenas na terra enquanto mercadoria; econômicas, porque a mudança do destino atualmente prioritário que nossa terra dá ao agronegócio exportador – que prefere mandar para fora daqui o fruto da terra que falta à grande parte do nosso povo – abriria maior possibilidade de um consumo de massa, acessível à maioria, ampliando a tendência atual de a propriedade familiar rural alimentar o povo.
IHU On-Line – Com tantas terras improdutivas no Brasil, como podemos compreender que ainda existam agricultores que não têm onde plantar e viver?
Jacques Alfonsin – Produtivos ou improdutivos os espaços físicos (terra), eles seriam mais do que suficientes para todos, brasileiros e brasileiras, de modo particular àqueles sem terra. A economia capitalista, todavia, só reconhece a necessidade alheia na medida em que ela possa comprar a sua satisfação. Entre os tipos de economia, há o do sempre mais é o melhor (típico do capitalismo), chamado de crematística (do grego, açambarcamento de riquezas por prazer, puramente especulativo, constituindo reserva de valor, indiferente aos efeitos que isso possa causar) e o do sempre garantir o suficiente para todos os membros da comunidade (típico da economia solidária). Ao primeiro, corresponde o chamado produtivismo, uma espécie de exploração da terra indiferente ao futuro dela, mesmo que esse seja a sua morte. Ao segundo, corresponde a produtividade, ou seja, uma espécie de uso desse bem, que preserve todo o potencial de vida que ele comporta. Esse tipo, como acontece com a palavra solo, também traduz mais adequadamente a etimologia da palavra economia (oikos, do grego, casa; nomos, norma, regra). A gente esquece com facilidade que a própria etimologia da palavra solo traz em si a sua finalidade prioritária. Solo tem a mesma raiz de sola, de sal e de sala, como a nos advertir de que a finalidade primeira de sua posse (não necessariamente propriedade) é a preservação da vida e dos meios para que essa se conserve, como a comida e a casa.
IHU On-Line – Qual é a relação que existe entre a criminalização dos movimentos sociais, como o MST, e a demora na realização da reforma agrária?
Jacques Alfonsin – É princípio elementar de qualquer legislação que a todo o direito corresponde a possibilidade, a garantia de sua defesa. Uma das maiores incongruências que a interpretação dada ao nosso ordenamento jurídico é a de que todos os direitos que a pobreza, por si só, atesta como violados (falta de comida ou de casa para ficar com os exemplos mais visíveis) não são só considerados como infringidos.
Então, o país vive esse paradoxo. Não havendo limite para a expansão da propriedade da terra, não há limite, igualmente, para o crescimento da pobreza da população sem terra, exatamente aquilo que a reforma agrária visa remediar, com base, inclusive, na Constituição Federal. Mesmo que, em desespero, como acontece com agricultores sem terra, sejam forçados a apelar para a justiça de mão própria, ocupando terras, isso lhes é imputado como crime.
Entretanto, a pré-exclusão da ilicitude de tais gestos encontra apoio implícito e explícito em mais de uma disposição do Código Civil e do Código Penal. Eu não tenho conhecimento de que algum latifundiário brasileiro, inclusive grileiro, tenha sido denunciado ou condenado criminalmente, por exemplo, pelo fato de interpretar e praticar a seu modo a justiça de mão própria (!), descumprindo com a obrigação de garantir função social ao seu direito de propriedade sobre terra, quando aberrações como essas, por si sós, constituem crime, no mínimo, contra a preservação do meio-ambiente e a economia popular.
IHU On-Line – Qual a importância da participação popular no plebiscito de setembro?
Jacques Alfonsin – Além da pressão política que o plebiscito deve exercer sobre os poderes públicos, ele pode alcançar outros efeitos nada desprezíveis em favor do povo trabalhador e pobre do nosso país. Primeiro, o de se constituir em mais um fator de conscientização e de organização dos movimentos populares, impulsionando antigas e novas ideias-força em favor de novas conquistas traduzidas em efetivas garantias de seus direitos humanos fundamentais; segundo, provar, mais uma vez e de público, em que medida a economia solidária da propriedade familiar rural é muito mais eficaz em favor da alimentação e da moradia do povo, do que a imposta pelo latifúndio, especialmente o do agronegócio exportador; terceiro, ampliar o empoderamento das reivindicações das populações sem terra, dos pequenos proprietários e proprietárias rurais, das comunidades atingidas por barragens, em favor da reforma agrária, atrasada em décadas pela força contrária da Confederação Nacional da Agricultura – CNA e da bancada ruralista no Congresso Nacional.
IHU On-Line – Há uma expectativa de resultado desse plebiscito?
Jacques Alfonsin – O otimismo das organizações empenhadas no plebiscito é muito grande. Intensificando-se a campanha em favor de mais de um milhão e meio de assinaturas (veja-se como proceder no sítio do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo – FNRA), durante a primeira semana de setembro, já no dia 7 daquele mês espera-se contar com esse número. Há de se convir que, em ano de eleições, isso não é pouca coisa. A pressão popular em favor daquilo do que hoje já é lei, como a da Ficha Limpa, por exemplo, autoriza esperarem-se resultados semelhantes àquela iniciativa, condizentes com as urgências que o combate à injustiça social reinante no campo está a exigir.
IHU On-Line – Quais são os maiores disparates na concentração de terras no Brasil?
Jacques Alfonsin – As estatísticas que refletem o último censo agropecuário do país demonstram distorções inaceitáveis e, para nosso pesar, refletindo históricas injustiças. Além dos efeitos perversos que a mercantilização da terra provoca ao meio-ambiente do país, o latifúndio jamais levou em consideração que, além da relação de pertença do proprietário com o seu bem, o direito de propriedade da terra tem de respeitar o seu destino. Se a pertença permite ao titular dela usar e gozar da terra própria, isso não pode ir ao ponto de, pelo destino dado aos seus frutos, tornarem-se nulos todos os efeitos jurídicos que a soberania do povo impõe. A terra não é somente dos proprietários. Como fonte de vida para todos, a desigualdade que impera hoje, medida entre um pequeno número de proprietários (pouco mais de 02 %) titulando mais de 40% do território brasileiro, não só escandaliza como gera em todo o povo sem terra uma justificada indignação ética, por si só legitimadora, até, de desobediência civil.
IHU On-Line – Por que há tanto incentivo ao agronegócio quando a maior parte da produção de alimentos o Brasil é feita pela agricultura familiar?
Jacques Alfonsin – As forças econômicas e políticas que os latifundiários têm, com influência direta sobre o Poder Público e a mídia, criam todo um ambiente ideológico em seu favor, a ponto de neutralizar pressões sociais contrárias que, entretanto, representam o melhor para o povo e a terra. Se a grande propriedade rural não fosse danosa ao povo e à terra, a Constituição Federal não teria previsto um capítulo inteiro dos seus dispositivos dedicados à reforma agrária. Um exemplo do mal que esse tipo de poder e influência tem pode ser dado pelas sucessivas CPMIs que são criadas no Congresso Nacional, as quais, mesmo não obtendo prova das suspeitas que ele levanta contra o MST e as organizações que o apóiam. Ainda que pouco ou nada encontrem de ilicitude nessas iniciativas, obtém os efeitos perversos que as inspiram por que condenam, de fato, toda a rebeldia justificada das populações sem terra, através dos meios de comunicação social que manipulam. A desproporção existente entre as benesses que o Poder Público oferece ao agronegócio, especialmente o exportador, quando comparadas com o que merece a propriedade familiar, sinaliza uma opção política que, guardadas as proporções históricas, se assemelha ao velho e perverso modelo colonizador que nos oprimiu no passado e ainda deita suas raízes nos dias de hoje.
IHU On-Line – Quais são os maiores problemas ligados ao latifúndio?
Jacques Alfonsin – Se não fossem suficientes aqueles já apontados nas respostas às perguntas anteriores, um dos maiores é o da tradição cultural que ele impõe, especialmente ao povo pobre menos conscientizado, sobre a herança escravagista e opressora que marcou a sua implantação no nosso país. A senzala ainda remanesce hoje na forma do trabalho escravo, cuja abolição por sinal, projetada há quase uma década, está barrada no Congresso Nacional, justamente, por ter sido a política dos titulares dessa forma atrasada e cruel de concepção da terra e da gente da terra. Ninguém ignora o fato de que, onde predomina o latifúndio brasileiro, predomina também o atraso, o analfabetismo e a indigência de quantas pessoas nele trabalham ou dele dependem, direta ou indiretamente.
IHU On-Line – O senhor acha a medida de módulos fiscais justa? Por que ela varia tanto de Estado para Estado?
Jacques Alfonsin – Os módulos fiscais não passam de ser a régua física do tamanho mais adequado de uso e exploração da terra. A natureza, justamente por sua biodiversidade, abre um leque incomensurável de possibilidades abertas ao uso mais razoável do solo. Assim, não é possível se comparar a forma topográfica e de clima da serra gaúcha com a da campanha, por exemplo. Tudo bem como o próprio Estatuto da Terra dispôs: uma terra apropriada à produção de hortifrutigranjeiros não pode ter as mesmas características e o mesmo tamanho de uma terra onde se cria o gado. Daí que o Grau de Eficiência na Exploração – GEE, comparado em cada terra rural do país, titulada ou não, como o Grau de Utilização da Terra – GUT, facilita a qualquer agricultor ou criador de gado, usar da melhor forma possível o seu imóvel, inclusive no que se refere à sua produção e função social. Esses graus, como se sabe, estão congelados, no que se refere à sua produtividade, desde a década de 1970 do século passado e, por incrível que possa parecer, a oposição latifundiária encastelada no Congresso Nacional não permite a sua revisão, prevista como devendo ser feita periodicamente no próprio Estatuto da Terra. Tudo deve ficar como está, como se o uso e a exploração da terra, daquele período para cá, não tivesse se beneficiado de todos os progressos agronômicos, de todas as técnicas agrícolas de melhor amanho desse bem. Para quem tanto brada contra as populações sem terra por desobedecerem lei (!) aí está uma prova de que, dependendo do lado desta desobediência, ela deve passar a ser considerada virtude.