Resistência
Acampamento Marielle Vive! em São Paulo: entenda a história de luta e resistência
Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
A história do acampamento Marielle Vive, localizado na cidade de Valinhos, região metropolitana de Campinas (SP), foi construída a partir de sonhos, suor e esperanças de 450 famílias que vivem hoje na região. Ameaçadas de despejo, estas pessoas vieram principalmente das cidades de Limeira, Valinhos, Americana, Sumaré, Hortolândia e da periferia de Campinas, e vem reivindicando o direito à vida e à terra, a partir da produção de alimentos saudáveis.
Na última terça-feira, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu pela manutenção do despejo do acampamento, ferindo direitos humanos fundamentais destas pessoas, principalmente considerando a vigência da Covid-19. Como forma de denúncia, o MST ocupou nesta terça-feira a faixada do Incra em São Paulo contra o despejo destas pessoas, dentre elas 150 crianças, que passam a não ter mais um teto e/ou meios de sobrevivência.
“A decisão do TJSP é gravíssima e inconsequente frente a vigência da Covid-19, expõe os reais interesses representados e como funciona do sistema Judiciário. Mesmo diante do crime constitucional há anos cometido pela Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários, que não cumpre a função social da terra, degrada o solo e o meio ambiente, o Tribunal decidiu pela manutenção da posse precária da Fazenda destinada à especulação imobiliária, que usurpa a terra em detrimento do social, das leis, do direito à moradia e à Reforma Agrária”, lembra a carta do MST sobre a decisão da justiça.
É preciso entender a dimensão humana e social da região, principalmente em tempos em que as fake news são parte da estratégia do atual governo. Por isso, o Movimento tem trabalhado para divulgar a história do acampamento e demonstrar a importância dele para a sociedade, para que sejam garantidos os direitos e a segurança das famílias em contexto de pandemia, e a construção do Projeto Descentralizado de Assentamento Sustentável (PDAS) no Marielle Vive. Contas no Instagram e no Twitter foram criadas para compartilhar informações sobre estes processos.
A luta pela terra
O acampamento Marielle Vive surgiu em 2018, com mais de 700 famílias, um mês depois do assassinato brutal da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e do motorista que a acompanhava, Anderson Gomes. O nome do acampamento foi escolhido em memória e homenagem à imagem da vereadora, por representar grande parte das mulheres que fazem parte do movimento. Marielle era negra, mãe e moradora de favela, e o acampamento “Marielle, Vive!” é formado por centenas de Marielles.
No terreno com pouco mais de 130 hectares, conhecido como fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários, era cometido crime constitucional há anos, não cumprindo a função social da terra, além de degradar o solo e o meio ambiente. Assim, as famílias ocuparam o espaço não somente para produzir alimento saudável, sem agrotóxico, mas enchendo também de vida e esperança a área. Próximo à entrada do acampamento, há um espaço com diversas salas onde ocorrem reuniões, cirandas, aulas na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) e diversas atividades culturais.
Com a decisão do TJSP pela manutenção da posse precária da fazenda, toda a área poderá voltar a estar sujeita à especulação imobiliária, usurpando a terra em detrimento do social, das leis, do direito à moradia e à Reforma Agrária. No ano passado, após decisão arbitrária na primeira instância determinando a reintegração de posse do acampamento, o TJ/SP havia decidido pela suspensão da decisão durante a pandemia, o que garantia até o final deste ano a permanência das famílias.
“A gente entrou com um agravo na justiça porque essa fazenda é claramente improdutiva. Todos que andam aqui e que são da cidade de Valinhos sabem que há anos esta fazenda está parada, a serviço da especulação imobiliária. Eles dizem que aqui tinha criação de gado, mas não conseguiram comprovar”, explica Tassi Barreto, da coordenação estadual do MST.
Ainda hoje, o acampamento Marielle Vive! é uma ilha de produtividade em um mar de condomínios. Apesar da dificuldade pela falta de água para utilização de técnicas de manejo por parte da comunidade, a esperança movia a comunidade, com a possibilidade de comercialização de cestas agroecológicas. Além disso, mesmo diante da falta de atenção do poder público local em questões de saúde, educação das crianças e água, as famílias resistiram por quase quatro anos à numerosas ameaças e à morte de um dos seus companheiros.
Um acampamento feito de histórias
No dia 18 de julho de 2019, as famílias do MST estavam na Estrada do Jequitibá, na cidade de Valinhos, interior de São Paulo, realizando um ato de denúncia aos poderes públicos locais por conta da falta da garantia do direito fundamental à água. Entre elas estava Seu Luís, como era conhecido por todos, um nordestino que, como tantos homens e mulheres, tinha migrado à região sudeste do Brasil em busca de trabalho.
Neste dia, Seu Luís foi atropelado pelo vendedor Leo Luiz Ribeiro durante o manifestação por falta d’água de moradores. A caminhonete acelerou por detrás de um ônibus que estava parado, entrou na contra mão, passou por cima das pessoas (acampadas e apoiadores) que estavam participando da jornada pela água e fugiu sem prestar nenhum socorro.
Mais de dois anos depois do assassinato, Seu Luiz segue sendo um exemplo de resistência para os acampados que, assim como ele, tinham orgulho da luta pela terra. Ele morreu segurando uma placa em que estava escrito: “Água Para a Vida e não Para a Morte”. Seu Luis foi assassinado, atropelado intencionalmente por um homem que deve ser julgado e punido por seu crime. Mas, lembramos sempre, ele também foi atropelado pelo ódio, pelo fascismo, pela intolerância e pelo desamor.
Marielle Franco e Seu Luis estão ligados agora como inspiração para a luta.“Só desse acampamento estar levando o nome da Marielle já é causa ganha. A Marielle ajudava os pobres, os mais fracos, lutava pelas mulheres negras. Era uma pessoa muito boa. A forma como ela morreu foi muito brutal. Ela nos representa. É como se ela estivesse viva entre nós”, relata Maria Ilma Oliveira, de 54 anos, acampada desde o primeiro mês no acampamento.
Cultivando vidas
“Todas as roças cultivadas produziram muito bem”, afirma Edivaldo Sousa, acampado desde o primeiro dia de criação do acampamento. “Se Deus quiser, ano que vem a produção vai ser maior”, concluiu, agradecendo aos céus e à natureza pelo alimento concretizado com o esforço da terra e das mãos dos trabalhadores.
Essa organização coletiva também está presente na uma horta comunitária com produção agroecológica de plantas, verduras e legumes, autogerida pelos próprios moradores do Marielle Vive. O espaço recebe o nome de “Horta Mandala” e conta ainda com uma produção pequena, com o consumo do plantio direcionado às famílias do acampamento, devido à certas dificuldades pela falta de água.
A produção diversificada no acampamento Marielle Franco mostra a capacidade da agricultura familiar de produzir alimentos, resultado das experiências históricas da relação de respeito do trabalhador rural com a terra. No caso do acampamento Marielle Franco, praticamente todas as roças cultivadas trabalham ao mesmo tempo e no mesmo espaço, principalmente arroz, feijão, milho, abóbora, macaxeira e fava, além de outras culturas do ramos das hortaliças como tomate, pepino, maxixe, quiabo. Tudo produzido sem veneno.
Por isso, o Movimento reitera tanto como a própria sobrevivência das famílias está interligada ao cultivo de alimentos, ainda mais com um Brasil de mais de 13 milhões de desempregadas(os). Os Sem Terra conseguiram desenvolver dezenas de atividades coletivas que vão além da produção agroecológica e sem veneno. No Marielle Vive há espaço para auto-organização LGBT+, auto-organização de mulheres, grupos culturais, discussões políticas e atividades lúdicas para as crianças.
Também em parceria com a Oficina Colaborativa de Bambu, foi criado um Galpão na comunidade tendo como pilar a bioconstrução, onde são oferecidos cursos para os jovens do acampamento, junto com moradores/as e interessados/as na formação, realizando trocas de experiências com base nas técnicas da bioconstrução.
Assim, a partir do artesanato e das próprias feiras, o local serve como moradia, segurança para as famílias e atividades educativas, pedagógicas, culturais e de lazer. Hoje, o acampamento gera renda e é uma construção de um sonho, de viver em comunidade, de construir o poder popular, de autoconstrução, todos e todas participando ativamente para a existência da comunidade. Luta, resistência e produção de alimentos saudáveis são a marca construída todos os dias por mulheres e homens do acampamento Marielle Franco e não podem ser ignoradas.
*Editado por Solange Engelmann