"Economia Verde"
Entrevista: Larissa Packer analisa capitalismo verde, agronegócio e crise ambiental
Por Fernanda Alcântara*
Da Página do MST
Não é novidade dizer que a crise ambiental deste século está diretamente ligada ao modelo de agronegócio, baseado em grandes latifúndios e de monocultura de commodities. A produção intensiva e predatória que avança no campo está praticamente ancorada no desmatamento da Amazônia e do Cerrado brasileiro, duas das regiões mais biodiversas do planeta.
E na era da crescente preocupação com as mudanças climáticas e a sustentabilidade, a economia verde, o capital verde e o mercado de carbono emergem como “conceitos” na busca por soluções ambientalmente responsáveis e “viáveis”.
Ao longo dos seus 40 anos o MST sempre apontou como a concentração de terras prejudica não somente os pequenos agricultores e as comunidades tradicionais, levando à expulsão e marginalização dos camponeses, mas também sendo a principal causa do aumento da fome e do desemprego e, por isso, coloca a Agroecologia como a melhor resposta lógica a este enfrentamento.
Para entender estes desafios, pela Página do MST entrevistamos Larissa Ambrosano Packer para tratar desta dinâmica entre agronegócio e meio ambiente, trazendo aspectos referentes ao agronegócio, às novas tecnologias capitalistas na organização da agropecuária e as expressões da financeirização da economia na dinâmica agrária e ambiental.
Packer é advogada socioambiental, mestre em Filosofia do Direito e integrante da equipe da Grain para América Latina. Nesta primeira parte da entrevista especial, a ambientalista comenta sobre a correlação entre agronegócio e meio ambiente e como os termos do “capitalismo verde” se consolidam nesse contexto.
Para começar, gostaria que você falasse mais sobre a relação entre mercado de capitais, o agronegócio e meio ambiente. A economia verde que hoje parece “estar na moda”, traz soluções para o problema da crise ambiental global?
Essa relação entre mercado de capitais, agronegócio e meio ambiente se insere nessa tendência de busca dos investidores institucionais que gere bilhões de dólares no mundo, buscando a maior rentabilidade possível para as “elites rentistas”, tanto pessoas físicas como jurídicas. Eu estou falando de BlackRock, Vanguard, State Street, Global Advisors, que gestionam trilhões de dólares, às vezes muito maiores que o PIB dos Estados Unidos e da China. E esses investidores institucionais profissionais, diante de oscilações do mercado de capitais e movimentos inflacionários e queda de juros, acabam buscando ativos físicos, bens físicos tangíveis, como imóveis, infraestruturas de transporte, portos, aeroportos e metais preciosos como o ouro, as terras agrícolas e os recursos naturais no geral.
Essa aliança de investidores institucionais no mercado de capitais e esses ativos físicos e tangíveis se inserem muito em momentos de crise. Então, tanto como uma estratégia de proteção do dinheiro contra a inflação, mas também como uma estratégia de colocar essa super acumulação de dinheiro em alguma base física que garantisse uma rentabilidade de longo prazo e mais segura do que os ativos financeiros tradicionais, como por exemplo, as ações, os títulos públicos, se insere esse momento de corrida por ouro, por terras, por imóveis, que vem sendo intensificado nos últimos 15 anos, principalmente com essa intensificação das crises do mercado de capitais. Desde a crise das hipotecas em 2008 nos Estados Unidos, que também gerou um enorme volume de capital financeiro sem lastro para aterrissar e que acabou levando a mais ou menos a três grandes movimentos.
E quais são esses movimentos?
O movimento de corrida por esses ativos reais, como a corrida por terras agrícolas, o Grain, organização internacional onde eu trabalho, acabou documentando que houve um aumento dos negócios internacionais com terras de 2008 para 2009, de 4 milhões de hectares para 45 milhões de hectares. Isso acabou sendo denominado pela literatura como land grabbing, essa corrida por terras agrícolas que em 2011 também o Banco Mundial acaba referendando.
Em 2012, por exemplo, havia vários investidores institucionais buscando empresas que gerenciam terras agrícolas nos Estados Unidos para adquirir e para colocar essa super acumulação de capital em um mercado limitado de terras. E isso levou a preços estratosféricos nos valores das terras, chegando a pagar até U$$ 67.000,00 por hectare em Wisconsin. Para você ter uma ideia, esses chamados ativos reais – que na verdade é o mercado imobiliário, comercial e residencial – em 2021 correspondiam a 51% do total de ativos circulantes no mundo, representando 290 trilhões de dólares. O segundo maior mercado é o de instrumentos de dívida, e que não chega a metade desse valor (123 trilhões de dólares) e o terceiro maior mercado é o do ouro e que também é um ativo muito procurado em momentos de crise, que dá maior segurança e proteção contra a corrosão do dinheiro em momentos inflacionários, é um mercado de 12 trilhões.
Ainda segundo a AGBI Real Assets, essa gestora de ativos reais, os imóveis rurais representam mais de 35 trilhões de dólares, o que dá mais ou menos 6% dos ativos da economia mundial e nos últimos 20 anos, as terras agrícolas se valorizaram 300%”
E se combinados esse fundos imobiliários que investem em imóveis comerciais, residenciais e rurais, eles somam mais de 320 trilhões de dólares, que é mais ou menos quatro vezes o PIB mundial de 2020. Então a aliança entre investidores financeiros e agronegócio e recursos naturais, na realidade, se insere nesse momento de intensificação de crises financeiras e uma necessidade de busca de proteção contra a corrosão do dinheiro frente à inflação e também busca de uma maior rentabilidade, distribuição de dividendos para os investidores, elites rentistas que esses fundos que gerem esses capitais no mundo necessitam.
Como toda essa corrida por capital impacta sobre às terras e os bens comuns dos países?
Isso impacta principalmente os países que têm terras agrícolas, que têm recursos naturais, e há um deslocamento dessa super acumulação de capitais para essas outras geografias do sul global, que tem terras e recursos naturais em abundância. Isso acaba impactando porque muitos investidores institucionais acabam perseguindo uma supervalorização desses ativos, aumentando o preço das terras, aumentando o preço de commodities agrícolas, o que acaba impactando no valor dos alimentos, no acesso à terra e aos bens comuns que são providos pela terra, como a água, a biodiversidade, vegetação nativa e a qualidade e integridade ambiental, que são direitos humanos vinculados à dignidade da vida, da saúde, tanto dos humanos quanto de animais e do planeta.
Nesse movimento de legítima valoração pelas sociedades dessas qualidades ambientais para enfrentar a crise ecológica e a crise climática, num momento de crise financeira, esses investidores financeiros aproveitam esse ambiente de super concentração e de escassez para realizar a introdução de bens até então comuns no regime jurídico da propriedade privada e, ainda pior, no regime financeiro, aproximando esses bens comuns não só do regime jurídico da mercadoria, mas dos próprios ativos financeiros, subordinando bens até então comuns, como as terras, a água e os recursos naturais aos interesses de distribuição de dividendos dos investidores de fundos e aumentando e valorizando esses bens essenciais à vida digna.
Isso significa que, quanto maior a expansão do agronegócio, produzindo poucas commodities de baixa qualidade nutricional para a exportação, abocanhando cada vez mais hectares de terras para essa lógica de exportação, com mais desmatamento, com mais apropriação, apropriação de terras, com mais apropriação de água, maior a precificação desses ativos reais que se tornam ativos financeiros, maior a distribuição de dividendos para essas gestoras de ativos e para essas elites rentistas mundiais. E isso acaba subordinando bens comuns e o interesse da população à estratégia de ganhos financeiros de poucas famílias, de poucas e pessoas super ricas no mundo.“
E esta é a chamada “Economia Verde”?
A “economia verde” é mais um slogan para legitimar ou popularizar um interesse que é de classe, restrito a uma reduzida elite rentista e aqueles agentes financeiros que trabalham para ela, esses seus interesses frente à sociedade como um todo. Então você envolve interesses de classe e coloca como se fosse um interesse global, um interesse maior de todos.
A narrativa hegemônica afirma que “queremos são finanças verdes, uma economia verde em que esses investidores ajudem o planeta, ajudem todas as populações a levantar recursos para projetos ambientais de baixo impacto, e etc”. Mas fala isso exatamente para encobrir que se trata de uma economia do rentista, a economia do capitalista, do investidor financeiro, que quer cada vez mais uma maior rentabilidade baseada no aumento do valor da terra, no aumento do valor da commodities dos alimentos.
Mas quando vamos ver e a realidade do percurso desses investimentos de capitais, o que acontece é a transição de bens comuns que pertenciam a todos, a privatização desses bens, a concentração e, com isso, a exclusão das maiorias no acesso a algo que antes era comum.
O resultado é uma minoria de proprietários e maiorias de sem acesso, sem teto, sem terra, fazendo com que esse acesso passe cada vez mais à composição do valor desses bens, passem cada vez mais pelo interesse de maior rentabilidade desses investidores“
Então, do que se trata realmente a “economia verde”?
Na realidade, quando nós falamos de economia verde regida pelas finanças verdes, por esses investidores e financeiros, por mais que seja dito de uma forma aparente de que esses recursos vão ser usados para o ‘bem do planeta’, é intrínseco à dinâmica dos investimentos financeiros, à busca por uma maior rentabilidade, e a maior rentabilidade está ligada a negócios com a compra de terras a baixo valor e a sua venda valorizada a um alto valor.
Não é à toa que há muitas denúncias de envolvimento dessas gestoras de ativos em terras, inclusive fundos de pensão, que compram terras muito baratas no MATOPIBA [acrônimo que denomina uma região do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia], que são baratas exatamente porque tem toda a sua cadeia dominial contaminada de vícios, fraudes por grilagem de terras públicas e coletivas. E depois de alguns anos, essas terras acabam se valorizando porque se implementa o monocultivo de soja, deixa de ser uma terra de pasto degradado para o monocultivo de soja, degradado por outros motivos, para produzir commodities para exportação. Isso valoriza as terras e, na venda dessa terra, se distribui os lucros para poucos investidores financeiros.
Há toda uma dinâmica de maior precificação (valorização) dessas terras e aqueles que não tem dinheiro acabam sendo impelidos a vender as terras, há uma concentração dessas terras e expulsão da população e de pequenos agricultores e povos e comunidades tradicionais, maior desmatamento e assim por diante. Quando você realmente acompanha o fenômeno do capital ligado ao que se chama de economia verde, o que nós vemos é uma economia marrom. Uma economia que acaba levando a uma violência muito grande e contra pessoas e o meio ambiente.
Em 2008, com a super acumulação de capital sem um lastro para aterrissar com a crise das hipotecas nos Estados Unidos, há uma fuga de capitais e uma busca que é por novas praças, novos ativos, mais seguros para esses trilhões de dólares aterrissarem. E houve mais ou menos três fenômenos.
O fenômeno do land grabbing, com uma corrida global por terras no mundo, principalmente nos países do Sul Global; O segundo movimento, de especulação financeira sobre as commodities agrícolas, com uma concentração por poucos fundos dos contratos futuros de compra e venda de soja, milho, etc; assim se tem um boom no índice de preços de alimentos. E um terceiro movimento, que é justamente essa valorização econômica autônoma do valor da terra e de valores ambientais. E não só do valor da terra, mas de valores ambientais no geral.
Então, no que antes havia a qualidade ou integridade ambiental, que pertenceu ao regime jurídico dos bens comuns, eram inapropriadas por uma só pessoa e não poderiam ser negociados como qualquer outra mercadoria, justamente porque era destinado a todos e todas das presentes e das futuras gerações, agora há uma valorização econômica para o regime da propriedade privada, autorizando alguns atores a emitir um título de propriedade sobre o que eles começam a denominar serviços ambientais ou serviços ecossistêmicos.
Pode explicar um pouco mais sobre como isso funciona?
Isso hoje já está como princípios de direito ambiental, mas que na realidade você constrói todo um mercado de compra e venda a partir da precificação e autorização de se estabelecer contratos e circulação de novas mercadorias em torno de bens ambientais, que agora são tidos como ativos reais, que podem integrar as trocas como qualquer outra mercadoria, mas principalmente o ambiente dos ativos financeiros.
Do mesmo jeito, no Brasil, a cota de reserva ambiental (a CRA), que representa um hectare de vegetação nativa em qualquer estágio de regeneração, não precisa ser uma floresta primária ou secundária, pode ser uma área degradada ou que esteja ali se regenerando. Ela tá prestando um serviço ambiental de sequestro de carbono com crescimento, deixando aquela área se regenerar e crescer.
A partir desses desses territórios, você pode emitir títulos financeiros negociados na bolsa de valores e balcão organizado, e já vem sendo comercializado na Bovespa, na B3 e também na Bolsa Verde do Rio. E a depender do valor da terra e do local onde está, pode ter maior ou menor valor. Do mesmo jeito, a Nasdaq e a Bolsa de Valores da Califórnia também acabaram incluindo a água como um ativo financeiro, que também passa a ser negociado nas bolsas e precificado, a partir daí as cotas de água.
É o que está acontecendo, estamos vendo bens comuns que pertenciam a todos transitarem para o regime da propriedade privada, mas, além disso, virar um ativo financeiro. Isso pode ser o indutor de desmatamento porque quando você coloca a gestão ambiental dentro da lógica da oferta e da procura, dentro da lógica de precificação de mercado, isso pode gerar movimentos especulativos muito perigosos contra o meio ambiente.”
A lógica é: quanto maiores forem os focos de incêndio na Califórnia ou no Pantanal, e menor a quantidade de água disponível e mais escassa, maior vai ser o valor da cota na bolsa. E quem detém essas cotas vai ter maior rentabilidade, vai passar a comprar e vender essas cotas por um maior valor no mercado secundário. Do mesmo jeito, as cotas de reserva ambiental no local onde tem maior expansão da mineração, do agronegócio, com monocultivo de soja, algodão, milho, terão em menor quantidade de florestas ou de vegetação nativa e protegida, e será maior o valor das cotas. E isso não tem nada a ver com proteção ambiental. Estamos falando de economia financeira, que não tem nada de verde.
*Esta é a primeira parte da entrevista especial sobre o agronegócio, crise ambiental e como estes temas estão inseridos na história do MST.
Leia a segunda “A crise não é apenas alimentar, não é apenas climática. É uma crise civilizacional” e a terceira parte “Ocupações de terra são um direito de ação pela redução da pobreza”;
**Editado por Solange Engelmann