Agrotóxicos

“O agronegócio recebe os benefícios, enquanto o ônus é distribuído entre a população”

Confira entrevista com Fernanda Savicki, pesquisadora no campo da Agroecologia e Saúde Pública, sobre o debate dos agrotóxicos no Brasil e no mundo hoje

Imagem: O Joio e o Trigo

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

“Precisamos superar esse debate e combater esse senso comum, que é uma grande falácia. O que realmente necessitamos é de vontade política”, afirma Fernanda Savicki, pesquisadora no campo da Agroecologia e Saúde Pública. Fernanda tem graduação em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal do Paraná e doutorado em Recursos Genéticos Vegetais pela Universidade Federal de Santa Catarina, e co-coordenadora do GT contra Agrotóxicos e Transgênicos da Associação Brasileira de Agroecologia, e traz uma visão crítica e atualizada sobre os impactos do agronegócio e dos agrotóxicos na saúde coletiva.

Em entrevista à Página do MST, Savicki aponta como está o debate sobre alimentação, a importância de repensar o modelo atual de agronegócio. Neste sentido, ela aborda como o agronegócio no Brasil recebe benefícios, enquanto a população arca com os custos. E lembra que, mesmo em crises, como durante a pandemia, produtores retêm estoques para inflacionar preços, agravando a situação.

Fernanda Savicki. Foto: Arquivo Pessoal

Confira a entrevista.

O tema “agrotóxicos” está diretamente relacionado ao modelo de produção agrícola adotado no país. Como o debate sobre os agrotóxicos e os riscos à saúde tem sido feito no Brasil e no mundo hoje?

Historicamente, no Brasil e no mundo, o tema dos agrotóxicos tem sido muito debatido a partir da perspectiva da indústria dos agrotóxicos e do agronegócio. O lobby das indústrias transnacionais vence o debate técnico-científico, e isso é inegável. E não é uma característica exclusiva do Brasil. Contudo, em alguns lugares do mundo, especialmente no Norte Global, a questão da saúde e do cuidado com a população tem uma força maior. Então, de alguma forma, as limitações e as leis conseguem fazer com que esse impacto seja diminuído. Se não mitigado, pelo menos minimizado.

Já aqui no Sul Global, por conta de toda a fragilidade da democracia e da relação dos direitos dos cidadãos, que estão muito atrelados à forma como os governos se organizam, e cada vez mais enfraquecidos pela força do capital, enfrentamos uma realidade diferente. O lobby das transnacionais sobre os governos é uma realidade aqui no Brasil, onde a bancada ruralista é a mais forte, representando um dos setores que mais geram riquezas e têm uma imensa influência dentro do Congresso Nacional. E isso não é de agora, mas o que vemos agora é uma ampliação dessa influência.

Embora tenhamos conseguido alguns avanços em anos anteriores, inclusive com a própria manutenção da Lei dos Agrotóxicos de 1989, nos últimos anos observamos toda essa organização e força do controle social sendo desafiada.

Fernanda Savicki

A lei de agrotóxicos só existe e se manteve como tal por conta da mobilização da sociedade civil, das instituições e organizações que têm demandado, discutido, trazido evidências científicas, construído e mantido a legislação em vigor. À medida que a força do controle do capital sobre o Congresso foi aumentando, o que nos assegurava as garantias de direitos à saúde e à conservação do ambiente foi se quebrando, enquanto outras forças se fortaleceram, resultando na chamada “Lei do Veneno”.

Agora, vivemos uma condição em que há uma supremacia da perspectiva do agronegócio sobre a saúde da população e a conservação do meio ambiente. Isso se manifesta de forma clara com o que estamos enfrentando hoje, como as queimadas no Pantanal, na Amazônia e no Cerrado.

Qual é o tamanho do problema quando se fala em contaminação dos alimentos com agrotóxicos? E qual é a relação entre o consumo de agrotóxicos e as causas de câncer? 

Bem, parte da resposta eu já dei na pergunta anterior. Mas é isso, essa correlação desigual de forças sobre os governos enfraquece o mínimo de proteção à vida que ainda temos. Com a flexibilização das leis e a aprovação da “Lei do Veneno”, estamos diante de um risco iminente de superexposição aos agrotóxicos. Já temos uma exposição absurda, mas essa superexposição afetará ainda mais a população brasileira, tanto direta quanto indiretamente. Direta pelo contato direto com os agrotóxicos, e indiretamente pelo acúmulo dessas substâncias no meio ambiente, contaminando os locais onde vivemos. Isso leva a uma exposição exponencial aos agrotóxicos, especialmente em situações de pouco ou nenhum controle sobre o uso dessas substâncias no país.

Essa exposição se manifesta de várias maneiras, sendo o câncer uma delas. Estudos do Inca já mostram que o uso de agrotóxicos é considerado uma questão de saúde do trabalhador, sendo um agravo resultante do trabalho de quem manipula essas substâncias”

Fernanda Savicki

Além disso, vemos um aumento considerável de casos de câncer no Brasil, embora, devido ao lobby dos agrotóxicos e às discussões sobre nexo causal, ainda não consigamos definir essas substâncias como potencialmente cancerígenas. No entanto, já existem evidências científicas, tanto no Brasil quanto no mundo, que apontam para essa relação.

Monsanto é condenada a pagar US$ 289 milhões por câncer em jardineiro nos EUA
Monsanto é condenada a pagar US$ 289 milhões por câncer em jardineiro nos EUA. Foto: GoFund.me e Mike Mozart via Flickr/Creative Commons

O próprio Inca tem realizado estudos que mostram um aumento significativo de cânceres relacionados ao uso de agrotóxicos, como câncer de tireoide e cânceres nos aparelhos reprodutores, tanto femininos quanto masculinos. Também há questões como malformações fetais, abortamentos espontâneos e infertilidade, que têm aparecido especialmente em populações mais atingidas e expostas, como os povos originários.

Uma das coisas que ainda consideramos com certa delicadeza, mas que logo poderemos afirmar com mais certeza, é que, além de toda a violência que essas populações já sofrem de outras formas, o uso intensivo de agrotóxicos como arma química está resultando em uma castração química dessas populações. Então, além do extermínio pela violência direta, estamos também conduzindo ao extermínio por uma violência indireta.

O que é a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA) e como ela está inserida neste contexto?

Em 2014, como uma forma de organização popular, instituições de pesquisa como a Fiocruz, da qual eu faço parte, e outras organizações, incluindo o Inca e entidades da sociedade civil que atuam nessa área, se uniram para debater amplamente, com participação social, a criação de um programa de redução do uso de agrotóxicos. É importante destacar que, em nenhum momento, se fala sobre a eliminação total dos agrotóxicos. Trata-se de um programa de redução, visando garantir minimamente a saúde da população e a conservação dos ambientes. Essa é uma questão de salvaguarda da população, um direito humano básico de acesso a alimentos adequados, à vida e à saúde.

O programa está dividido em seis eixos, cada um com uma série de medidas que nem sempre estão relacionadas à diminuição ou restrição do uso de agrotóxicos. Algumas se referem à regulamentação, regulação, monitoramento e a estratégias alternativas, a agroecologia, que, vale ressaltar, não é uma estratégia alternativa, mas sim a opção contra-hegemônica, única que nós temos coerente em termos políticos, culturais, estruturais, sociais, econômicos e ambientais. Então dentro dessas propostas do Pronara [Programa Nacional de Redução de Agrotóxico], há várias medidas que podem ser adotadas a qualquer momento pelos Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e da Infraestrutura. Não são necessariamente questões voltadas à produção agrícola do agronegócio.

O Pronara foi estabelecido para ser lançado junto com o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, que regulamenta a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. No entanto, desde 2014, não conseguimos lançar o Pronara devido a uma série de enfrentamentos, entre eles pelo MAPA (Ministério da Agricultura e Pecuária), vinculados ao lobby do agronegócio, das transnacionais e os vínculos do capital ao campo.

E o PNaRA surge justamente para lidar com essa correlação de forças que estava difícil, especialmente diante da “Lei do Veneno”, que desde 2002 tem sido repetidamente discutida. Assim, o mesmo conjunto de organizações, lideradas pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, reunindo toda a rede envolvida no debate sobre agrotóxicos, junto com parlamentares e frentes políticas comprometidas com essa pauta. Esse grupo organizou então o PNaRA, que é a Política Nacional de Redução dos Agrotóxicos, que propõe medidas amplas e estruturais para implementar o Pronara. Trata-se de uma política nacional que está diretamente vinculada à política de agroecologia e produção orgânica, visando mitigar os impactos dos agrotóxicos. Essa política chegou a ser votada no Congresso Nacional, mas foi engavetada. Ela é uma alternativa crucial para fazer frente à “Lei do Veneno”.

Mas o setor do agronegócio afirma que não é possível produzir sem veneno.

Essa é uma das falácias do agronegócio. Temos diversos documentos construídos, inclusive junto com a Campanha [Nacional de Luta Contra Os Agrotóxicos e Pela Vida], sobre as falácias do agronegócio que embasaram inclusive para a “Lei do Veneno”, e essa é uma delas. Mas já está mais do que comprovado que existem inúmeras experiências, medidas e tecnologias capazes de fazer isso efetivamente. O que precisamos é de vontade política.

Se direcionarmos a mesma quantidade de recursos da pasta do MAPA, que atualmente financia e subsidia os agrotóxicos, e transferir esses valores para processos de redução de agrotóxicos e para a agroecologia, veremos um boom de proposições, experiências e iniciativas que certamente atenderão à demanda de produção de alimentos no mundo. É importante lembrar que a FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] possui documentos que mostram que hoje produzimos alimentos suficientes para uma população estimada para 2050.

Portanto, o problema nunca foi a falta de alimento. O problema é outro: é a comida como commodity. Quando a comida é tratada como mercadoria, ela é mal distribuída, e só quem tem dinheiro consegue se alimentar

Precisamos superar esse debate e combater esse senso comum, que é uma grande falácia. O que realmente necessitamos é de vontade política. A partir do momento em que houver vontade política para superar o agronegócio e implementar a agroecologia, teremos saltos imensos na qualidade da produção e na garantia do direito à alimentação.

Neste sentido, o MST tem se organizado como resistência aos agrotóxicos. Quais avanços e retrocessos temos tido sobre este assunto?

O MST é uma das organizações que tem demonstrado isso de forma sensacional, seja na produção de arroz orgânico, cacau na Bahia, ou em outras iniciativas. Além disso, temos experiências de outros movimentos, como o MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores], com as sementes e o feijão, também do MST. Enfim, há uma série de iniciativas no Brasil inteiro surgindo na produção de alimentos em grande escala, na escala necessária.

Precisamos também discutir vários aspectos além da produção de alimentos, como o consumo; como estamos consumindo esses alimentos? O que os alimentos que estão na nossa mesa tem a ver com a nossa cultura? É comida de verdade ou ultraprocessado? É essencial olhar para todo o sistema agroalimentar. Por isso, não falamos mais apenas em sistema produtivo, porque a questão do alimento não se resume à produção. Trata-se de um sistema agroalimentar completo, que começa na tomada de decisões sobre o que plantar, onde, para quem, e se estende até a mesa do consumidor e da consumidora, sobre as escolhas, sobre memória e cultura alimentar, em qualquer região do Brasil.

Foto: Wellington Lenon

Atualmente, a maioria dos agrotóxicos que existem no Brasil são proibidos na Europa, mais de 80%. Como tem sido este debate no legislativo, e quais as mudanças e impactos do “Pacote do Veneno” e de outros projetos?

Essa é uma discussão fundamental e está no cerne do enfrentamento ao “PL do Veneno” e ao lobby dos agrotóxicos. Na Lei 7.802, de 1989, que regulamenta o uso de agrotóxicos, já se estabelecia que os agrotóxicos banidos ou com registro cancelado em outros países, com base em evidências científicas concretas sobre seus efeitos ou serem potencialmente cancerígenos, teratogênicos e mutagênicos, ou disruptores endócrinos, não poderiam ser registrados ou deveriam perder o registro no Brasil. Portanto, era simplesmente uma questão de seguir o que estava previsto em lei. Esse sempre foi um debate muito difícil para nós.

Visivelmente, há um desnível nesse debate em relação à União Europeia, por exemplo, mas não só ela. Temos agrotóxicos que são banidos na China, no Canadá, nos Estados Unidos, mas continuam sendo usados aqui no Brasil. Mas União Europeia, que hoje possui um dos arcabouços legislativos mais avançados nessa área, tem servido como referência para essas discussões. No entanto, é alarmante que cerca de 80% dos agrotóxicos utilizados no Brasil sejam proibidos na União Europeia e estejam sendo aplicados livremente aqui, muitos deles sem a mínima regulamentação. Eles não são monitorados na água, nem nos alimentos. Existe um fluxo de agrotóxicos sendo utilizados sem o menor cuidado em relação à exposição da população.

Um exemplo disso é a substância “Atrazina”, que já foi banida na União Europeia e nos Estados Unidos há mais de 20 anos, mas ainda é utilizada no Brasil. Ela não é monitorada na água, e em pesquisas recentes das quais faço parte, encontramos “Atrazina” em mais de 50% das amostras que analisamos. Isso evidencia a fragilidade da legislação antiga e o quão perigosa é a implementação dessa nova lei, que carece de critérios técnicos, científicos e regulatórios adequados para lidar com os impactos na sociedade.

E qual o impacto prático disso na vida das pessoas?

Mais uma vez, quem vai pagar o preço disso é a população brasileira, que já paga atualmente. O SUS, e portanto, a população brasileira, arcará com os custos. O que vemos, por exemplo, em todos os tratamentos oncológicos no Brasil, independentemente de onde a pessoa vá se tratar—seja no Albert Einstein, no Sírio-Libanês, nos hospitais privados mais caros e importantes do país—são pagos pelo SUS. Toda essa exposição e o consequente aumento de casos resultam em tratamentos altamente caros e onerosos para o Sistema Único de Saúde.

Com o aumento dos casos, cujo impacto será sentido nos próximos anos, quem será sobrecarregado novamente é o sistema tributário brasileiro. E quem sustenta de fato o SUS, quem paga os impostos, é a população, o trabalhador e a trabalhadora brasileira. E somos nós, novamente, que seremos onerados pelo agronegócio. Enquanto o agronegócio se beneficia, os malefícios do setor são distribuídos proporcionalmente entre a população brasileira.

Além disso, as isenções fiscais e as pesquisas realizadas nas universidades federais, mantidas pela população brasileira, beneficiam o setor privado, como Bayer, Monsanto e outras empresas. São utilizados materiais, recursos humanos, pesquisadores, alunos e espaços físicos mantidos pelo povo para favorecer um setor privado. Portanto, o agronegócio recebe uma série de benefícios, enquanto o ônus é distribuído entre a população.

Em outras palavras, não há como o agronegócio dar prejuízo, pois ele recebe todos os incentivos e benefícios. Quando há uma baixa no preço, não vemos distribuição de alimentos; vemos leite sendo jogado nas estradas, tomate sendo descartado e deixado para apodrecer. Essas situações ocorrem tradicionalmente quando os preços caem.

Um exemplo absurdo foi a questão do arroz, quando os produtores brasileiros seguraram o estoque para garantir um preço elevado, num momento em que o país enfrentava uma crise extrema, precisando garantir que a população estivesse bem alimentada e saudável para enfrentar a pandemia. O agronegócio, porém, cometeu a atrocidade de reter o produto para garantir um preço abusivo, lucrando em cima do governo e da desgraça da população brasileira. É com situações como essas que temos lidado, e é contra isso que precisamos nos organizar e pensar nos enfrentamentos que faremos.

Como você avalia a eficácia das mobilizações internacionais para minimizar os impactos dos agrotóxicos, especialmente em países da América Latina e outras regiões vulneráveis?

Como você disse, há uma organização e mobilização internacional em curso, visando internacionalizar o debate sobre os agrotóxicos e formar um bloco de forças, não apenas na América Latina, mas também em articulação com a União Europeia e seus parlamentares para discutir essas questões. A maioria das sedes das indústrias está na Europa, onde há uma rígida proibição e controle sobre o uso e produção de agrotóxicos. No entanto,

(…) essas indústrias se aproveitam de governos fracos e democracias ainda embrionárias em países da América Latina, da África e de outras regiões, utilizando-os como uma “lixeira química”, como menciona a professora Sônia Hess, uma das principais pesquisadoras sobre agrotóxicos no Brasil.

Essas indústrias exportam produtos e matérias-primas desses países, cheias de agrotóxicos, enquanto mantêm uma alta restrição em seus próprios territórios. O debate atual foca nessa questão dos dois pesos e duas medidas: rigorosas restrições na Europa, mas nenhuma nos territórios onde os produtos são cultivados e exportados. Esses debates estão em andamento, com uma crescente sensibilização do Parlamento Europeu para discutir essa desigualdade e buscar formas de mitigar os efeitos dos agrotóxicos.

*Editado por Solange Engelmann