Aromas de Março

Aborto, uma cortina de fumaça?

Patriarcado como projeto de poder e a redução das mulheres ao útero
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Por Lizandra Guedes e Lucinéia Freitas
Da Página do MST

Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa
para que os direitos das mulheres sejam questionados.
Esses direitos não são permanentes.
Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”

Simone de Beauvoir

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No dia 27 de novembro foi votada, na Comissão Constituição e Justiça do Congresso (CCJ), a admissibilidade do Projeto de Emenda Constitucional 164/2012, que tem autoria de Eduardo Cunha, apelidado de PEC do Estupro pelas Organizações e Movimentos Feministas. A PEC propõe alterar o Artigo 5º da Constituição com um simples acréscimo da expressão “desde a concepção” ao fundamento da inviolabilidade do direito à vida. Essa alteração, que de simples não tem nada, daria ao embrião o status de ser humano, impossibilitando o acesso ao aborto nos casos que hoje são legais: em decorrência de estupro, risco de morte materna e fetos anencefálicos (sem cérebro).

No entanto, a aprovação da PEC também afetaria outros procedimentos médico-científicos, como as pesquisas com células troncos, a fertilização in vitro e exames pré-natais invasivos; somatória de questões que comprometem os direitos fundamentais das mulheres e meninas, além de comprometer os procedimentos médicos, como afirma a nota da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia.
Seus defensores, integrantes das nomeadas bancadas da Bíblia, do Boi e da Bala, chamam-na de PEC da vida, e são os mesmos que organizam milícias, comemoram os assassinatos no campo, defendem a redução da maioridade penal, o aumento do uso de armas de fogo, o não uso de câmeras pela polícia militar em atividade, etc.

Este não é o primeiro ataque aos direitos das mulheres no Congresso Nacional. Este ano, em junho, fomos surpreendidas com a Projeto de Lei 1904/2024, de autoria de Artur Lira, apelidado pela sociedade em geral de “PL do Estupro”, que, atropelando o regimento do Congresso, teve o regime de urgência votado em 23 segundo, ocasião em que muitos deputados afirmaram que nem sabia efetivamente no que estavam votando e que, a partir das mobilizações sociais, teve sua votação suspensa.

O que a PEC 164/2012 e a PL 1904/2024 têm em comum é a sustentação de uma base ideológica de controle da sociedade, a partir do controle dos corpos das mulheres; elas representam a expressão máxima da misoginia social e, no caso brasileiro, do racismo estrutural, que constrói uma ideia de vida hierárquica e, nessa construção, define quem pode/deve morrer.

A construção de legislação que criminaliza o aborto em todos os casos, de longe, não é algo que impeça sua realização e nem impacta as mulheres de forma horizontal. Os elementos que levam uma mulher à decisão da interrupção de uma gravidez são complexos e, via de regra, não passam por ponderações de aspectos legais e suas possíveis consequências. No entanto, um recorte de classe também delimita os riscos a que uma mulher vai se expor ao realizar o procedimento clandestinamente.

Se for uma mulher com recursos econômicos, esta poderá realizá-lo com segurança e cuidado, seja pelo grau de informação e rede de apoio a que tem acesso, ao fazê-lo em casa, seja porque tem acesso a clínicas particulares bem equipadas, onde sua decisão não será questionada, tendo a opção, inclusive, de viajar para outros países onde o aborto é legalizado. No fim das contas, quem acaba exposta a situações insalubres, degradantes e com efetivo risco de morte são as mulheres pobres, periféricas e majoritariamente negras, já que lhes restam muito poucas opções.

Mas é preciso retomar a frase de Simone de Beauvoir na epígrafe e refletir sobre os motivos que levam, nos momentos de crise, ao ataque aos direitos das mulheres. Qual é o papel do patriarcado na conformação de relações sociais onde cada vez mais se naturaliza a barbárie, onde as políticas de proteção social são cotidianamente destruídas, onde os povos do campo, das águas e das florestas são violentados e seus violentadores recebem proteção do Estado?

Certamente, esta PEC reaparece no cenário nacional em meio a grande agitação política, por ocasião do anúncio do plano fiscal e do indiciamento de Bolsonaro e seus “parças” por golpismo, o que levou muitos analistas respeitáveis, como Leonardo Sakamoto, a considerá-la como um “cortinão de fumaça” (UOL News, 27/11/2024). Análise que não deve ser desconsiderada, mas que, a nosso ver, também encobre com uma espessa fumaça os motivos dos ataques misóginos aos direitos de mulheres e meninas.

Revisitando as publicações da imprensa em geral, notamos um posicionamento quase uníssono contra a PEC, definindo-a como assassina, hipócrita e outros adjetivos que colocam em questão a sua constitucionalidade. No entanto, uma matéria, publicada em 30 de novembro pelo portal de notícias Brasil 247, nos chamou bastante atenção. Em matéria intitulada como “Eduardo Cunha comemora aprovação da PEC dos estupradores”, pode-se ler sobre a satisfação do deputado cassado em 2016, quando era presidente da Câmara, pela aprovação do projeto: “Achei maravilhoso. Pretendo voltar [à Câmara] em 2026 e protocolizar comissão especial se não tiver avançado até lá”, disse Cunha. “Me deram um bom discurso de campanha”, completou.

Como bem observado pela deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP), em matéria do UOL do mesmo dia 30, ao ser aprovada na CCJ a PEC se constitui num poderoso instrumento de chantagem contra o Governo Lula, em que a direita passa a ter uma carta na manga para usar como moeda de troca na aprovação de outros projetos de seu interesse. Ainda segundo a deputada, a sua aprovação também entrega algo aos fundamentalistas, que há muito cobravam o preço de seu apoio.

Neste sentido, pôr em risco a vida e a dignidade de mulheres e meninas faz parte do jogo político brasileiro, como um peão que pode ser sacrificado na disputa de poder patriarcal. O Governo Lula teria que ter coragem de enfrentar este debate de frente, fazendo avançar os debates e ações necessárias para verdadeiramente garantir a inviolabilidade da vida. Muitas ações poderiam de fato ser implementadas, como:

  • a reestruturação da polícia militar – construindo mecanismos de controle das ações, para que casos como do menino Ryan, de 04 anos, assassinado a tiros pela PM de SP, e tantos outros casos que assistimos impassíveis em diversos estados, não se repita;
  • desenvolver ações efetivas para evitar a violência contra as mulheres, incluindo os estupros e os feminicídios, ampliando a rede de atendimento e cuidado e revogando leis misóginas como a da alienação parental;
  • desenvolver uma política efetiva de reforma agrária, que além de distribuição de terras a famílias em luta pelo acesso à terra, contemple a demarcação e proteção dos territórios indígenas, quilombolas e das comunidades tradicionais;
  • ampliar e qualificação da rede de atendimento a mulheres e meninas que precisam acessar o serviço de aborto legal e fazer avançar sua legalização irrestrita;
  • ampliar o debate sobre educação sexual, direitos reprodutivos e o respeito à diversidade, inclusive instituindo-o nos programas escolares. Entre outras ações.

Não é a criminalização das mulheres e meninas que garante a inviolabilidade da vida, são as ações políticas, econômicas e sociais que podem garantir que a vida seja de fato plena e inviolável.

A democracia se mede pelo grau de participação das mulheres. Assim, é preciso avançar na garantia dos direitos humanos das mulheres e meninas, principalmente das negras, periféricas e as do campo, das águas e das florestas, para que possamos avançar na construção de uma democracia de fato. Para isso, é importante que pautas como a PEC e a PL não seja vistas como cortina de fumaça, como questões das mulheres, ou como identitarismo.

Que possamos perceber que estamos falando de projeto de poder e de sociedade, que perpassa a vida cotidiana, concreta e subjetiva de todes e que a construção da Reforma Agrária Popular implica na emancipação integral dos seres humanos. Como declarou Alfredo Luenzo, senador argentino, no processo de debate sobre o aborto realizado naquele país: “é necessário trabalhar pela vida de todas as pessoas, que os úteros deixem de ser controlados pelos homens e pelo Estado”.

“Educação sexual para decidir,
contraceptivos para não abortar,
aborto legal para não morrer”

*Editado por Fernanda Alcântara