Reportagem Especial
BRICS e o desafio climático: entre promessas e urgências do Sul Global
Enquanto líderes do BRICS pensam financiamento para a crise ambiental, povos do Sul Global mostram que apenas uma mudança profunda no modelo econômico poderá salvar o planeta

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
A crise ambiental não é um acidente da história, mas resultado direto da crise estrutural do capital. Esta análise, apresentada por diversos especialistas e presente no Curso de Formação dos BRICS, realizado na Escola Nacional Florestan Fernandes, inaugura com as palavras do revolucionário Thomas Sankara uma reflexão profunda sobre os desafios que os países emergentes enfrentam na questão climática. O líder burkinabé já alertava que “a luta pela árvore e pela floresta é sobretudo uma luta anti-imperialista”, conectando a destruição ambiental às dinâmicas de dominação global.
O ponto inicial para entender a conjuntura política, social e econômica diante dos desafios do Sul Global frente aos desastres climáticos e seus impactos é reconhecer que a crise ambiental não ocorre de forma casual, mas decorre diretamente da própria crise estrutural do capital. Ela nasce da lógica de sobreacumulação e da maneira como esse sistema organiza a relação entre sociedade e natureza. Por isso, como enfatiza o material da formação, “não há solução verdadeira dentro dos marcos do capitalismo.”
Os números também escancaram a dimensão geopolítica da crise climática. Embora, em termos absolutos, a China figure como a maior emissora de CO₂, seguida por Estados Unidos, Índia, Rússia e Japão, é essencial observar as emissões em proporção à população. Sob essa perspectiva, entre os dez maiores emissores do mundo, os Estados Unidos lideram em emissões per capita, alcançando um índice que equivale ao dobro do registrado pela China e que chega a ser oito vezes superior ao da Índia.
Como observa Esther Passos, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), “Apesar de ter uma população muito menor, os EUA emitem o dobro da China e oito vezes mais que a Índia, transferindo os custos socioambientais para o Sul Global e transformando-o em zona de sacrifício.” Essa disparidade aparece também no fato de que os mais impactados pelos desastres climáticos são justamente os setores empobrecidos da população, que tanto nas cidades quanto no campo vivem em áreas vulneráveis e em condições precárias.

Vale também destacar o peso das guerras e da militarização, uma vez que o consumo maciço de combustíveis fósseis em deslocamentos de tropas, veículos militares e aviões de combate gera enormes volumes de gases de efeito estufa (GEE), colocando o Pentágono como o maior consumidor institucional de energia no mundo. O dado é ainda mais alarmante quando se observa que, apenas nos dois primeiros meses da ofensiva de Israel contra a Palestina, as emissões liberadas superaram, sozinhas, toda a soma anual dos 20 países mais vulneráveis às mudanças climáticas.
A verdade é que grandes produtores de petróleo estão presentes nos BRICS, onde a combustão de combustíveis fósseis continua a ser a principal responsável pelas emissões de gases de efeito estufa (GEE) globalmente. A maioria das economias desse bloco ainda depende fortemente desse setor para equilibrar suas contas comerciais e viabilizar projetos de crescimento.
É especialmente importante notar que aproximadamente 16% do petróleo extraído no mundo não é utilizado para a produção de combustíveis, mas sim como insumo na indústria petroquímica, que fabrica fertilizantes, pesticidas, plásticos e outros produtos. Essa atividade está intimamente relacionada ao modelo de agronegócio intensivo, que é fortemente dependente de fertilizantes nitrogenados e defensivos agrícolas derivados do petróleo.
Falsas soluções e financeirização verde

Advogada socioambiental e membro da equipe do Grain, organização internacional de pesquisa e informação para pequenos agricultores e movimentos sociais nas suas lutas por sistemas alimentares baseados na biodiversidade e sob controle comunitário, Larissa Parker denuncia como hoje entendemos a questão ambiental de maneira financeirizada, o que coincide com uma militarização da vida no campo, numa espécie de ‘mexicanização’ dos Estados da América do Sul. Sua crítica encontra respaldo na análise da formação dos BRICS, que aponta como as “soluções climáticas” do Norte Global, especialmente as emissões “zero líquido”, “permitem que os maiores poluidores continuem a poluir ao transferir os custos socioambientais da descarbonização para o Sul”.
Essa dinâmica resulta na criação de “zonas de sacrifício” no Sul Global, onde comunidades e ecossistemas são sacrificados em prol do crescimento econômico e das transições energéticas do Norte.
Há uma hegemonia cultural estabelecida por think tanks e agentes do mercado financeiro, que concentra a narrativa na crise climática e esconde a intersecção de outras crises — alimentar, ecológica e socioeconômica — gerenciando o meio ambiente a partir dos mercados.”
— Larissa Packer, GRAIN
Além disso, como visto na reportagem sobre a origem econômica e social do bloco, os países que compõem o BRICS não são homogêneos, uma vez que os recursos e a influência da China superam os demais membros e o país frequentemente busca negociar separadamente com potências ocidentais, como os Estados Unidos e a União Europeia. Essa dinâmica cria um cenário em que os entendimentos entre Brasil, Rússia e Índia atuam como um contrapeso à tendência da China de operar de forma autônoma, evidenciando a complexidade das relações dentro do bloco.
As contradições internas do bloco se manifestam também de maneira dramática na questão ambiental. No Brasil, por exemplo, a exportação de produtos agropecuários alcançou US$ 165 bilhões em 2024, com 41% desse total destinado a países membros do BRICS, sendo a maior parte voltada para a China. Essa realidade ressalta a tensão entre o crescimento econômico e as preocupações ambientais, evidenciando que, embora os BRICS compartilhem interesses econômicos, suas abordagens em relação a questões cruciais, como a sustentabilidade, permanecem profundamente divergentes.
Os números revelam a devastação causada por esse modelo: “segundo o MapBiomas, 97% do desmatamento no Brasil é causado pelo agronegócio, que é também o maior emissor de GEE (75% das emissões)”, denuncia Bárbara Loureiro, do Plano Nacional Plantar Árvores Produzir Alimentos Saudáveis, do MST: “No Brasil, 97% do desmatamento é causado pelo agronegócio, responsável também por 75% das emissões de gases de efeito estufa.”
O Brasil foge à regra mundial: 70% de suas emissões vêm do desmatamento e da agricultura, mas mesmo assim a agricultura foi excluída das metas de redução em 2024, ao mesmo tempo em que recebe subsídios por meio do Plano ABC+”
— Larissa Packer, GRAIN
O BRICS+ Grain Exchange e suas contradições

Mas apesar das contradições, os BRICS possuem o potencial de se transformar em um polo alternativo de cooperação ecológica e climática, que questione os limites do capitalismo verde e proponha transições justas, populares e soberanas. A criação da BRICS+ Grain Exchange (em português, uma bolsa de troca de grãos dos BRICS) representa um avanço significativo na integração econômica e comercial do bloco, para fortalecer o comércio agrícola entre os países membros e reduzir a dependência das plataformas de negociação ocidentais.
Proposta pela Rússia e apoiada na Cúpula dos BRICS em Kazan, em 2024, essa bolsa pretende estabelecer preços independentes para grãos dentro da associação, promovendo uma avaliação mais objetiva dos produtos agrícolas no mercado global e aumentando a eficiência operacional do setor. Além de impulsionar as trocas comerciais entre as nações do bloco, que respondem por quase metade da produção e do consumo mundial de grãos, a bolsa tem potencial para criar um ecossistema de mercado autossustentável menos vulnerável a sanções e instabilidades financeiras externas. No entanto, especialistas alertam que sua implementação poderá levar vários anos, dadas as complexidades políticas, a necessidade de alinhamento interno dos países BRICS e desafios relacionados à adoção de moedas locais para negociação e liquidação dos contratos
Entretanto, o BRICS+ Grain Exchange ilustra as contradições do bloco. Embora busque promover uma autonomia financeira, essa iniciativa impõe contradições e reforça o modelo agroexportador extrativista. Sem uma regulação democrática e popular, a bolsa pode favorecer grandes intermediários e traders agrícolas, como Cargill e Bunge, consolidando o poder das corporações sobre os circuitos alimentares.
Isso implica que uma dependência (do Norte) é substituída por outra (de elites e multinacionais do Sul), perpetuando a lógica da divisão internacional do trabalho, na qual os países do Sul Global continuam a ser produtores de matérias-primas para exportação. Como observa Esther Passos: “A expansão do agronegócio brasileiro, responsável pela maior parte do desmatamento, ocupa terras, consome água em larga escala e tem metade de suas exportações destinadas aos países do BRICS.”
Neste sentido, Parker alerta também que “a Climate Watch, formada por grandes emissores como petroleiras, se tornou referência para governos e sociedades, o que levanta a necessidade de uma contabilidade justa e eficiente sobre as emissões de carbono.”
Um exemplo é o lítio, mineral considerado essencial para as baterias de carros elétricos e para o armazenamento de energia. A exploração desse recurso tem se concentrado em países latino-americanos como Bolívia, Chile e Argentina, intensificando a lógica de um novo extrativismo periférico, agora disfarçado pelo discurso ‘verde’. Nota-se que a chamada transição energética, em vez de reduzir o uso de combustíveis fósseis, tem atuado como um catalisador para a própria indústria fóssil.
A proposta agroecológica do MST

Em contraposição a esse modelo destrutivo, o MST apresenta alternativas concretas através da agroecologia. Como afirma Bárbara Loureiro, “Para o movimento, as falsas soluções do Norte Global, como o ‘zero líquido’, transferem os custos da descarbonização para o Sul, criando zonas de sacrifício e aprofundando desigualdades.”
A experiência prática do MST demonstra que é possível produzir de forma sustentável. Como destacam estudos sobre o Movimento, a agroecologia praticada nos assentamentos vai além da substituição de insumos, promovendo sistemas integrados que regeneram os ecossistemas. Atualmente, o MST mantém mais de 2 mil espaços educativos e 300 viveiros de mudas como parte de sua estratégia de transição ecológica.
A agroecologia é ciência, prática e está em constante evolução. Trata-se de uma proposta concreta para enfrentar desafios como mudanças climáticas, desigualdade social e fome, promovindo novas relações humanizadas no campo”.
— Bárbara Loureiro, MST
A troca de combustíveis fósseis por minerais, ou de um tipo de monocultura energética por outro, sem abordar as desigualdades estruturais e os impactos socioambientais, representa apenas uma falsa transição. Como sintetiza Esther Passos: “Que nunca saia da nossa cabeça: a crise ambiental é gerada pelo sistema capitalista, e só será superada com a superação desse modelo econômico e político.”
A questão que se coloca é: onde estão os povos nesse novo modelo de desenvolvimento? A análise indica que os movimentos populares, os povos indígenas, camponeses e quilombolas devem desempenhar um papel central, não apenas como ‘beneficiários’, mas como protagonistas políticos da transição ecológica, como observa Loureiro: “Os BRICS têm potencial para formar um polo alternativo de cooperação ecológica e climática, mas só se colocarem os povos — indígenas, camponeses e quilombolas — no centro das decisões e não como meros beneficiários.”

A cooperação Sul-Sul promove caminhos alternativos por meio da cooperação e tecnologias que priorizam a justiça socioambiental, incluindo o financiamento climático Sul-Sul, com a criação de fundos próprios que enfatizam ações como a conservação da biodiversidade, a restauração de ecossistemas e o combate à desertificação. Além disso, propõem a cooperação técnica e a transferência de tecnologias voltadas para práticas como agroecologia, reflorestamento, uso de bioinsumos e energias renováveis.
Não podemos nos limitar a negociar melhores condições dentro do sistema desigual atual: é preciso romper com a lógica da economia verde e do extrativismo que também se reproduz nos BRICS. Não é possível que o bloco dos BRICS apenas replique uma nova agenda de extrativismo verde”.
— Bárbara Loureiro, MST
Em outras palavras, não basta exigir melhores condições dentro desse sistema imposto: é preciso repensar o modelo de desenvolvimento, construir agendas de cooperação e colocar os povos no centro das decisões, sempre mantendo a pergunta: onde estão os povos nesse novo modelo de desenvolvimento?
Parker destaca que “o debate climático precisa ser feito a partir da contradição de classe, apontando quem de fato provoca a crise ambiental. Por isso a necessidade de alertar para a urgência de politizar a crise ambiental como uma questão de classe, especialmente considerando que mais de 30% da população desconhece o que são as mudanças climáticas — número que sobe para mais de 50% nas camadas de renda mais baixa.
O desafio central está em construir caminhos que combinem desenvolvimento com justiça socioambiental, sem cair em soluções de mercado travestidas de ‘ecológicas’. O debate dentro dos BRICS não deve se restringir apenas a blocos geopolíticos, mas também abranger projetos de sociedade. De um lado, há um ‘desenvolvimentismo sustentável/verde’ vinculado ao capital; do outro, surgem propostas de transição ecológica popular, que emergem da base, dos territórios, dos saberes tradicionais e dos bens comuns.
Em uma declaração histórica divulgada durante a 17ª Cúpula do BRICS no Rio de Janeiro, os líderes dos países emergentes fizeram um apelo sem precedentes por financiamento climático justo, exigindo que as nações desenvolvidas mobilizem US$ 1,3 trilhão até 2030 para apoiar a transição climática no Sul Global. A iniciativa, batizada de “Roteiro de Baku a Belém”, surge em um momento crítico para o enfrentamento da crise ambiental mundial e coincide com os esforços do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para demonstrar que alternativas agroecológicas são viáveis e necessárias.

A declaração dos líderes do BRICS enfatiza que “os países em desenvolvimento serão os mais impactados por perdas e danos” causados pelas mudanças climáticas, mas “possuem os menores meios para financiar mitigação e adaptação”. O documento ressalta que, embora exista capital global suficiente para enfrentar os desafios climáticos, ele permanece “distribuído de forma desigual”, exigindo uma reforma fundamental do sistema financeiro internacional.
Com o Brasil assumindo a presidência da COP30 em Belém, a convergência entre a agenda dos BRICS e as experiências concretas do MST pode representar uma oportunidade histórica para demonstrar alternativas reais ao modelo dominante. A declaração dos líderes dos BRICS sobre financiamento climático, combinada com as práticas agroecológicas já consolidadas nos territórios da Reforma Agrária Popular, oferece um caminho concreto para a transição necessária.
Existe capital global suficiente para enfrentar os desafios climáticos, segundo os próprios líderes do BRICS, mas ele permanece distribuído de forma desigual. A experiência do MST demonstra que, para além da redistribuição do financiamento, é necessária uma redistribuição do poder sobre as decisões produtivas, colocando as comunidades rurais no centro da construção de um novo modelo de desenvolvimento que seja simultaneamente socialmente justo e ambientalmente sustentável.