Questão agrária e dilemas da formação nacional

Por Plinio de Arruda Sampaio Jr

1. Quando posto em perspectiva histórica, o monopólio da terra pelo latifúndio e pelas grandes empresas agrícolas constitui o principal determinante das brutais assimetrias existentes na sociedade brasileira, bem como um dos fatores responsáveis pelo caráter dependente e subdesenvolvido de nossa economia.

2. Por essa razão, desde José Bonifácio de Andrada, os grandes intérpretes do Brasil colocam a questão agrária como um dos nós fundamentais que devem ser desatados para permitir a consolidação do Brasil como um Estado nacional democrático e soberano.

3. Do ponto de vista estrutural, a raiz da pobreza e das gritantes desigualdades sociais encontra-se na relação umbilical entre a elevada concentração da propriedade fundiária e a presença de um enorme exército industrial de reserva permanentemente marginalizado do mercado de trabalho. Enquanto o bloqueio do acesso à propriedade da terra persistir, será impossível organizar um mercado de trabalho baseado numa correlação de forças relativamente equilibrada entre o capital e o trabalho – a base de funcionamento de qualquer sociedade minimamente equilibrada.

4. A abundância de mão-de-obra permanentemente marginalizada do mercado de trabalho bloqueia a transferência de ganhos de produtividade do trabalho ao salário, impedindo que o conjunto da população se beneficie plenamente dos frutos do progresso. A precariedade da conjuntura mercantil compromete a importância relativa da economia brasileira dentro do sistema capitalista mundial, tornando-a vulnerável aos movimentos especulativos do grande capital internacional. Por esse motivo, a economia brasileira está permanentemente sujeita à crises de reversão estrutural que comprometem a continuidade dos processos econômicos e sócio-culturais que impulsionam a formação da nacionalidade.

5. A tarefa fundamental da reforma agrária é essencialmente política. O desafio primordial consiste em criar as condições econômicas, sociais, políticas e culturais para que todos os brasileiros que vivem no campo – sejam como trabalhadores assalariados, sejam como pequenos proprietários de terra, sejam como proprietários organizados em cooperativas – possam participar em condições de relativa igualdade do desenvolvimento nacional.

6. O sucesso da reforma agrária depende da capacidade das forças sociais que lutam pela democratização das estruturas sociais no campo arregimentar força política suficiente para vencer a resistência dos grupos econômicos e sociais que não querem a mudança do status quo.

7. Latifúndio e grandes empresas agro-industriais à frente, a reforma agrária é combatida pelos segmentos da sociedade que vivem da superexploração do trabalho no campo e na cidade – uma ampla coalizão comprometida com a modernização conservadora (um padrão de absorção do progresso técnico que condena a maioria da população à exclusão social para permitir que uma parcela da população possa copiar os estilos de vida das economias centrais).

8. O Brasil tem desperdiçado todas as oportunidades de encaminhar uma solução construtiva para questão agrária. No momento da independência, a liderança da aristocracia agrária acarretou na revitalização dos dois pilares fundamentais da economia colonial: o monopólio da terra pelos grandes latifundiários e a continuidade do trabalho escravo. Na abolição, as classes dominantes tiveram a preocupação explícita de preservar a assimetria da sociedade colonial, evitando, com a Lei de Terras de 1950, que os recém libertos e que os imigrantes pobres tivessem livre acesso à propriedade da terra. Por fim, na fase decisiva de consolidação do poder burguês, a mobilização social a favor da reforma agrária – uma das principais bandeiras das reformas de base dos anos sessenta – foi abortada violentamente pelo golpe militar de 1964, sepultando definitivamente todos os sonhos reformistas das classes dominantes.

9. Nessas circunstâncias, a modernização acelerada da agricultura e o elevado crescimento da indústria vieram acompanhados da continuidade da pobreza no campo e de um processo caótico de urbanização acelerada que generalizou o problema do subemprego para as grandes metrópoles do País, (até meados do século XX o trabalho em atividades de baixíssima produtividade era uma realidade basicamente rural). Assim, o Brasil concluiu seu processo de internalização das estruturas fundamentais da Segunda Revolução Industrial, no final da década de setenta, após quase cinqüenta anos de vigoroso crescimento econômico, com praticamente um quarto de sua força de trabalho subempregada, sendo que quase 60% deste contingente vivia nas cidades.

10. A incapacidade de resolver a questão agrária gerou uma complexa questão urbana. Hoje a luta pela reforma agrária não pode ser dissociada da luta pela reforma urbana. Tal como no campo, o ponto nevrálgico da questão urbana consiste em democratizar o modo de ocupação do solo urbano e promover uma radical inversão nas prioridades das políticas públicas, mudanças que exigem uma profunda alteração no poder econômico, social e político nas cidades.

11. Embora a proporção da força de trabalho no campo sobre o total da População Economicamente Ativa tenha diminuído de 54% para 30% entre 1960 e 1980, o elevado contingente de trabalhadores rurais – mais de 12,5 milhões – e a alta proporção deste contingente que permanece preso ao subemprego – mais de 50% – deixam patente a elevada importância da questão agrária na vida nacional no final do século XX.

12. É dentro deste contexto de grave desequilíbrio social no campo e na cidade que a economia brasileira foi exposta aos ventos liberalizantes do processo de globalização dos negócios – primeiro com o programa de ajuste à crise da dívida externa anos oitenta; em seguida, com a adesão de Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso ao Consenso de Washington.

13. Ao desarticular as bases que davam sustentação à industrialização por substituição de importações e inviabilizar a sobrevivência dos pequenos e médios produtores rurais, a abertura indiscriminada da economia brasileira à concorrência internacional e à ação dos grandes grupos econômicos internacionais quebrou o padrão de mobilidade social que, até o final dos anos setenta, era responsável pela surpreendente capacidade da economia brasileira de gerar empregos e absorver uma parcela significativa da força de trabalho expulsa do campo. Surge, assim, um fenômeno relativamente novo: o problema do desemprego aberto. Cálculos conservadores indicam que, no final da década de noventa, aproximadamente 40% da PEA encontrava-se ou no subemprego ou simplesmente desempregada.

14. Enganam-se redondamente os que imaginam que a violência no campo é produto da ação dos movimentos que lutam pela reforma agrária no Brasil. É a grave crise social provocada pela inserção subalterna da economia brasileira no processo de globalização que, ao intensificar perigosamente a violência no campo e na cidade, recolocou a questão agrária no centro do debate nacional. Em outras palavras, não é o MST que promove invasão de terra, são as invasões produzidas pelas multidões que perambulam pelo país afora que impulsionam o MST.

15. Os Sem Terra procuram transformar a violência no campo em ocupações de terra e não escondem de ninguém a necessidade de dar à luta pela terra o conteúdo de uma cruzada pela democratização das estruturas sociais. Por esse motivo, recusam-se a ficar confinados à defesa corporativa de seus interesses e procuram politizar a questão agrária, mostrando sua relação com o perverso modelo agrícola adotado pelo governo FHC e com a regressiva política econômica imposta pela comunidade financeira internacional.

16. O sentido e a intensidade que o MST pretende dar à reforma agrária chocam-se frontalmente com a orientação neoliberal do programa fundiário do governo federal, cuja essência – definida em diretrizes oriundas do Banco Mundial – consiste em tratar o acesso à terra como um problema individual, exclusivo dos necessitados, que deveria ser resolvido caso a caso, respeitando as restrições orçamentárias do Estado. A lógica desta política, ao mesmo tempo assistencialista e financeira, dispersa os assentados em unidades econômicas inviáveis, tornando-os vítimas de dívidas incompatíveis com sua capacidade de pagamento.

17. A baixa prioridade que o governo FHC dá a seu programa fundiário fica caracterizada na desproporção dos recursos públicos destinados ao pagamento do serviço da dívida pública e ao Ministério do Desenvolvimento Agrário. Em 1999, por exemplo, as despesas com juros alcançaram cerca de R$ 80 bilhões, o equivalente a 73 anos do orçamento destinado à reforma agrária. Ao transformar os investimentos e os gastos sociais em variável de ajuste das contas públicas, a Lei de Responsabilidade Fiscal deve diminuir ainda mais a importância do programa fundiário de FHC.
18. O pecado mortal do MST é não aceitar o conteúdo conservador e o ritmo a conta-gotas do programa agrário de FHC e lutar para que não se perca mais uma oportunidade histórica de erradicar pela raiz os privilégios aberrantes que fazem do Brasil uma das sociedades mais injustas do mundo. No braço de ferro entre FHC e os Sem Terra, o que está em jogo é definir se a reforma agrária será feita pelos latifundiários e para os latifundiários, assim como a abolição dos negros foi feita dos brancos e para os brancos, ou se a reforma agrária será conduzida de baixo para cima, servindo de estopim a uma revolução democrática que mude de fato a cara do Brasil.

19. Paralisado pela instabilidade da economia internacional e pelos conflitos intestinos que estilhaçam a sua base de sustentação, o governo FHC tem intensificado seu esforço de neutralizar o papel do MST como principal catalisador da luta pela terra no Brasil. A insistência em criminalizar o MST põe em evidência que, hoje, como dantes, as classes dominantes só conhecem dois métodos para lidar com as pressões sociais e políticas de origem popular: a cooptação ou o esmagamento. No entanto, antes de resolver o problema, o esforço de sufocar econômica e politicamente o MST somente acirra a violência no meio rural. Fechando todos os espaços para uma solução da questão agrária dentro dos marcos institucionais, o governo FHC faz uma aposta irresponsável que potencializa o risco de uma conflagração armada no campo. Basta olhar para nossa vizinha Colômbia para ver os perigos desta via.

20. Portanto, quando visto de uma perspectiva histórica, a luta dos Sem Terra é parte da luta de todos brasileiros que se batem pela consolidação do Brasil como um Estado nacional democrático e soberano. Enquanto a reforma agrária não for encampada pelo conjunto dos trabalhadores do campo e da cidade e não for combinada com a luta pela reforma urbana, pela redução da jornada de trabalho e pela autonomia da política econômica em relação à comunidade econômica internacional, ela carecerá da força necessária para pôr uma pá de cal nas forças da reação e abrir novos horizontes para o desenvolvimento nacional.

* Palestra proferida no curso para estudantes de jornalismo UNESP/Fundação Cásper Líbero, em 20/05/2001.
** Plinio de Arruda Sampaio Jr., professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE-UNICAMP), autor do livro ” Entre a Nação e a Barbárie “, Vozes, 1999.