Viramundos virados

Por Emir Sader *

Pela primeira vez em muitas décadas, os dados se reverteram: chegou mais gente ao nordeste, do que saiu. Não que a região tenha se tornado atraente, não que as condições de vida, que levavam as pessoas a abandona-la, tenham melhorado. É que pioraram as regiões de destino desses imigrantes, as esperanças de melhoria com o deslocamento foram diminuindo, até desaparecerem e convocarem ao retorno ou a tentar sobreviver por lá mesmo.

Os nordestinos foram um contingente fundamental da classe trabalhadora brasileira. Antes deles, os escravos negros e os imigrantes europeus foram as primeiras gerações dessa classe fundamental e tão pouco reconhecida pelo Brasil. A geração do Lula foi a que construiu grande parte da riqueza do país, tal como ela passou a existir nas últimas décadas. O fluxo migratório de um nordeste sob comando absoluto do latifúndio, sem reforma agrária e sem democratização do acesso à terra, para um sul que prometia pelo menos carteira de trabalho assinada, promoveu o maior fluxo migratório que o país conheceu – depois do tráfico de escravos – e transformou a paisagem urbana e o PIB brasileiros.

Essa classe trabalhadora não teve nunca o reconhecimento devido, inclusive porque até pouco mais de um século trabalho era coisa de raça inferior, de escravos. Durante quatro dos cinco séculos desde que os colonizadores chegaram por aqui, tivemos trabalho escravo. Ao não conseguirmos expulsar os portugueses, com a “independência” transformada num negócio de pai para filho – “Meu filho, ponha a coroa na tua cabeça, antes que alguma aventureiro a faça” e os “aventureiros” éramos nós, os tiradentes -, não passamos de colônia a república, mas a monarquia. O preço mais caro desse pacto de elite foram os escravos, que tiveram sua liberdade adiada para o final do século, fazendo do Brasil o país que mais tarde terminou com a escravidão nas Américas.

No espaço dessas décadas os latifundiários se prepararam para enfrentar o momento em que surgisse a massa de “homens livres” no campo. Amparados na Lei de Terras, de metade do século XIX, legalizaram a posse de suas terras – através da “grilagem” – e impediram que os novos homens livres pudessem ter acesso à terra que sempre haviam trabalhado como escravos, condenando os negros automaticamente à pobreza. A questão colonial e a questão escrava se desdobravam assim na questão agrária, marcada pelo latifúndio e pela sujeição da mão de obra desvalida à violência e à miséria – como analisou nosso mais importante historiador, Caio Prado Jr.

O caráter de país mais injusto do mundo que o Brasil detêm vem em grande parte dessa herança, da qual não conseguimos até hoje nos livrar, pela força que o latifúndio manteve. Grande parte dos gravíssimos problemas urbanos que temos – superpopulação, deterioração da infra estrutura, abastecimento precário – tem a ver, em boa medida com a falta de democratização no acesso à terra no campo.

No primeiro momento, chegar do nordeste para o sul era sair do setor primário sem qualquer direito, para chegar ao setor industrial, com carteira assinada ou mesmo ao setor de serviços, mas com contrato de trabalho. Atualmente a transformação mais significativa no mercado de trabalho é regressiva – atenção: mobilidade social é ascendente, mas também descendente – é a passagem de grandes contingentes de mão de obra do setor secundário para o terciário, isto é, em geral da indústria para o trabalho precário de serviços, sem carteira assinada. Vem disto, em parte, o fechamento das possibilidades e esperanças de imigração dos nordestinos para o centro sul.

A atualidade da questão agrária no Brasil não precisa ser demonstrada. Ela sobrevive como herança desse mundo colonial e latifundiário, cuja sobrevivência segue presente na propriedade concentrada da terra – nos 285 milhões de latifúndios em grande parte improdutivos ao lado de mais de 4 milhões de famílias expulsas da terra somente nos últimos anos, pela expansão do latifúndio, à alta dos juros e à construção de barragens.

Temos que agradecer e dar todo o apoio aos movimentos rurais que lutam pela fixação dos trabalhadores no campo, propiciando-lhes meios dignos de vida e de trabalho, que lutam pelo retorno de populações marginalizadas nos grandes centros urbanos para áreas rurais onde podem trabalhar e ter seus direitos reconhecidos. São os sem cidadania, os viramundos, para os quais precisamos, juntos, virar este mundo em “festa, trabalho e pão”.

* Emir Sader é sociólogo e professor universitário