A necessária pressão social pela Reforma Agrária

Por Plinio de Arruda Sampaio

Três argumentos foram levantados para indispor o MST com a opinião pública: as ocupações de terras, organizadas pelo movimento para pressionar pela Reforma Agrária não se justificam, já que a reforma agrária está sendo feita; o clima prejudicial à produção pelas ocupações; a fuga do capital estrangeiro causada pelo clima de insegurança.

São todos argumentos falsos.

A execução do II Plano Nacional de Reforma Agrária (II PNRA), anunciado com bandeiras e fanfarras, no final do ano passado, caminha a passos de cágado.

A meta prevista para este ano é assentar 115 mil famílias. Para cumprir essa meta, o Incra precisa assentar, em média, 9.583 famílias por mês. De acordo com comunicado oficial do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), só foram assentadas até hoje 11 mil famílias. No ano passado, a meta era 60 mil famílias. Só foram assentadas 36 mil, sendo 22 mil delas em áreas desapropriadas pelo governo anterior.

É preciso assinalar que a meta do II PNRA corresponde a um plano de reforma agrária bastante reduzido. Os especialistas que o prepararam propuseram a meta de 1 milhão de famílias em 4 anos.

Trabalhando em conjunto com 50 funcionários do Incra e MDA e em estreito contato com as associações de funcionários e movimentos populares do campo, esses especialistas (todos professores universitários com mais de vinte anos de estudos sobre questões fundiárias, aqui e no exterior), concluíram que há necessidade de assentar esse número de famílias para dar uma solução adequada ao inaceitável quadro de pobreza da população rural. Comprovaram igualmente, com base nas estatísticas do IBGE e do Incra, que os imóveis suscetíveis de desapropriação por descumprimento da função social da propriedade assim como as terras devolutas arrecadáveis somam 230 milhões de hectares – quantidade mais do que suficiente para atingir a meta. O estudo constatou ainda que há no país 54.781 imóveis rurais, classificados como grandes propriedades improdutivas, que detém mais de 120 milhões de hectares de terras.

Portanto, a realização da Reforma Agrária, de acordo com a lei e afetando apenas as propriedades improdutivas é viável, necessária, fácil e incorporaria à produção milhões de hectares, hoje ociosos.

O custo de assentar 1 milhão de famílias – que compreende, além da indenização das terras desapropriadas, a entrega de meios indispensáveis a assegurar uma renda decente às famílias assentadas – foi calculado em 24 bilhões de reais em quatro anos. Apenas 13 bilhões correspondem a gasto efetivo durante seu período de execução, uma vez que o restante – 11 bilhões – consiste em TDAs (Títulos da Dívida Agrária) resgatáveis de 5 a 20 anos.

Para quem considerar a cifra elevada, convém esclarecer que, com esse gasto, o governo criaria nada menos do que 3,5 milhões de empregos permanentes na economia – a maneira mais barata, prática e rápida de gerar empregos na economia brasileira. Além disso, com esse gasto, o estado brasileiro criaria milhares de empregos indiretos, gerados pela demanda de produtos industriais que as famílias assentadas comprariam no mercado.

A decisão de reduzir a meta para 450 mil famílias baseou-se unicamente na restrição monetária. Mas nem sequer a quantia requerida para o cumprimento da meta reduzida foi incluída no orçamento de 2004. E da verba incluída, no montante de 1,4 bilhões de reais, foram efetivamente gastos até agora apenas 94 milhões.

O governo anunciou que pretende completar o orçamento do MDA com 1,7 bilhões de reais. Mas, atenção! Isto não quer dizer que todo esse dinheiro já esteja à disposição do Ministério. A alocação deverá ser feita aos poucos. No momento discute-se a alocação de 436 milhões. Em resumo: para gastar efetivamente 3 bilhões em 2004, a velocidade do gasto teria de ser quase dez vezes maior.

Além de recursos financeiros, o Incra não poderá cumprir sequer a modesta meta fixada para 2004, sem substancial aumento do número de seus funcionários. A autarquia, que tinha, em 1970, 12 mil funcionários está reduzida a 5 mil, dos quais 2 mil deverão se aposentar, daqui até o fim do ano. Obviamente, com esse brutal déficit de pessoal, não será possível realizar, de março a dezembro, as vistorias, avaliações, levantamentos topográficos, seleção de beneficiários, decretos de desapropriação e todas as inúmeras e complexas operações necessárias para desapropriar um imóvel e distribuí-lo a famílias de trabalhadores rurais sem terra.

Em 2003, o Incra contratou apenas 300 novos funcionários para preencher os claros deixados pelos governos passados. Como todos sabem, sendo 2004 um ano de eleições, as nomeações de funcionários só podem ser feitas até o dia 3 de julho próximo, ou seja, daqui a dois meses e meio! Portanto, ou o dinheiro sai agora ou não haverá tempo suficiente para equipar o Incra.

O que as cifras mencionadas indicam com clareza meridiana é que ou deflagra uma ação intensíssima imediatamente ou a meta deste ano não será cumprida.

Entretanto, o que se observa? Enquanto o tempo encurta velozmente e as desapropriações não deslancham, programas de importância apenas complementar, herdados da “reforma agrária de mercado” (com modificações apenas cosméticas), entulham a agenda do MDA, roubando das suas autoridades e técnicos, o tempo e a energia que deveriam estar inteiramente voltados para as desapropriações.

O MST e as demais organizações camponesas estão observando tudo isso. Sua histórica ligação com o presidente Lula levaram-nas a manter uma atitude de espera nestes 15 meses. Aceitaram, sem protestar, a redução da meta e conseguiram fazer com que as 200 mil famílias acampadas sob as barracas de plástico se contentassem em receber apenas cestas básicas durante todo esse tempo. Mas, sejamos sensatos: é razoável esperar que esses movimentos fiquem parados, vendo escoar um quarto do mandato presidencial sem um sinal efetivo de mudança no ritmo de execução da reforma?

Ninguém de boa fé pode negar – como aliás os tribunais superiores reconheceram – que as ocupações são unicamente uma forma de chamar a atenção do governo e da sociedade, após a constatação da inutilidade dos ofícios, audiências, marchas, concentrações e apelos.

Quanto aos outros dois argumentos falaciosos, a resposta é fácil: as ocupações não constituem ameaça alguma de instauração de caos no campo. Primeiro, caos no campo são os 1.671 assassinatos de trabalhadores rurais em decorrência de conflitos de terra, nestas últimas duas décadas, sendo que menos de 5% deles foram julgados e raríssimos os casos de réus condenados; segundo, o capital estrangeiro investido no agronegócio não deixará de afluir ao país, porque sabe perfeitamente bem que as ocupações passam longe dos imóveis integrados nas cadeias produtivas que lhes permitem enviar às suas matrizes lucros inadmissíveis em outros países.

Retratar as ocupações como a ante-sala de um selvagem alçamento camponês não passa da cediça tática utilizada pelos reacionários de sempre a fim de bloquear um passo que a sociedade brasileira deveria ter dado há 182 anos atrás, como queria, aliás, o Patriarca da nossa independência.

O que, sim, poderá provocar uma situação deste tipo, em futuro talvez não distante, é a recusa da sociedade brasileira de atender a reclamos justos de um enorme contingente da sua população e de ouvir as advertências de entidades sérias e ponderadas como o MST. Olhem a Colômbia!

*Plinio Arruda Sampaio, 74 anos, ex-promotor público; ex-deputado-constituinte, consultor da FAO para assuntos de reforma agrária e Presidente da ABRA (Associação Brasileira de Reforma Agrária)