Os limites e os poderes de uma CPMI

Por Tânia Maria de Oliveira*

O inquérito parlamentar apresenta-se como o instrumento mais significativo do direito de investigar, atribuído pelo ordenamento constitucional brasileiro ao Congresso Nacional e às Casas que o compõem, nos termos do artigo 58, parágrafo 3º, da Constituição Federal de 1988.

Ao poder de investigar corresponde a posse dos meios adequados para o bom desempenho das funções, com vistas a atingir os seus fins. É entendimento assente, tanto na doutrina jurídica quanto na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que as CPIs possuem poderes para decretar a quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico de pessoas, físicas ou jurídicas, desde que a decisão seja adequadamente fundamentada, sob pena de nulidade, passando os parlamentares membros da comissão a ser depositários dos dados reservados, tendo o dever de mantê-los em sigilo, exceto nos casos e na forma em que sua revelação mostre-se essencial à adoção das providências que a lei impõe.

O sigilo dos dados, em que se inclui o bancário, tem seu fundamento primeiro na liberdade, direito inerente ao ser humano, vislumbrada em sua ótica negativa, hipótese em que o cidadão tem o direito de não permitir que sua privacidade seja revelada. Configura-se como a intervenção do Estado em uma esfera particular. Por violar uma garantia e um direito fundamental, a transferência para outras pessoas das informações de contas bancárias constitui uma exceção ao direito de sigilo, sendo sua divulgação somente legitimada se houver forte presunção que a justifique, para o estrito esclarecimento dos fatos que importam à investigação.

O caráter estritamente político que vem sendo conferido a algumas CPIs tem levado, indubitavelmente, à tomada de posições e atitudes que se afastam de sua premissa.

Os membros da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, criada oficialmente com o objetivo de realizar diagnóstico e apontar soluções para os conflitos agrários, conhecida como CPMI da Terra, protagonizaram, recentemente, um episódio que demonstra de que forma a tomada de posição com caráter exclusivamente político, no sentido unilateral, pode definir encaminhamentos que apontam para a prática de transgressão do regime das liberdades públicas.

Sob o argumento de investigar desvio de finalidade dos recursos repassados pela União, os parlamentares definiram a quebra de sigilo bancário da Associação Nacional de Cooperação Agrária – Anca e da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil – Concrab, na mesma audiência em que rejeitaram o pedido de quebra dos sigilos bancário e fiscal da União Democrática Ruralista (UDR), acusada, entre outras coisas, de realizar leilões para compra de armas, além da quebra dos sigilos de duas entidades patronais: o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) e a Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária (Cna).

A ninguém é desconhecido que a resistência à reforma agrária congrega, de um lado os grandes proprietários, com uma extrema sensibilidade a tudo o que ameaça seus territórios – e dispõem-se a tudo para defendê-los – e de outro a imensa massa de trabalhadores rurais, que buscam um pedaço de terra para sobreviver. A suposta investigação de denúncias que remontam a fatos ocorridos há 4 anos, unida à negativa de exposição de entidades patronais no mesmo sentido, somente evidencia o caráter totalmente parcial da maioria dos membros da CPMI da Terra, e apontam, sem mascaramento, para o ataque político ao governo federal, em uma tentativa de barrar o processo de reforma agrária.

Desgastar as entidades que apoiam as milhares de famílias sem-terra não é outro senão o caminho para tentar satanizar os próprios mecanismos de luta pela distribuição de terras no país.

No aspecto puramente jurídico-legal, não se deve tolerar que a invocação da natureza política do ato emanado das Casas Legislativas possa constituir – naquelas hipóteses de lesão potencial ao direito de terceiros – um ilegítimo manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários por parte de seus membros.

O ímpeto de aprovar seus requerimentos foi tamanho, que os parlamentares da bancada ruralistas incorreram, inclusive, em agressão ao Regimento Interno do Congresso Nacional. Com efeito, a Deputada Kátia Abreu, que sendo suplente na comissão só votaria na ausência do titular, votou em conjunto com aquele.

Não se deve desconhecer que a CPI – qualquer que sejam os fatos determinados que tenham justificado a sua instauração – não pode exceder, sob pena de incidir em abuso de poder, os parâmetros que delimitam a extensão dos seus poderes investigatórios.

O que tem ocorrido, em regra, dentro do Congresso Nacional, é a utilização das CPI,s como forma de embate político, descaracterizado seu princípio investigatório, o que tem propiciado episódios que beiram o grotesco, como ordens de prisão por disparate de um depoente, a exemplo do recente caso Pitta, ou a exposição de pessoas e entidades como demonstração de força.

A quebra de sigilo, em regra e por princípio moral, deve ser a conseqüência de uma investigação. No caso da Anca e da Concrab ela é um sofisma, precede a investigação – que aliás deveria abarcar todas as questões que envolvem os conflitos agrários e não só um dos lados – e revela, sob o pretexto de averiguar a correta destinação de verba pública, a tentativa de desacreditar o movimento dos trabalhadores sem terra, afetando diretamente o seu maior representante, o MST.

* historiadora e advogada, assessora do Senador Sibá Machado (PT/AC).