Onde estão as terras da Reforma Agrária?

Por Osvaldo Russo*

Ao contrário daqueles que alardeiam o fim da questão agrária brasileira, inclusive afirmando que inexistem terras agricultáveis passíveis de desapropriação por interesse social, os dados oficiais e vários estudos apontam para a existência de um estoque fabuloso de terras agricultáveis ociosas e de baixa produtividade no Brasil – em todas as regiões. Esses dados indicam também um elevado contingente de demandantes de terras no país. E apontam para o crescimento da desigualdade social e da concentração fundiária.

De acordo com metodologia adotada por José Graziano da Silva e Mauro Eduardo Del Grossi, para caracterizar os demandantes de terra, as tabulações especiais do Projeto Rurbano, com base nas Pesquisas Nacionais por Amostras de Domicílios, do IBGE, indicam que os potenciais demandantes de terra no Brasil eram, em 1998, 7.241 mil famílias. Em 1992, 7.003 mil; em 1993, 6.964 mil e, em 1995, 7.401 mil famílias.

A redução observada, de 1995 para 1998, no número total de demandantes (160 mil) deve-se menos às metas que o governo anterior diz ter realizado, e mais à elevada redução (470 mil) no número de famílias com área insuficiente, indicando que, pelo menos, 150 mil famílias abandonaram as suas terras anualmente naquele período. De outro lado, no mesmo período, o número de famílias sem acesso a terra cresceu de 4.145 mil para 4.455 mil famílias, indicando um crescimento absoluto de 310 mil no número de famílias sem terra.

De acordo com os dados cadastrais do Incra, relativos a 1998 (últimos disponíveis), os minifúndios e as chamadas pequenas propriedades rurais (imóveis com área total até 4 módulos) totalizavam 3.183.055 imóveis (88,7% do total de imóveis), detendo 92,1 milhões de hectares (22,2% da área total cadastrada). Enquanto isso, as chamadas grandes propriedades (imóveis com área superior a 15 módulos) totalizavam 104.744 propriedades (2,9% do total de imóveis) detendo, porém, 238,3 milhões de hectares (57,3% da área cadastrada no país).Os grandes imóveis produtivos somam 45 mil imóveis com uma área total de 72 milhões de hectares, enquanto que os grandes imóveis não produtivos correspondem a 59,8 mil imóveis, detendo uma área total de 166,3 milhões de hectares.

Na região Norte, os grandes imóveis rurais não produtivos totalizam 8 mil imóveis com uma área total de 57,3 milhões de hectares. Na região Nordeste, esses imóveis somam 11,3 mil imóveis perfazendo uma área total de 27,5 milhões de hectares. Na região Sudeste, 12,5 mil imóveis com uma área total de 12,3 milhões de hectares. Na região Sul, 8,7 mil imóveis com uma área total de 6,3 milhões de hectares. Finalmente, na região Centro-Oeste, os grandes imóveis rurais não produtivos somam 19,3 mil imóveis perfazendo a área total de 62,9 milhões de hectares.

Esse estoque de terras desapropriáveis indica um potencial de assentamento de 2,6 milhões de famílias em todo o País, das quais 817 mil famílias na Região Centro-Oeste, 611 mil na Região Norte, 498 mil na Região Nordeste, 401 mil na Região Sudeste e 282 mil famílias na Região Sul. Temos terra em abundância e gente bastante querendo trabalhar e produzir. A fome no Brasil não pode ser atribuída à natureza, como em outros países. Aqui, a concentração da riqueza e da renda e a ausência de políticas públicas sustentáveis explicam a pobreza e a miséria da maioria do nosso povo. Hoje, em 2004, será que muita coisa mudou no meio rural brasileiro?

Mas um outro argumento sempre utilizado para desqualificar as ações de Reforma Agrária se refere à venda de lotes pelos assentados. Já em 1992, um estudo da FAO indicava a baixa taxa de abandono das terras pelas famílias assentadas. A taxa é maior nas regiões ou áreas com pior infra-estrutura para escoamento da produção. O próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário acaba de editar o livro “Impactos dos Assentamentos – um estudo sobre o meio rural brasileiro”, um dos mais importantes estudos sobre a reforma agrária no Brasil nos últimos anos. A publicação baseia-se em dados de pesquisa realizada em 2000-2001 conjuntamente pelo Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e o Núcleo de Antropologia da Política do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Foram estudados 97 assentamentos em seis regiões de alta densidade de famílias assentadas por unidade territorial. Os professores Sérgio Leite, Moacir Palmeira, Leonilde Medeiros, Beatriz Heredia e Rosângela Cintrão, coordenadores nacionais da pesquisa, analisaram 39 municípios, com uma população de 15.113 famílias assentadas pelo Incra, entre 1985 e 1997. Os dados demonstram que o processo de acesso a terra acarretou, em muitos casos, num nítido progresso em relação ao passado, uma vez que 91% dos assentados entrevistados consideram que suas vidas melhoraram e 87% acreditam que o futuro é promissor. A pesquisa demonstra que a reforma agrária, se efetivamente assumida como política prioritária pelo Estado brasileiro, pode se constituir, junto com a educação, num dos principais instrumentos para superar a fome e a pobreza rural em nosso País.

* Osvaldo Russo, ex-presidente do INCRA (1993/94) e vice-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA).