De Steinbeck a Stedile: cem anos de exclusão

Por Helton L. Ribeiro*

“E quando a safra progredia e a colheita terminava, nenhum homem pegava num punhado de terra quente e deixava a terra escorrer entre os dedos. Nenhum homem tocava nas sementes ou sentia alegria com a safra. Os homens comiam aquilo que não tinham plantado; não tinham amor ao pão que comiam. A terra produzira pelo efeito do ferro e sob os efeitos do ferro morria gradualmente; não era amada, nem odiada; nem adorada, nem amaldiçoada.”

O trecho acima é do visceral romance As Vinhas da Ira, do escritor norte-americano John Steinbeck, e retrata um processo que ele testemunhou na década de 30: a expulsão de pequenos agricultores do campo pelo advento de novas tecnologias – no caso, representadas ainda por simples tratores. Mais de setenta anos depois, As Vinhas da Ira continua incrivelmente atual e deveria ser leitura obrigatória para os jornalistas que cobrem questão agrária e agronegócio no Brasil.

O homem apartado da terra, aninhado em concreto armado e se alimentando de produtos cuja origem desconhece é o ideal que emerge por trás da euforia em torno do agronegócio brasileiro. O caminho apontado parece ser o da busca da semente perfeita, capaz de produzir mais, melhor e mais barato, sejam quais forem as condições de solo, sejam quais forem as condições climáticas. A natureza não importa. O capitalismo consubstancia sua vitória com o total desencantamento do mundo.

Competitividade, eis a palavra-chave!

Mas o que tornou o Brasil competitivo do dia para a noite? “Anos e anos de pesquisa”, respondem alguns. Talvez…, mas só isso? “Investimento pesado em tecnologia”, complementam outros. Ah, tá… Mas e o homem, onde entra nessa história? E a mão-de-obra? Por mais que o êxodo rural ainda persista, as lavouras brasileiras ainda não se tornaram os “campos de cultivo” do filme Matrix . Nelas ainda se trabalha à moda antiga, pelo menos um pouquinho. Sem mais rodeios, vamos aonde eu quero chegar: onde é que o custo da mão-de-obra se encaixa na competitividade do agronegócio nacional? Sacou?

O cinismo dos arautos do progresso tem impedido questionamentos como esse e, por conseguinte, tem impedido o próprio debate. Outro exemplo: há um conceitozinho que é deixado a léguas de distância quando o assunto é o desempenho formidável da produção agropecuária na balança comercial brasileira: sustentabilidade. Não estou falando de “desenvolvimento sustentável”, não, que isso é só retórica, uma forma de dizer que o capitalismo pode ser mais, digamos, justo. Há inclusive uma disputa em torno da etimologia da palavra desenvolvimento: des-envolvimento, ou seja, algo que não envolve, que não inclui aqueles que estão de fora. Ou des-envolvimento, como aquilo que remove o invólucro para permitir o crescimento. Mas não percamos tempo com isso. A questão que não podemos deixar escapar é: o capitalismo é sustentável? Ou pode, de alguma forma, vir a sê-lo?

Em vez disso, fala-se em “profissionalizar” a reforma agrária. Essa é a idéia defendida pelo ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, que tem a honra de ter sido nomeado pelo primeiro presidente de origem popular da história do Brasil. Ou seja, o Estado oferece a terra e a iniciativa privada gerencia a produção. Conveniente, não? A proposta de Rodrigues evidencia muito bem o paradigma que orienta essa visão “profissional” da reforma agrária, ou “técnica”, em oposição a uma suposta visão “ideológica”. Aliás, aproveito para ensinar ao leitor um forte argumento para desqualificar seu oponente num debate sobre o assunto, se você é contra a reforma agrária, é claro. Diga que ele está defendendo o “atraso”. Afinal, agricultura hoje em dia não se faz mais com enxada, certo?

Esse paradigma ao qual o ministro da Agricultura se filia, mas não só ele, também alguns intelectuais importantes que gravitaram em torno do Ministério do Desenvolvimento Agrário no governo FHC, exclui o homem. E, por isso, vê com horror os movimentos sociais. Há mesmo quem, do alto de sua cátedra, negue ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) o status de movimento social. Para gente desse naipe, reforma agrária é assistencialismo. Coisa do passado, que emperra a “modernização” do campo. O negócio é ir todo mundo pras cidades, que as máquinas fazem o serviço.

Felizmente, nem todos os intelectuais estão preocupados apenas com a produtividade da agricultura brasileira (se é que essa é a preocupação). José Murilo de Carvalho, no seu livro Cidadania no Brasil , afirma que o MST “representa a incorporação à vida política de uma parcela importante da população, tradicionalmente excluída pela força do latifúndio. (…) O MST é o melhor exemplo de um grupo que, utilizando-se do direito de organização, força sua entrada na arena política, contribuindo assim para a democratização do sistema”. Talvez seja essa característica a que mais preocupa os arautos do progresso.

É compreensível, portanto, que a reforma agrária almejada pelo MST não interesse àqueles que se valem de uma fachada democrática para defender o imobilismo das massas. Que se amparam em instituições que eles próprios nem sempre respeitam para defender a omissão e a passividade. Que evocam palavras abstratas, como o progresso e o desenvolvimento, para escamotear as relações entre os homens.

Quando alguém busca trazer à baila essas relações e desmascarar a frieza do discurso do progresso, mostrar que a tecnologia não está a serviço do bem-estar do povo, como deveria, mas a serviço da acumulação capitalista, é imediatamente satanizado, tachado de incitador da violência, como tem acontecido com João Pedro Stedile.

Na primeira metade do século 20, John Steinbeck, prêmio Nobel de literatura, já via o desenvolvimento capitalista no meio-oeste americano como algo insustentável, que exauria o solo e que excluía o homem.

Ele nem sequer sonhava com transgênicos ou máquinas computadorizadas. Os “monstros”, como ele mesmo dizia, eram apenas tratores. Por trás desses monstros não havia homens com quem se pudesse discutir. Havia apenas bancos ou “companhias”. As relações se desumanizavam na mais completa alienação. Steinbeck exprimia, pela arte, no diálogo entre o pequeno agricultor e o funcionário da companhia, seu desconforto, sua impotência:

“– Mas então quem é que manda? Quem devo matar? Não vou morrer de fome sem primeiro matar quem me quer matar de fome.

– Não sei. Talvez não haja ninguém a quem matar. Talvez a culpa seja da propriedade. De qualquer maneira, eu tenho que cumprir as ordens.”

*Helton L. Ribeiro é jornalista
Este texto foi originalmente publicado na edição 142 do Correio Caros Amigos, em 5/03/04