Conflitos por terra

Por Manuel Correia de Andrade*

Ao se fazer uma reflexão mais profunda sobre a história do Brasil, desde a colonização até os nossos
dias, observa-se que ela foi constituída em torno da luta pela posse e uso da terra. Assim os portugueses ao iniciarem a colonização, com a implantação das capitanias hereditárias, trouxeram para o Brasil o instituto das sesmarias, pelo qual cada donatário poderia conceder ao colono que fosse cristão e dispusesse de recursos o direito de explorar uma porção de terras, geralmente de léguas à margem de algum rio. De posse do lote o sesmeiro, recebedor da sesmaria, tinha que promover a exploração da mesma utilizando braços sob coação e de defender o seu quinhão de ataques dos inimigos externos e internos.

Estudando este sistema os grandes pensadores brasileiros como Gilberto Freyre e Caio Prado Junior
admitiram que se estabelecia um sistema colonial baseado no latifúndio – grande propriedade – na
monocultura – domínio do cultivo de um produto de exportação – e no trabalho sob coação – escravidão. Os portugueses iniciaram o processo de escravização da terra e em importaram escravos negros da África.

Iniciava-se com este sistema a consolidação da grande propriedade, concentrada nas mãos de uns poucos e trabalhada por muitos que gerou uma luta permanente entre os proprietários e os trabalhadores, as então chamadas classes subalternas. Esta luta se iniciou já no século XVI com a resistência indígena à conquista portuguesa e com a formação de quilombos nos lugares de mais difícil acesso, por parte de negros que fugiam do cativeiro. A historiografia oficial procurou
esconder estas lutas, mas algumas delas, mais duradouras ou que envolveram maior número de pessoas sobreviveram na nossa história como a Confederação dos Tamoios, a Guerra dos Bárbaros e o Quilombo dos Palmares nos primeiros séculos e certas revoltas de cunho popular como a dos negros malés, dos cabanos, dos balaios, dos farrapos e outras, já depois da proclamação da independência, assim como certas lutas classificadas como revoltas de fanáticos como Canudos e Caldeirão já no período republicano.

Revoltas deste tipo foram precursoras dos movimentos sociais e sindicais modernos, envolvendo a população rural, com as Ligas Camponesas, a república de Trombas e Formoso nos meados do século XX e os movimentos populares ligados à Contag, à CPT, ao MST e outros que lutam hoje por uma reforma agrária autêntica e massiva. Estes movimentos largamente estudados nos dias de hoje vêm sendo documentados e divulgados tanto em nível popular quanto acadêmico.

Atualmente a Comissão Pastoral da Terra vem editando um caderno em que retrata as condições dos conflitos por terra, ocorridos naquele ano indicando uma série de arbitrariedades cometidas contra os trabalhadores rurais pelas forças do latifúndio e dos governos comprometidos com o latifúndio. O ano de 2003 foi muito fértil em perseguição a agricultores sem terras. A Pastoral da Terra classifica essas arbitrariedades em vários tipos como ocorrência de conflitos.

Observa-se nos dados referentes a 2003 que o número de ocorrências no Nordeste foi superior aos de demais regiões do Brasil com 455 casos, seguido do Sudeste com 255, do Norte com 246, do Centro Oeste com 248 e finalmente do Sul com 156 casos. Assim no Nordeste, região mais pobre do Brasil, o número de ocorrências atingiu a 34,7% das verificadas no País.

Quanto ao número de famílias atingidas foi mais intensa no Centro Oeste com 51.374 famílias, seguida do Nordeste com 48.647, do Sudeste com 31.331, do Norte com 28.278 e, finalmente, do Sul com 16.387. Quanto à área disputada naturalmente ela é mais extensa em regiões menos povoadas onde há ainda muita floresta e muito ceifado em processo de ocupação do que nas áreas de povoamento antigo, onde a população é mais densa e os territórios estão ocupados e as
propriedades estão estruturadas. Assim no Centro Oeste a área em disputa compreende cerca de 1.391.213 ha, no Norte cerca de 1.097.453 ha, no Nordeste cai para 743.880 ha e no Sudeste e Sul, respectivamente de 31.331 e 16.397 ha.

Quanto ao número de famílias expulsas o Sul é o que apresenta número mais elevado com 3.195 famílias, seguida do Nordeste com 1.286, do Norte com 1.168, do Sudeste com apenas 114 e do Centro Oeste com 35.

Em 2003 foram destruídas cerca de 6.837 casas no Brasil, se distribuindo pelas grandes regiões da
seguinte forma: 3.036 no Nordeste, 3.002 no Norte, 658 no Centro Oeste e 141 no Sudeste. Quanto a destruição de roças chegaram a 1.624 ha no Norte, 1.537 no Nordeste, 200 no Sul e 55 no Sudeste.

Vê-se assim que há uma autêntica situação de litígio em toda as regiões brasileiras e que nestas se
encontram mais conflagrados os Estados do Mato Grosso no Centro Oeste, de Pernambuco no Nordeste, do Pará no Norte, de São Paulo no Sudeste e de Paraná no Sul.

Além dos itens analisados deve-se levar em conta que no campo ainda estão ocorrendo numerosos assassinatos de trabalhadores, cujo número oscila de ano a ano, mas que em 2002 chegaram a 743 mortos. Também, por incrível que pareça, apesar de a escravidão ter sido abolida no Brasil pela Lei Áurea a 13 de maio de 1888, ainda hoje fazendeiros poderosos e com influência política mantém trabalhadores cativos em suas propriedades, trabalhando sem remuneração como os escravos e que apesar de ocorridas com freqüência foram constatados cerca de 174 trabalhadores escravos
estando envolvidos em processos cerca de 5.559 pessoas.

* Manuel Correia de Andrade, historiador e geógrafo, é da A.P.L.