Simbiose e fagocitose: cenas da tragédia brasileira

Por Ricardo Antunes, Fonte JB Online

O que ocorreu no Pará, como o assassinato de Dorothy Stang e outros sindicalistas, é mais uma fotografia triste e brutal da tragédia brasileira no campo. Ao contrário do que ocorreu em países como Inglaterra e França, para citar os exemplos clássicos de montagem da sociedade burguesa moderna, no Brasil não houve um processo de democratização da estrutura fundiária.

Somos de uma espécie social mais aproximada do caminho (quase) prussiano, meio leopardiano (do mestre Lampedusa), onde tudo parece mudar para que de fato se mantenha como está, para que não seja de fato alterado. Assemelhamo-nos um pouco mais à velha Alemanha, que se modernizou preservando o velho e destruindo qualquer ação do novo. Ou talvez estejamos mais próximos da Itália e sua questão meridional. Com a diferença que temos uma gênese colonial, que gestou uma classe dominante dependente e subordinada, ao mesmo tempo medrosa para com os ”de fora” e bruta para com os ”de baixo”.

O que particularizou, então, a chamada ”modernização brasileira” do século 20 foi uma simbiose muito perversa entre o arcaico e o novo, entre o rural e o urbano, atando os laços entre o atraso e moderno, um dependendo da permanência do outro, para que ambos se perpetuassem. Foi assim, através da articulação complexa entre a indústria e as formas arcaicas de exploração, que se deu o nosso salto industrializante. Basta pensar nos níveis degradantes do nosso salário mínimo nacional. A expansão do sudeste brasileiro sempre careceu, portanto, de um nordeste onde florescia e reinava a grande propriedade, a indústria da seca, a miséria, o exército sobrante de força humana barateada. Quadro que se mantém até hoje. Desde Deodoro até o fim da República Velha, de Getúlio até a ditadura dos militares. De Collor a Lula. As oscilações e diferenças são sempre contingentes e nunca estruturais.

No norte, algo similar também ocorreu: preservou-se uma estrutura altamente concentradora da propriedade fundiária, predatória, sob comando ou forças do sudeste, ou dos interesses forâneos, combinando com o abandono histórico e secular do Estado cartorial, todo privatizado.

Vejam-se os casos da extração da borracha no início do século, a criação da estrada de ferro Madeira-Mamoré, ambos sob o comando do capital forâneo, bem como a tentativa de modernização industrial sob a ditadura militar, como foi a criação da Zona Franca de Manaus, que procurou construir uma indústria da caixa preta (como era denominada à época, numa alusão à produção de eletrodomésticos) no meio da floresta. Acabou prevalecendo a exploração predatória, ao invés de se impulsionar uma produção compatível com a região e com o povo que lá trabalha.

O que se vê, ao longo de tantos anos, não é senão um processo destrutivo, no qual os grileiros e madeireiros não aceitam o caráter público das terras devolutas e acabam forçando os mais diversos governos e administrações locais a liberarem a exploração privada da terra, da madeira, através da grilagem , e de mecanismos que mais nos aproximam de uma terra sem lei. Os assassinatos, então, parecem a regra: sua punição, a exceção. Nas últimas duas décadas, das cerca de quase 1.500 vítimas dos conflitos agrários, somente pouco mais de 7% dos crimes foram julgados, sendo que apenas 64 executores e 15 mandantes foram condenados, conforme dados da CPT. É o exemplo cabal da impunidade completa, do império do crime, da subserviência estatal, da ausência da justiça que se encontra em grande parte sob controle do latifúndio.

E o governo Lula, ao invés de mexer na estrutura das peças, de modo a enfrentar na raiz a questão agrária, está prisioneiro do leque de forças que construiu, bem como da política que desenhou, estando em franco processo de erosão e mesmo decomposição. Imaginar, então, que a ”questão social possa tornar-se caso de polícia” – reinvertendo também nesse ponto o velho getulismo -, pensar que a questão da terra, no Pará ou em qualquer outra parte do país, possa ser resolvida como caso de polícia (mesmo que militar), é abusar da paciência histórica do povo.

Esperava-se, pela origem social de Lula, por ele ter sido o catalisador de lutas sociais de mais de duas décadas, que sua vitória pudesse propiciar um redesenho nas engrenagens da nossa dominação, de modo que o arcaico pudesse ser atacado e o novo redesenhado. Deu-se o contrário: a simbiose entre o arcaico e o moderno se mantém e levou o governo Lula a uma fase avançada de fagocitose.