Da “clonagem” à “autofagia”: o dilema da reforma agrária no Brasil

Por Bernardo Mançano Fernandes

Acessar os números da estrutura fundiária e da reforma agrária é um enorme desafio para qualquer cidadão. Esses dados fazem parte de uma intrincada relação política determinada pelo controle dos territórios. O Brasil junto com o Paraguai e a Venezuela estão entre os primeiros países com a maior concentração de terras do mundo. Esses territórios há séculos são controlados por grupos políticos e corporações transnacionais, que aumentam dia-a-dia seu poder político, econômico e tecnológico.

Analisar os dados para interpretá-los não é tarefa para qualquer cidadão. A diversidade de formas de disponibilização dos dados exige a criação de uma metodologia de análise que possibilite comparações. Para poder trabalhar com os dados dos assentamentos rurais, implantados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA – e pelos institutos de terras vinculados à Associação Nacional de Órgãos de Terras, criamos o DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra.

Por meio do DATALUTA, conferimos todo ano os assentamentos em todos os municípios. Com esse procedimento identificamos o processo de clonagem de assentamento, no segundo governo FHC. Descobrimos essa artimanha na conferência dos assentamentos por municípios. Encontramos assentamentos criados na década de 1980 sendo divulgados como implantados em 2001. A clonagem representou a astúcia do governo FHC em produzir dados para atender as metas. Essa condição era resultante da judiciarização da luta pela terra com a Medida Provisória 2109/52, de 24 de maio de 2001, que criminaliza as famílias que participam de ocupações e privilegia o latifúndio, porque não poderá ser desapropriado por dois anos. Esse tempo pode aumentar se houver reincidência. Com a Medida, o número de famílias em ocupações despencou de sessenta e cinco mil famílias em 2000 para vinte e seis mil famílias em 2001. Sem ocupações não há reforma agrária. Portanto, era preciso fabricar números para atingir as metas.

Embora tenha utilizado desse artifício, nas duas gestões foram desapropriados vinte e um milhão de hectares. Esse número tem um significado importante para a reforma agrária, quando comparamos com os dados da estrutura fundiária. De acordo com os dados do II Plano Nacional de Reforma Agrária, comparados com os dados do Atlas Fundiário Brasileiro, a área ocupada pelas propriedades rurais cresceu oitenta e nove milhões de hectares no período 1992 a 2003. As propriedades capitalistas tiverem um crescimento de área de cinqüenta e dois milhões de hectares. A área das propriedades familiares cresceu trinta e sete milhões de hectares. Nesse período de onze anos foram desapropriados vinte e cinco milhões de hectares. Embora existam críticas aos dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural, é indiscutível que são dados oficiais utilizados para políticas de reforma agrária.

Supondo que no período 1992 a 2003, as famílias sem-terra não tivessem ocupado terras, para pressionar o governo na realização da reforma agrária, o crescimento da área das propriedades capitalistas teria sido de setenta e sete milhões de hectares. Enquanto o crescimento das propriedades familiares teria sido de doze milhões de hectares. Isso significa uma maior concentração de terras. Ou seja, a média anual de expansão da área das propriedades capitalistas que foi de 4,7 milhões de hectares, subiria para 6,5 milhões de hectares. Enquanto a média anual de expansão das propriedades familiares que foi de 3,4 milhões, cairia para 1,1 milhões. De fato, a reforma agrária na década de 1990 contribuiu para impedir a intensificação da concentração fundiária. Sem reforma agrária, a expansão das áreas das propriedades capitalista é cinco vezes mais rápida que a expansão das propriedades familiares. Com reforma agrária, a expansão das áreas das propriedades capitalista é apenas uma vez mais rápida que a expansão das propriedades familiares. Ou seja, no Brasil, a reforma agrária não desconcentra terra, esta política só minimiza a rapidez da concentração da terra.

Mas este problema pode se agravar quando acontecer o fechamento da fronteira agrícola. 60% das terras desapropriadas estão na região norte, onde se movimenta a fronteira agrícola com a impetuosidade do agronegócio. Com o fechamento da fronteira, os dois tipos de propriedades só poderão se expandir um sobre a outro. Ou como conceitualizamos na geografia, o processo de territorialização e desterritorialização será ainda mais intensificado. A tendência será de acirramento dos conflitos entre camponeses e o agronegócio. Nessa realidade, a reforma agrária ganhará novos significados. Pois o agronegócio não conseguirá incluir e nem destruir os camponeses sem-terra.

Hoje, uma questão importante é: como o governo Lula tem tratado esse problema? Segundo os resultados de 2003 a 2005, temos analisado a seguinte tendência: Em 2003, o governo Lula assentou 35.623 famílias, sendo 8.521 (24%) em terras desapropriadas ou compradas e 27.102 (76%) em lotes de assentamentos já existentes. Em 2004, o governo Lula assentou 81.160 famílias, sendo 25.975 (32%) famílias em terras desapropriadas ou compradas e 55.185 (68%) em lotes de assentamentos já existentes. Em 2005, o governo Lula assentou 127.506 famílias, sendo 26.591 (21%) em terras desapropriadas ou compradas e 31.373 (24%) em lotes de assentamentos já existentes, 49.203 (39%) em assentamentos realizados em terras públicas e 19.979 (16%) em assentamentos já existentes em terras públicas.

De 2003 a 2005, foram assentadas 244.289 famílias, numa média de 81.430 famílias por ano. Esse resultado é bem melhor que a média de 65.548 mil famílias assentadas por ano no governo FHC. Todavia, não podemos contar apenas as famílias assentadas, é preciso contar as propriedades desapropriadas. Enesse ponto, o governo Lula está sendo um enorme retrocesso. Nos três anos de governo, apenas 61.087 (25%) das famílias foram assentadas em terras desapropriadas. Estamos observando uma nova arte na política de reforma agrária para atender as metas: o processo de autofagia. Ou seja, 183.202 famílias foram assentadas em assentamentos já existentes ou em assentamentos implantados em terras públicas ou em assentamentos já existentes em terras públicas. A reforma agrária do governo Lula diminuiu o poder de minimização da rapidez da concentração da terra. A precarização da política de reforma agrária e das políticas agrícolas, que é marca de todos os governos, está expulsando famílias assentadas. No lugar das famílias assentadas excluídas, são assentadas outras famílias. O problema não se resolve em si, se reproduz em si.

Para mudar esta tendência, será necessário o fortalecimento político dos movimentos camponeses para pressionar o governo no enfrentamento com os ruralistas. A atual política de reforma agrária do governo Lula é isso: um processo autofágico. E os movimentos camponeses precisam estar atentos para fazer com que a reforma agrária se alimente de latifúndios e não de assentamentos.

Bernardo Mançano Fernandes é geógrafo, professor do Programa de Pós- Graduação em Geografia da Unesp, coordenador do Grupo de Trabalho Desenvolvimento Rural do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais – CLACSO e pesquisador da CNPQ.