Por que Reforma Agrária?

Por Ana Maria Araújo Freire

Diz a história oficial, que em 1500, os portugueses descobriram o Brasil, e que eles foram melhores colonizadores do que os outros colonizadores europeus. Que eram mais fraternos e amigos e que se misturaram com as negras determinando uma sociedade mais alegre e mais tolerante.

Na verdade, os portugueses invadiram as terras novas da América à procura de metais e pedras preciosas. Não as encontrando entenderam então que nada tinha aqui que os interessasse e que assim deveriam abandonar as terras do Novo Mundo. O território conquistado só começou a ser povoado pelos portugueses quando os chamados “piratas” –os que procuravam riquezas pelo mundo todo — franceses, ingleses, espanhóis e holandeses — aqui aportavam levando, inicialmente, o Pau-Brasil, para utilizar sua tinta na coloração dos tecidos. Os franceses e os holandeses chegaram a se fixar nas “terras portuguesas”.

Os nossos colonizadores, é preciso enfatizar, não foram melhores do que os outros europeus que dominaram partes da África e das Américas, foram diferentes. Foram tão malvados quanto exige a natureza mesma do colonialismo.

Por causa das invasões a Coroa Portuguesa resolveu criar as Capitanias Hereditárias, que eram imensas porções de terras dadas à nobreza portuguesa para que viessem para cá com homens povoando essa imensidão de terras e produzisse para o enriquecimento dos dominantes. Poucas Capitanias prosperaram, mas a marca da grande porção de terra para um só homem permaneceu, malvadamente, viva entre nós. Mesmo que nesses 500 anos essas terras tenham vindo sendo divididas e dividas, ainda hoje são “lotes” absurdamente gigantescos: são os latifúndios!

O que plantar nessas terras? O açúcar era nesse tempo (séc. XVI) uma especiaria muito cara (como a pimenta, a noz-moscada, o cravo, a canela, etc.), que servia para conservar os alimentos. Resolveram os colonizadores portugueses, então, plantar a cana de açúcar os massapés do Nordeste. Encomendaram os “engenhos” para a moagem aos holandeses

Mas, quem faria a plantação, a limpeza, a colheita e a moagem da cana? Que homens trabalhariam tanta terra? Quantos homens seriam necessários para trabalho tão árduo, tão duro? Resolveram roubar os negros, as negras e seus filhos da África. Encostavam os navios nos portos africanos e convidavam toda a gente do lugar para uma grande festa. Vinham reis e rainhas, nobreza e povo. Aí, com o navio cheio de gente, zarpavam para o nordeste brasileiro. Ao chegarem as famílias africanas eram separadas e cada um/a vendidos como “peças” para o trabalho escravo.

Como tudo aqui era controlado pelo governo português toda a produção do açúcar era comprada por ele e vendida por ele no mundo. Portanto havia nos tempos coloniais, até a chegada da Família Real ao Brasil, em 1808, um único comprador e único vendedor. Isso se chama monopólio comercial. O lucro do colonizador foi se tornando cada vez mais diminuto para que fosse maior o dos que viviam em Portugal. Com o monopólio comercial as proibições de se produzir qualquer artigo para o consumo e venda interna na Colônia chegaram ao limite dos portugueses determinarem que a nossa cachaça— bebida resultante da produção do açúcar — fosse jogada fora para ser comprada a fabricada em Portugal, a partir de suas frutas.

Derrubaram a Mata Atlântica do Nordeste para servir de combustível para os fornos que cozinhavam a calda para fazer o açúcar. A política dos portugueses dizimou também os índios, quer escravizando-os, quer matando-os para vender suas cabeças como “coisa exótica dos trópicos” na Europa. Os Jesuítas “cumpriram com o seu dever” catequizando outros tantos índios, na verdade os desaculturando.

A sobrevivência dos brancos e dos negros ficava limitada a se alimentarem quase tão somente do açúcar (que era fornecido apenas para consumo imediato); de carnes de animais de pequeno porte; das frutas, entre outras das jacas, das mangas e das bananeiras, cujas mudas tinham sido trazidas da Índia e da África pelos padres jesuítas e aqui plantadas com grande sucesso; da lavoura do milho e da mandioca, tradição de nossos índios. Estes dessas lavouras, da pesca e da caça. A população brasileira, portanto não tinha excedente de mercadoria, não tinha o menor poder de troca.

A Coroa portuguesa enviou para cá as meninas órfãs dos conventos para se casarem com os donos das terras e dos escravos, os “senhores de engenho”. Estes eram o todo-poderoso: mandavam em tudo e em todos e todas. Detinham a autoridade suprema: ordenavam os casamentos de seus filhos, resolviam as discórdias de todos os níveis de dentro de sua “Casa Grande”, mandavam surrar e torturar seus escravos ao limite máximo possível com o cuidado apenas de não os matar (os escravos custavam muito caro, mais caros do que os engenhos fabricados e trazidos da Holanda). Havia que poupá-los, mas humilhá-los ao extremo, afinal isso era legal e “legítimo”, pois os negros e as negras tinham sido comprados por ele, ademais não tinham alma, como asseverava, na época, a Igreja Católica. Abusavam como queriam das mulheres negras, subjugavam suas próprias esposas brancas, tudo com a conivência do clero, sobretudo do jesuíta.

Disso decorreu uma sociedade patriarcal na qual o mandonismo, o abuso e falta de respeito à dignidade do outro e da outra, a intolerância, a indiferença aos direitos das mulheres, e dos negros e das negras, era a regra. O “senhor de terras e de escravos” não pagava salário, não deixava que “os moradores” de suas terras aprendessem a ler e a escrever, criaram uma raça de cães ferozes para evitar que os escravos fugissem, dava-lhes pouca comida e os confinavam nas senzalas para dormirem amontoados na promiscuidade. Proibiam quase todas as manifestações da cultura negra: das religiosas às danças e cantos profanos. Permitiam as cantigas de ninar e as comidas africanas. “Cercados”, confinados nos latifúndios poucos puderam fugir a esse “destino” imposto pelos senhores de escravos e de terras. Não havia comunicação e assim se produziu o analfabetismo generalizado no Brasil.

Assim, vocês podem verificar que a colonização brasileira foi realizada a partir de três pilares: o latifúndio, o trabalho escravo e o monopólio comercial (ademais com um único produto para exportação). Esse estado de coisas determinou, portanto, uma sociedade que é intolerante e opressora, diferencia e hierarquiza humilhando a quase todos e todas. Nos construímos na violência. Na banalização da vida.

Estas coisas, infelizmente são fáceis de serem constatadas na sociedade brasileira de hoje, elas permanecem vivas entre nós mesmo que, ao mesmo tempo, tenhamos mudado tanto. Hoje somos uma sociedade moderna, industrial, com grandes e importantes centros de serviços e de cultura. Caminhando para uma democracia. Mas, também somos o país onde há a maior diferença de qualidade de vida entre os mais ricos e os mais pobres. Somos um dos países do mundo com a pior distribuição da renda.

Somos uma sociedade autoritária, na qual o rico diz sem cerimônia: “Sabe com quem está falando?”. Continuamos sendo uma sociedade discriminatória em várias de suas facetas prejudicando os/as índias, e sobretudo os negros e as negras por que continuamos os/as excluindo dos espaços mais privilegiados/valorizados da sociedade. Mesmo com relação à mulher branca continua a haver também discriminação, pois apesar de dedicarem mais tempo na sua escolarização/profissionalização continuam percebendo salários menores do que os homens. Continuamos ainda a ser uma sociedade altamente elitista, na qual a elite manda e usufrui da quase totalidade dos bens materiais e culturais produzidos socialmente, em detrimento da maioria.

Todas essas são mazelas que decorrem do modo como construímos a nossa história, em como nos organizamos enquanto nação. São os fortes resquícios de nossa origem colonialista que ainda pesam enormemente sobre nós. São as mazelas que têm como natureza a violência.

Podemos concluir, sem medo de errarmos que um dos grandes males do Brasil é, pois, o latifúndio, que permanece desafiando todos e todas que o entendem como o que determinou uma sociedade injusta. Uma sociedade pautada pela violência e a antieticidade.

Em pleno século XXI é inconcebível que o nosso país não tenha feito a divisão de suas terras. Divisão justa e necessária. É preciso que essa Reforma Agrária seja feita, urgentemente, sem mortes e sem violência. Que ela seja feita dentro da legalidade, pois ela é legítima e benéfica para o país e para todas e todos.

Não falamos de uma Reforma Agrária qualquer, falamos da que venha acompanhada dos recursos financeiros e estratégicos, e da formação dos homens e das mulheres no sentido de terem consciência que seu trabalho tem que respeitar os ciclos da vida. Que o uso da terra deve se pautar pelo desenvolvimento sustentável.

Se mesmo uma Reforma Agrária pensada “politicamente correta” não garante em si mesma a solução dos nossos problemas mais cruciais — quem garante somos nós humanos assegurando as condições para que ela traga a justiça social, daí a sociedade mais justa, temos que saber que a Reforma Agrária que devemos viabilizar não nasce pronta e terminada, ela deve de dar num processo ininterrupto no qual vamos construindo um mundo melhor.

Sem a Reforma Agrária podemos ter a certeza de que permaneceremos uma sociedade marcada pela malvadez instaurada pelo colonialismo: o analfabetismo generalizado, a fome, a falta de moradia, o desemprego e a exploração do trabalho, o menosprezo pelos direitos humanos mais fundamentais das camadas subalternas, sobretudo de suas mulheres e menores. Permaneceremos numa sociedade na qual a violência não deixa que crianças brinquem, que as meninas não sejam molestadas sexualmente pelo machismo desenfreado, que não precisem estas meninas de se prostituir para garantir sua sobrevivência e tantas vezes a de sua família também, que os pobres sejam respeitados.

Construímos uma sociedade que por sua natureza contraditória precisa dos condomínios fechados e dos carros blindados para fugir dos horrores que criamos. Dos homens e das mulheres que sofreram (sofrem) o inferno dos presídios e das “Febens” e ou que sobrevivem nas favelas desumanas sentindo e percebendo que seu futuro e o do de seus filhos e filhas não será diferente: serão como a sua e a de seu pai e avô e de todos os seus ancestrais: marcada pela desesperança e pautada pela violência.

Façamos a Reforma Agrária em processo permanente de seu aperfeiçoamento: ela certamente nos garantirá dias melhores e de mais Paz para todas e todos os brasileiros e brasileiras.
É preciso buscar a cultura da Paz e aniquilarmos a arraigada e tradicional cultura da violência: a Reforma Agrária é o caminho primeiro nessa busca de nossa humanização.

A Reforma Agrária é, pois, imperativo nacional!