As lágrimas amargas de mulheres camponesas sobre o deserto de papel da Aracruz

Por Eliana Rolemberg*

O direito à propriedade, que a torna privada, não pode ser sacralizado! O direito à propriedade não pode, assim, sobrepujar qualquer de todos os direitos que integram, indissociavelmente, o direito à Vida! O Direito à Vida, sim, é sagrado! Deve ser fruto cultivado com zelo. Deve merecer nosso maior cuidado! A Vida e os bens que devem servi-la não podem ser vistos como meras mercadorias – água, terra, céu e mar são dádivas divinas para gozo de todas as pessoas deste vasto mundo! A propriedade privada, nicho onde muitos produzem e poucos se apropriam da riqueza, às custas de suor, sofrimento, dor, lágrimas e sangue de quem é espoliado, não é sagrada, deve à coletividade uma função social que a torna aceitável pelo conjunto das pessoas comuns.

O que se assiste, mais uma vez, é a aguerrida defesa do direito à propriedade por parte dos detentores das riquezas e do poder, que como sempre se servem daqueles que os servem com presteza – quadros do Estado (do Executivo, do Judiciário, do Legislativo, do Ministério Público) e da chamada grande imprensa, parte dos considerados formadores de opinião… e os funcionários e capatazes do grande capital: um verdadeiro aparelho produtor e reprodutor desse atual modo de vida fundado na opressão e exploração. O mesmo aparelho que, com gananciosa mestria, faz com que se veja com antipatia as ocupações dos sem-terra, no campo, e dos sem-teto, nas cidades. Mesmo que muitos imóveis, no campo e na cidade, sejam mantidos improdutivos ou desocupados, sob propriedade, por mera especulação imobiliária – uma das manifestações mais perversas da afeição pela propriedade privada.

Parece razoável acreditar que essa exacerbada afeição à propriedade privada – propriedade que a maioria absoluta da população não possui, mas por razões histórico-culturais almeja, advenha da profunda confusão entre o público e o privado que permeia nossa sociedade, e que permite, por exemplo, que a Aracruz Celulose invada e se apodere de imensas extensões territoriais para plantar eucalipto, implantando seus desertos verdes, enquanto expulsa populações tradicionais inteiras de seus imemoriais territórios. Povos indígenas, quilombolas, pequenos agricultores, trabalhadores cooperativados são agredidos, mortos ou expulsos, com violência, de suas terras onde cultivam alimento e manejam, equilibradamente, recursos naturais, para, em seus lugares, grandes empresas implantarem suas monoculturas para exportação, seus desertos de cores enganadoras, miragens e quimeras que escondem seus cemitérios de futuros.

A Aracruz Celulose anunciou, em seu balanço anual, os resultados financeiros de 2005 – bateu seus próprios recordes de produção e vendas: lucro líquido de R$ 1,168 bilhão, ou R$ 1,13 por ação, segundo informa. Muita riqueza está envolvida nas operações da indústria de celulose no País e é isso que parece motivar as ações dos defensores das “terras produtivas” da Aracruz, na grande imprensa. Mas essa riqueza é distribuída, apenas, entre os poucos acionistas da empresa e não com “a sociedade brasileira” como querem fazer crer seus entusiastas muito bem pagos. Mesmo a festejada geração de empregos é uma mentira. Estudos realizados pela Universidade Federal do Espírito Santo e pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) já demonstraram que a vasta monocultura do eucalipto é altamente mecanizada em todas as suas fases e emprega muito pouca mão-de-obra. A Veracel (da Aracruz), com todo o seu mega-faturamento e seu gigantismo, promete gerar só cerca de cinco mil empregos diretos e indiretos no Brasil, sem especificar por quanto tempo (sabe-se que a indústria da celulose cria um emprego por 185 hectares de terra ocupada) ao passo que o desenvolvimento de um programa de agricultura familiar variada pode gerar até 30 postos de trabalho permanente por hectare cultivado.

*O impacto ambiental das atividades da Aracruz é enorme. Não foi à toa que, para lutar contra os danos que a monocultura do eucalipto causa ao meio ambiente, mais de cem organizações ambientalistas brasileiras criaram a Rede Deserto Verde, para evitar a continuidade da compra de terras pela Aracruz no Brasil. Além da evidente destruição da biodiversidade zoobotânica pela sua monocultura, o eucalipto é responsabilizado por exaurir lençóis de água subterrâneos, em curto período de tempo. Um estudo da FASE, publicado em março de 2006, após seis meses de análise dos rios Sahy, Guaxindiba e Doce, localizados em reservas indígenas Tupiniquim e Guarani, no Norte do Espírito Santo,indica que a empresa estaria se apropriando da maioria dos recursos hídricos da região e deixando as aldeias sem água. Após adquirir 90% das terras em torno das fontes de recursos hídricos, a Aracruz consome por dia, sem pagar por isso, o equivalente ao consumo de 2,5 milhões de pessoas, o que perfaz quase toda a população do Estado.

Os crimes da Aracruz são tantos e tamanhos, que fizeram corar de vergonha a família real sueca, que, no final de fevereiro de 2006, se desfizeram das ações da empresa, por considerarem insuportáveis as acusações contra a vênus esverdeada. As operações “florestais” da empresa prejudicam sócio-ambientalmente os Estados do Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Além de tomar vários milhares de hectares de terra dos povos indígenas, a empresa também grilou os quilombolas do Espírito Santo, donos de praticamente a totalidade do antigo território de Sapê do Norte, formado pelos municípios de Conceição da Barra e São Mateus. Um grupo de trabalho que estudou a situação fundiária do Córrego do Angelim para a Fundação Palmares, do Governo Federal, confirmou a ocupação de terras dos quilombolas pela Aracruz Celulose e outros grupos empresariais. Outros estudos, realizados pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) para o Incra, confirmam a ocupação de outras grandes áreas dos quilombolas pela empresa.

No dia 20 de janeiro de 2006, a Aracruz acionou helicópteros, bombas, armas pesadas e 120 agentes da Polícia Federal do Comando de Operações Táticas (COT), de Brasília, para destruir duas aldeias e expulsar 50 pessoas dos povos Tupiniquim e Guarani de sua terra tradicional, no município de Aracruz (ES). Sem sequer receber uma ordem de despejo, os Tupiniquim e Guarani foram surpreendidos com o violento ataque. A ação, que resultou na prisão arbitrária de duas lideranças e deixou outras 12 pessoas feridas, teve todo o apoio logístico da empresa de celulose. Os 120 agentes da Polícia Federal receberam hospedagem e utilizaram o heliporto e os telefones da multinacional.

Durante a ação ilegal da Polícia Federal, tratores da multinacional destruíram totalmente duas aldeias e muitos indígenas não puderam sequer retirar seus pertences de dentro das casas derrubadas. E mesmo com essas denúncias de desrespeito aos direitos indígenas e ao meio ambiente, a gigante multinacional ainda conta com vultuosos recursos do BNDES. Recentemente, circulou a informação de que a Aracruz será beneficiada com mais de R$ 297 milhões de recursos do FAT (Fundo de Amparo ao
Trabalhador).

Mas quando, em um ato tachado de “selvageria” pelos defensores das “terras produtivas” de papel, três mil e quinhentas famílias de sem-terra invadiram a fazenda da Aracruz, em Porto Seguro, e derrubaram 25 hectares de eucalipto para, em seu lugar, plantarem milho e feijão, a verdadeira selvageria – utilizar largas extensões de terra boa para uma monocultura que agride o país social e ambientalmente, gera lucros indecentes para uma minoria e em nada contribui para que seja combatida nossa terrível desigualdade social – se expôs num relance: flagrado pelas câmeras de televisão, um trabalhador rural disse, com sua simples sabedoria: “Estamos com fome, uai, eucalipto não se come!”.

E agora tentam, de todo modo, criminalizar a Via Campesina, o MST e o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), por ações de enfrentamento que atingem a propriedade e a riqueza de alguns poucos predadores de nosso País. Crime é não fazer Reforma Agrária! Criminosa é a injusta
desigualdade social brasileira que expropria a população trabalhadora e a marginaliza, tratando seres humanos como se fossem animais nocivos ao convívio! Terrorismo cometem governos, juízes, políticos, policiais civis e militares, grandes fazendeiros, jagunços, milicianos privados que encenam o terror cotidiano que apavora a gente brasileira e outros tantos seres humanos pelo mundo afora! Criminosa é a ganância que move quem é capaz de todo crime por mera riqueza! Criminosos, todos os que querem sacralizar a propriedade da terra neste País de extensão continental! Sacramentar a usurpação, dignificar a grilagem é crime! A terra, a água, o ar são bens comuns, bens de todas e para todas as pessoas deste Planeta! São Dádivas Divinas para Abrigo acolhedor da Criação de Deus e da criação da Humanidade, que devem ser cultivadas com respeito afetuoso.

* Diretora Executiva da CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço)