Marçal de Souza

A violência do latifúndio atinge não só aos trabalhadores rurais, mas também à todos que lutam pela terra no Brasil. É o caso das populações indígenas que foram expulsas de suas terras pelo homem branco e colonizador. A resistência a esta situação é representada por pessoas como Marçal de Souza, covardemente assassinado, em 1983, por um latifundiário que não admitiu a mobilização de um povo na reivindicação de seus direitos inerentes.

Marçal nasceu Tupã-I, na aldeia PyiQuê, em Dourados, Mato Grosso do Sul, no dia 24 de dezembro de 1920. Posteriormente, foi registrado com o nome ”branco”. Quando criança, por problemas de saúde, foi deixado por sua família aos cuidados de Áurea Batista Brianese, uma das pioneiras da Missão Evangélica Cauiuá, que realizava um trabalho de doutrina religiosa junto as aldeias. A missionária, observando a inteligência de Marçal, o incentivou a iniciar seus estudos. Logo depois, ele foi adotado por uma família em Campo Grande. Mais tarde, viveria também em estados como Pernambuco e Minas Gerais .

O jovem Tupã-I retornou a sua aldeia de origem como um índio evangélico e missionário. Se tornou então atendente de enfermagem. Viajou pelo Brasil para arrecadar fundos para manutenção e ampliação das instalações da Missão Evangélica. Porém, tempos depois, Marçal desacreditou da forma com que a Missão tratava os problemas da população indígena. Por isso, se afastou da entidade, mas afirmou que esta experiência foi fundamental em sua vida, porque possibilitou que ele conhecesse o mundo dos brancos, tendo mais condições de enfrentá-lo e combatê-lo.

Conhecimento aproximou o lutador de intelectuais

Antes de iniciar sua militância, Marçal já se destacava pelo domínio que tinha da língua dos brancos. Por isso, era constantemente procurado para servir de guia aos intelectuais e pesquisadores que visitavam sua aldeia. Em consequência, conheceu e trocou valiosas idéias com muitos estudiosos indigenistas. A partir daí, reformulou suas posturas e seu trabalho com os índios. Foi quando ele conheceu Darcy Ribeiro, entre os anos de 1945 e 1946. ”Havia uma época em que não tinha um ideal, um alvo. Não conhecia minha própria história. Mas Tupã abriu minha mente. Reportou-me ao passado e ali revivi a glória do meu povo, já muito distante, sendo levada pelos séculos. Descobri que tínhamos uma riqueza muito grande, muito precisosa, que é a nossa cultura. Desde então, nasceu um amor profundo pelo meu povo índio. Propus em minha vida, vivê-la entre meus irmãos, para pelo menos sentir seu sofrimento e sua vida. Propus em meu coração batalhar pela restauração da nossa cultura, da nossa crença, da nossa organização social, que só nós entendemos”, disse Marçal.

A década de 60 representou o período em que ele se firmou como uma importante liderança em sua aldeia. Foi quando começaram os problemas com o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), entidade governamental criada em 1910 e que, mais tarde, se tornaria a Funai (Fundação Nacional do Índio).

A especulaçao de terras, o desmatamento da floresta e a abertura de estradas, provocaram a superpopulação de índios na região. Marçal aproveitou a inauguração do hospital da Missão Evangélica na aldeia, em 1963, para entregar um documento com uma série de reivindicações relacionadas a terra, saúde, educação e trabalho para os índios de sua comunidade. Além disso, fez uma contundente crítica ao órgão. Marçal defendia que os índios deveriam ser ouvidos para serem agentes ativos de sua própria vida.

Em meados de 64, a aldeia foi visitada por uma comissão do SPI que anunciou a construção de uma serraria para os índios trabalharem. Marçal questionou as boas intenções do órgão, mas mesmo assim a serraria foi implantada. Em seis meses, apenas duas casas foram construídas na aldeia. Em contrapartida, uma média de cinco caminhões saíam por dia, levando aroeiras e perobas da comunidade.

Efeitos da ditadura nas comunidades indígenas

A violência que tomava conta do país nesta época com a ditadura militar era reproduzida também na aldeia. Os militares alardeavam sua autoridade aos quatro ventos. Os demandos se intensificaram. Muitos índios foram cooptados pelo regime e organizados na Polícia Indígena que ameaçava e incendiava as casas daqueles que não obedecessem às regras impostas. O Conselho Indígena da aldeia havia se transformado em instrumento da ditadura. Muitos índios foram expulsos, inclusive Marçal, que ora na cidade ou em outras aldeias continuava prestando seu trabalho de enfermeiro. Durante estas visitas, era espancado e preso, situação que se estendeu até 1975.

Permanentemente proibido de voltar a aldeia de Dourados, foi para a comunidade de Caarapó. Lá, se deparou novamente com a venda irregular de gado e madeira. Denunciou os fatos a Funai e a imprensa. Mas nenhuma atitude foi tomada pelo governo.

No começo de 1983, Marçal foi procurado por pessoas que lhe ofereceram dez milhões de cruzeiros para que retirasse os índios da aldeia de Pirakuá, região assediadas por especuladores e fazendeiros. Marçal recusou a proposta.

Em 25 de novembro de 1983, dois homens foram em sua casa pedir remédios contra a malária. Mas não era este o verdadeiro objetivo. O líder indígena foi assassinado com cinco tiros a queima roupa e teve seus punhos cortados.

A morte de Marçal repercutiu no Brasil e no mundo. Personalidades da cultura, da igreja, da política e organizações sociais mundiais manifestaram sua indignação e cobraram do governo brasileiro esclarecimentos sobre o crime.

Na direção contrária o governo do Estado tentava minimizar o crime. O chefe da casa civil da época, Plínio Soares da Rocha, expediu nota apontando a primeira mulher de Marçal como mandante do crime, para caracterizá-lo como sendo passional e não político. A mídia na época reforçou a versão, retratando o assassinado como uma ”briga entre índios”.

Das aldeias do interior do país à universidades nacionais e internacionais, Marçal fez palestras sobre a situação de exploração vivida pelo índio no Brasil. Elaborou relatórios escritos destinados ao governo, relatando o que acontecia nas aldeias e as constantes ameaças que sofria. Nada foi feito para esclarecer as denúncias, tão pouco para lhe dar um mínimo de segurança.

O fazendeiro Libero Monteiro, mandante do crime, foi inocentado no julgamento realizado em março de 93, o que despertou indignação internacional.

Vinte anos depois da morte de Marçal de Souza Tupã -I, a situação da população indígena no Brasil é preocupante. Demarcações de terras, derrubadas de florestas, abertura de estradas exigem a mobilização da população indígena, que tem, no lutador, o exemplo de que sem luta não existem conquistas.