Por que o Estadão reage de forma tão virulenta contra Semana da CNBB?

Por Luiz Bassegio e Marcos Arruda*

Como sempre o jornal O Estado de S. Paulo que, ao longo de sua história, defendeu e defende os interesses das classes abastadas do Brasil e do exterior, sejam elas financeira, agrária ou industrial, mais uma vez, faz-se defensor delas contra os interesses da Nação brasileira. Desta vez, porém, exagerou. Mas isto é comum para este órgão de imprensa quando os interesses das classes ricas estão ameaçados.

No editorial de 21 de novembro, “Mutirão pelo Retrocesso”, o Jornal volta a reafirmar suas teses ultra-conservadoras, fazendo passar os interesses das elites como se fossem os interesses do Brasil. Controlando o poder econômico e a grande mídia, estas elites exercem o mando sempre de costas para o povo brasileiro, espelhando-se nas metrópoles da Europa ou dos Estados Unidos. O linguajar do jornal revela uma atitude de intolerância e autoritarismo. Não tolera dissenções, nem opiniões contrárias às suas, agredindo com qualificativos depreciadores, em estilo tendencioso e não profissional.

O jornal afirma que a igreja perde seu tempo em reuniões como a Semana Social e é por isso que ela vai perdendo fiéis. Será que lutar pela justa partilha da renda, da riqueza, da terra, lutar por políticas públicas que garantam os direitos sociais e lutar contra a manipulação dos grandes meios de comunicação social é perder tempo? Por que o Estadão não questiona certas igrejas que não relacionam a fé com a realidade, que não fazem a ligação entre a fé e a política, e que evitam debater os problemas nacionais?

Ao se referir à 4ª Semana Social Brasileira da CNBB – Mutirão por um Novo Brasil – onde são discutidos temas como o Papel do Estado, a Soberania, Participação Popular, e a necessidade de um projeto democrático de Nação e de desenvolvimento, o jornal diz que seria melhor que o slogan fosse “Mutirão por um Brasil Velho” ou “Mutirão pelo Retrocesso”. O Estadão continua a desfilar sua indignação ao se referir à luta que as pastorais e movimentos sociais farão no próximo ano, questionando por meio do plebiscito popular o Leilão que em 1997 desnacionalizou a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD).

Por que o Estadão se revela defensor tão ardoroso da injusta, imoral e inescrupulosa privatização da CVRD? A quais interesses estaria ele servindo? Aos do povo brasileiro ou aos das classes privilegiadas? Não sabe por acaso o jornal que a avaliação da mesma foi feita por um dos seus compradores (a financeira Merryl Lynch), e que o preço pelo qual foi vendida foi de apenas 3,338 bilhões de reais, quando seu valor de mercado era superior a 40 bilhões? Ignorava que 10 anos antes do leilão só a província mineral de Carajás havia sido estimada em US$ 80 bilhões? Que a sua composição acionária passou, do momento do leilão até dezembro de 2005, de 51% para apenas 5,7% com o governo federal e de apenas 11% para 41% com acionistas estrangeiros? Não sabe que depois de privatizada a empresa teve lucro de mais de 10 bilhões num ano? O jornal diz que as privatizações devem ser feitas, pois garantem recursos para o governo poder investir em saúde, educação, moradia, etc. Por acaso o dinheiro da privatização da Vale serviu para esses fins? Ou os lucros da Vale privatizada têm sido aplicados em investimentos sociais? Ou para reduzir a dívida pública como prometera o então Presidente Cardoso? Ou irão apenas para os bolsos dos seus acionistas como é o Bradesco?

O Estadão se presta a divulgar o mito de que a dívida externa não é mais problema. Ele finge ignorar que a dívida pública externa continua pesando sobre o Orçamento público e retirando do Brasil mais de US$ 30 bilhões por ano, entre juros e amortizações; que os pagamentos antecipados da dívida externa ao FMI e ao Clube de Paris não reduziram a dívida, pois consistiram na troca de dívida velha por nova, mais cara, e também na troca de dívida externa por dívida interna, também mais cara. O jornal critica a CNBB por questionar o corte indiscriminado de gastos federais, sem mencionar que o Seminário de Encerramento da 4ª. Semana Social questionou justamente a prioridade para as dívidas públicas financeiras em prejuízo dos gastos sociais e dos investimentos públicos em infraestrutura e no crescimento da economia interna e do emprego. O Ministro Luiz Dulci, que debateu com os participantes do Seminário no sábado, 18.11.06, ouviu do plenário a questão relativa ao projeto de Lei Orçamentária para 2007, enviado pelo Governo Lula ao Congresso Nacional, que prevê gastos de R$ 229 bilhões com as dívidas externa e interna, o que representa 26 vezes o que será destinado ao Bolsa Família, 57 vezes os gastos previstos para a Reforma Agrária, cinco vezes o orçamento proposto para a Saúde, 11 vezes o destinado à Educação, sendo que os gastos sociais ainda estão sujeitos a contingenciamentos para se produzir o superávit primário. A demanda de auditoria das contas públicas relativas ao endividamento, que é justa para toda empresa, por que não seria justa para o Governo Federal, instituição que tem como missão primordial o serviço à Sociedade? Ainda mais quando é exigência constitucional (Art. 26 das Disposições Transitórias) e nunca foi cumprida!

Mas há um motivo maior que faz o jornal reagir desta forma e desqualificar as entidades que sempre se bateram pela ética e pela defesa do povo brasileiro.

O Estado de S. Paulo sabe que o conjunto de pastorais e movimentos sociais articulados em torno da 4ªSSB e da Assembléia Popular tem uma força muito grande: mais de 150 mil ativistas tornaram os Plebiscitos da Dívida e da Alca uma realidade em todo o território nacional. O jornal sabe do amor ao povo e da capacidade mobilizadora destes militantes. Sabe que do ponto de vista ético e moral temos razão.

O mais importante, porém, é que o Estadão, bem como as elites que ele representa e defende, têm medo porque há uma decisão do Tribunal Regional Federal de Brasília que reconheceu a nulidade da avaliação do valor da venda da Vale do ponto de vista jurídico, o que possibilita a anulação do leilão. Temos respaldo legal, a lei está conosco na defesa do Brasil!

Só isto pode explicar a virulência com a qual o Estadão se insurge contra a 4ªSSB da CNBB. Se alguém é pelo retrocesso, é o próprio Estadão.

Tanto o jornal como as elites que se expressam por ele podem ter certeza de que o ano de 2007 será de muitas lutas. O Plebiscito Popular sobre a Vale será o cavalo de batalha da sociedade civil organizada. Ele toca diversos aspectos relacionados com a boa governança do Brasil: a soberania do país sobre seus bens naturais, as finanças públicas, o setor mineral, estratégico para o desenvolvimento endógeno, soberano e solidário do Brasil, as dívidas, o papel do BNDES, a ética, a responsabilidade fiscal e moral do governo FHC, o meio ambiente. Com certeza o tema “cola” e é atualíssimo, como ficou demonstrado nas eleições de outubro, quando a correção e a ética das privatizações esquentou os debates.

Ao Estadão fica a pergunta: o Brasil de profundas e históricas desigualdades, com metade da população vivendo na pobreza ou na indigência, um país que permite que madeireiras e agronegócio tenham queimado nos últimos 20 anos uma parte da Floresta Amazônica que corresponde aos territórios da Itália e da Bélgica somados, é esta a modernidade? A CNBB está sintonizada com os anseios e aspirações populares de justiça, igualdade e fraternidade. O jornal defende as velhas injustiças. Os temas de ação da 4ª. Semana Social Brasileira e da Assembléia Popular, ao contrário, apontam para um futuro mais humano, solidário e sustentável.


*Luiz Bassegio é Secretário Executivo do Grito dos Excluídos Continental e do Serviço Pastoral dos Migrantes da CNBB e membro da Coordenação da Assembléia Popular.

Marcos Arruda é economista e educador do PACS – Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Rio de Janeiro) e sócio do Instituto Transnacional (Amsterdam). Assessorou o Seminário de Encerramento da 4ª. Semana Social Brasileira, Brasília, 17-19.11.06.

Leia abaixo editorial do jornal O Estado de S. Paulo, publicado em 21 de novembro de 2006.

Mutirão pelo retrocesso

A prática do mutirão se originou do esforço coletivo para auxiliar um dos membros da comunidade envolvida – mais comum nas comunidades rurais -, mas chegou ao espaço público como evento de trabalho concentrado, liderado ou incentivado pela Administração, para a solução de problemas acumulados. Antes, por exemplo, era a festa para a construção, num domingo, de um celeiro; depois passou a ser o esforço concentrado de combate a epidemias, de aceleração de processos judiciais, de construção de casas populares e solução “por atacado” de inúmeras lacunas sociais. Neste sentido se entenderia a iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – a de há muito famigerada CNBB – de promover uma Semana Social, tendo em vista a criação de um “Mutirão por um Novo Brasil”. Só que, pelos conteúdos e conclusões produzidos pela entidade em Brasília, mais apropriado seria designá-lo por “Mutirão por um Brasil Velho” – ou, com mais precisão ainda, “Mutirão pelo Retrocesso”.

As linhas de força ideológicas que se entrecruzaram no conclave da cúpula brasileira da Igreja Católica mais pareciam expressões das velhas bandeiras das alas radicais da esquerda cabocla – do tipo “Libelu” ou “PSTU” -, tão desgarradas da realidade contemporânea quanto seria a hipotética defesa, hoje, do Muro de Berlim. A chamada 4ª Semana Social Brasileira da CNBB teve o gosto de um rançoso déjà vu político-ideológico, nutrido apenas de envelhecidos e superados chavões, que estiveram em voga na década dos 50 do século passado.

Rever a privatização da Vale do Rio Doce, fazer uma auditoria da dívida externa e incentivar a comunicação alternativa para “diminuir a influência negativa dos grandes meios de comunicação social” foram alguns dos pontos principais da carta de encerramento do simpósio, elaborada sob a forte (?!) influência dos “movimentos populares” ligados à Igreja Católica “deste país”.

A revisão das privatizações – notadamente a daquela que mais tem gerado inquestionáveis benefícios à economia e ao desenvolvimento do País, como a Vale do Rio Doce – é jargão nacionalisteiro sem correspondência alguma com as necessidades reais de crescimento econômico da sociedade brasileira, que depende, isso sim, da capacidade do Estado de canalizar os recursos públicos para serviços essenciais – como educação, saúde, segurança, saneamento e infra-estrutura.

Quanto à “dívida externa”, trata-se de ignorância crassa, sendo hoje uma das proezas mais alardeadas por Lula a sua redução à insignificância. A dívida que atormenta o governo é a interna, cujos principais credores são brasileiros.

O incentivo à “comunicação alternativa” para “diminuir a influência negativa dos grandes meios de comunicação social” não deixa de aproximar-se de algumas discutíveis idéias esboçadas no programa do partido do presidente Lula – e reiteradas em pronunciamento seu, já reeleito. Aí temos, de um lado, a velha tentativa de manipulação da imprensa pelo favorecimento a “concorrentes” – via publicidade oficial – mais “afinados” com o governo. E, de outro lado, a intenção de censura à liberdade de expressão, propriamente dita, que deita raízes nos piores períodos de autoritarismo de nossa história republicana – algo que a sociedade brasileira hoje repudia com a mesma força com que nossa Constituição garante essa liberdade.

Mas há outros tópicos “reivindicados” por alguns dos “movimentos sociais” – e abrigados no simpósio da CNBB – que resvalam em ridículo, como se se pretendesse passar o recibo de que o Brasil é o país da piada feita. Tome-se como exemplo a “reivindicação” do famoso líder do MST, João Pedro Stédile, de nada menos do que a participação do seu movimento no Conselho de Política Monetária – que decide sobre a taxa básica de juros – e no Conselho Monetário Nacional. Só faltou reivindicar um Ministério da área econômica para a entidade internacional sua coirmã, a Via Campesina.

Realmente, ao vermos a energia despendida pela Igreja Católica em reuniões dessa espécie, entendemos melhor por que vão crescendo – e enriquecendo cada vez mais – os movimentos pentecostais.