MST, alianças políticas e governo Lula

Verena Glass Agência Carta Maior

Verena Glass
Agência Carta Maior

No fim desta semana, uma articulação de movimentos sociais nacionais deve aprovar a versão final de um novo manifesto contra a política econômica do governo e contra ataques aos direitos trabalhistas. O documento, que também critica o agronegócio e exige reforma agrária, moradia, ensino e saúde pública de qualidade, conclama a classe trabalhadora a participar de uma jornada nacional de lutas no próximo dia 23 de maio. Entre os signatários, estão Via Campesina, Intersindical, Conlutas, Coordenação dos Movimentos Sociais (Conam, CUT, MST, UNE e Marcha Mundial de Mulheres), Assembléia Popular e a Pastoral Operária.

Bastante similar, no conteúdo, a tantas outras manifestações dos movimentos sociais, este documento merece atenção por ser uma espécie de “face visível” de uma nova articulação política, que tem aproximado forças até então mais ligadas ao PT, como o MST e a Corrente Sindical Classista (CSC, representante o PC do B na CUT), à oposição “à esquerda” ao governo – basicamente PSTU e PSOL, através dos movimentos sindicais Conlutas e Intersindical, a eles ligados.

Grosso modo, poderia se dizer que a semente do referido manifesto foi o encontro que reuniu cerca de 6 mil representantes de organizações sindicais e movimentos populares majoritariamente ligados ao PSTU e ao PSOL no dia 25 de março em São Paulo, e que contou com MST e CSC como convidados. Centrando suas críticas na possível flexibilização de direitos trabalhistas, em abril estas forças fizeram duas novas reuniões, às quais se juntaram as organizações da Coordenação dos Movimentos Sociais, e decidiu-se por uma plataforma conjunta de lutas dos trabalhadores por “nenhum direito a menos” (mote proposto, aliás, pelo dirigente nacional do MST, Gilmar Mauro).

Comemorada pelos dois partidos socialistas como um reconhecimento ao seu poder mobilizador, a disposição à conversa demonstrada pelo MST e pelo braço sindical do PC do B causou estranhamento entre outros setores. Em seu blog, o ex-deputado José Dirceu definiu este movimento como “muito preocupante”, questionando se estaria ocorrendo um rompimento das duas forças com “o bloco democrático-popular forjado nos últimos vinte anos”.

“Poderia imaginar o MST incentivando, por exemplo, um encontro pelas reformas sociais (…). Confesso que estou surpreso em ver essa histórica sigla associada a correntes que não hesitaram em se colocar ao lado da direita nos ataques ao governo Lula, na crise deflagrada em 2005 e na campanha eleitoral de 2006”, escreveu Dirceu.

O descontentamento do MST com alguns rumos do governo, como o pesado investimento no agronegócio e a manutenção de uma política econômica considerada desfavorável ao saneamento estrutural das desigualdades sociais, não é uma novidade. Também não é de hoje que o movimento vem investindo em articulações com outros setores e organizações sociais. Desde 2005, o MST tem liderado a criação e o fortalecimento de fóruns como a Assembléia Popular, iniciativa que busca articular movimentos de base de todo o país em torno do debate sobre “o Brasil que queremos”, ou a própria Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), proposta que busca fortalecer lutas pontuais e consensuais de várias organizações nacionais.

Por outro lado, apesar da cobrança mais dura de um posicionamento claro do presidente Lula a respeito de suas demandas, não foi propriamente o governo o alvo central da Jornada Nacional de Luta pela Reforma Agrária do MST neste mês de abril. Segundo a direção do movimento, o adversário principal das organizações populares é o capital financeiro, considerado a maior força política do país. E contra este e sua estratégia de subordinação do poder constitucional, o que resta é a união de todas as forças que se contrapõe à sua hegemonia, explica José Batista de Oliveira, dirigente nacional do MST em São Paulo, que conversou com Carta Maior sobre a perspectiva do movimento para as lutas políticas futuras, seus aliados e as relações com o governo. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

As articulações, PSTU e PSOL

A partir do momento que entendemos que não vamos conseguir fazer a reforma agrária com as forças que temos, desde 1997 começamos a investir na articulação com outras organizações da sociedade. O que estamos avaliando agora é que temos que fazer a luta conjunta, mesmo com diferenças na análise de conjuntura. Esta avaliação não partiu de um segmento ou de outro. Não é o MST que se juntou à Conlutas (PSTU) ou à Intersindical (PSOL) e está propondo uma ofensiva mais à esquerda ou contra o governo. Estes termos não ajudam. O que buscamos é construir ações que estão acima de nossas diferenças. A não redução dos direitos dos trabalhadores, é isso que nos dá unidade. A avaliação que vários movimentos estão fazendo é que, isoladamente, mesmo os mais fortes têm sofrido redução das conquistas.

Estamos tendo um cuidado para não rotular ninguém, ‘esse é mais de esquerda, esse mais de direita’. O MST está nesse arco de aliança porque cumpre um papel. Não estão em discussão hegemonismos, nem por parte do MST nem por parte de nenhuma organização. Para além do ‘fora não sei quem’, ‘entra não sei quem’, ‘fica não sei quem’, o que conseguirmos construir de ações que sejam implementadas com uma certa coerência vai nos dando autoconfiança para propormos algo mais ousado. O desafio das articulações é potencializar a capacidade de organização de suas bases para transformá-las em ação. Quem sabe se colocarmos um milhão nas ruas, podemos propor nossa pauta.

Relação com o governo

Em relação ao governo, acreditamos que temos que fazer o enfrentamento à política que está aí. A redução de direitos está acontecendo todos os dias, veja a proposta da emenda 3 da Super-receita. Mas não vai ser um discurso mais radical do MST ou da Intersindical que vai mudar esta realidade. Assim, acreditamos que só ações contundentes – e não mais vermelhas ou amarelas -, mas contundentes em relação à quantidade de trabalhadores que nós conseguirmos mobilizar pra defender os direitos, poderão fazer alguma diferença.

O objeto do enfrentamento está claro: é o capital e os seus mecanismos. Claro que não vai ter como não discutir o papel do Estado. Os governos estão a serviço da hegemonia do capital. O capital está se institucionalizando, criando suas próprias regras, e impôs ao governo Lula a manutenção do modelo anterior. Se não houver um ascenso dos movimentos, não teremos condição de pensar em mudança. Estamos tentando construir uma unidade que não seja em torno do paradigma ‘defender ou derrubar o governo Lula’. Estamos construindo um processo que precisa descer para os estados, se transformar em organização local nos vários níveis. Para isso precisamos de um pouco de paciência. E vai ter que haver muita generosidade entre os movimentos, não pode ser uma disputa de quem é mais combativo. Estamos em um momento da luta de classe no Brasil que não nos permite dizer ‘essa é a força hegemônica, esse é o melhor projeto’.

Novos atores, os partido e os espaços da luta política

Hoje nós temos uma situação para as classes sociais diferente da de 20 anos atrás. Do ponto de vista da análise marxista clássica, por exemplo, os indígenas nunca seriam uma força política que se mobiliza como tal, se a gente interpretar o marxismo ao pé da letra. O chão da fábrica não é mais o principal espaço de organização para o enfrentamento, mas não podemos despreza-lo. Hoje, o movimento de moradia consegue articular várias categorias, o empregado, o desempregado, o terceirizado. O movimento social é outro espaço de organização. Estamos numa conjuntura em que a esquerda brasileira precisa repensar as suas formas organizativas. Nós ainda não amadurecemos qual a melhor forma de organização política. Tem sem-teto, tem os quilombolas, tem os indígenas, tem os atingidos por barragens; há um processo de reconfiguração do sujeito histórico, aquele que é capaz de mover o processo de transformação. Antes era só o operário. Quem não era operário… os camponeses eram contra-revolucionários, os indígenas nem eram “civilizados”. Acho que a história está nos colocando uma nova perspectiva.

Nesse sentido, um novo elemento a se estudar é a questão do território, do próprio poder popular… não na direção de ‘vamos largar toda a idéia de partido, não vamos mais disputar o Estado, vamos só organizar o povo no poder popular’. Mas há uma idéia de uma nova estrutura de organização coletiva. Se você pensa a questão do território: lá esta o desempregado, está o assalariado rural, morando na periferia. Não é só o sindicato como forma de organização, tem outras formas. Por isso a Assembléia Popular vem nesse sentido, de trabalhar a organização popular através da geografia, dos territórios. A idéia do poder popular tem esse objetivo, não o de despolitizar ou inventar uma outra roda. Por isso acho que não há uma competição entre o movimento social e o partido. Agora, há uma metodologia. Por isso apostamos na representação de redes e não de partidos nas nossas articulações, é uma maneira de se discutir tanto a fórmula organizativa quanto a capacidade de mobilização, e de envolver a militância num processo mais amplo possível de luta e participação política.