As questões Agrária e Agrícola

Questão agrícola é uma, e agrária é outra. A produção pode crescer, mesmo sem reforma agrária, pois o capitalista pode arrendar a terra. Mas a democracia perde força ao não reconhecer a importância da reforma agrária para os alijados do campo.

Por Edgard Malagodi

Os grandes jornais veicularam, com grande destaque, artigos opinativos bastante controversos sobre a questão agrária no Brasil e sobre o ‘Abril Vermelho’. Este texto foi escrito para demarcar alguns pontos fundamentais da questão agrária e dos movimentos sociais no campo, que algumas pessoas, outrora clarividentes, hoje tentam embaralhar, para tirar um proveito duvidoso, mas com grande prejuízo para a opinião pública.

É lamentável que certo pensamento acadêmico, quiçá exageradamente marcado pelo viés urbano e sulista, insiste em negar a necessidade da reforma agrária neste país. E vai mais longe: insiste em negar a necessidade de fazer avançar a democracia no Brasil pela via dos movimentos sociais. O fato de termos sido um dos últimos países a abolir o estatuto da escravidão, da violência ainda grassar no campo, de termos até hoje os traços fortes de uma sociedade patriarcal e autoritária, nada disso comove estas pessoas. Em geral voltados para os números, para o papel do setor agropecuário nas contas nacionais, preferem desconhecer os problemas mais graves e profundos da formação social brasileira. O raciocínio é lógico: se não temos problemas sociais graves, não há porque termos movimentos sociais fortes. Se não existe problema da expulsão do homem do campo, da moradia na cidade, de desalojados pelas barragens, não há porque ter Sem-Terra, nem Sem-Teto, muito menos barrageiros. Mas, visível e lamentavelmente, não é esse o quadro do país neste começo de século XXI.

Ao contrário, o país está perdendo tempo em não reconhecer a importância da reforma agrária para os alijados do campo. Isso, é verdade, não tem necessariamente a ver com o chamado agronegócio. Tem a ver com o potencial das terras que permanecem ociosas e com a questão social do país. Mas a exclusão não é neutra do ponto de vista da geração de riqueza, pois alijar milhões de cidadãos da produção é também gerar um grande prejuízo econômico. É certo que a questão agrícola é uma, e a agrária é outra. A produção agrícola pode aumentar, mesmo sem reforma agrária, porque o investidor capitalista, no limite, pode arrendar a terra. Isso já era verdade na Inglaterra do século XVIII, e se os reformistas dos anos cinqüenta no Brasil não sabiam disso teoricamente, tiveram que aprender na prática nas décadas seguintes.

Mas a não-solução da questão agrária no Brasil não se deve a um erro teórico, mesmo porque o erro poderia ter sido evitado se tivessem lido, na época, a obra de Smith, Ricardo ou Marx, por exemplo. A reforma agrária não se fez por que o país foi submetido a duas décadas de ditadura militar, e está gastando outras tantas décadas para remover o entulho, justamente devido ao saudosismo da dominação patriarcal arraigado.

Resultado: desde então o país não pode usufruir os benefícios do desenvolvimento, porque aquele modelo gerou mecanismos concentradores e expropriadores, intricados na estrutura burocrática do governo e das instituições bancárias.

Não é por acaso que milhões de produtores rurais, em meio a uma safra recorde, estão se queixando do tratamento dado ao setor. A reforma agrária deve mexer na estrutura fundiária, mas deve também democratizar o acesso ao crédito, ao seguro-safra, à assistência técnica, ao mercado. Ela significa dotar o país de uma grande estrutura de produtores politizados e organizados.

Portanto, se não se deve levantar a antinomia entre o agronegócio e a reforma agrária, no plano macro, também não se deve alijar o pequeno camponês dos grandes mercados. Claro que isso requer um grande percurso, mas é justamente isso que se chama reforma agrária. Um processo em que a terra é o começo, mas no qual o acesso ao mercado é também uma aspiração de muitos, e não apenas exclusividade de alguns. Pode-se argumentar que a concorrência, no final, comprometeria esse processo, e isso é verdade, mas o agricultor terá meios de se associar e de construir novas estratégias e preparar o seu futuro. O importante é reconhecer que o trabalhador sem-terra terá a oportunidade de deixar de ser um permanente desempregado e passar à condição de produtor livre de suas mercadorias.

É neste contexto que o MST anuncia o “Abril Vermelho”. Ele é explicitamente voltado a lembrar o massacre de Eldorado dos Carajás. Só nisso, a decisão é meritória: vivemos em um país que apagou seus registros sobre a escravidão, que hoje coqueteia com a idéia de apagar os registros da ditadura. Penso que uma nação verdadeira não apenas não tem medo de seu passado, como o cultiva da melhor maneira possível.

Em todo caso, não é transformando questões políticas reais em polêmicas acadêmicas que contribuiremos com o debate sobre a questão do campo. O MST é um movimento vivo, e traz a herança da CPT, mas de Trombas e Formoso, das Ligas Camponesas de Sapé e do índio guarani Sepé. E não se pode é negar o fato tangível de que os movimentos sociais eclodem aqui, não porque aqui está a lembrança mais recente da senzala, mas porque o país do agronegócio continua funcionando com o trabalho escravo, por exemplo, nas carvoarias e fazendas do sul do Maranhão e do Pará, e em muitos outros rincões.

Portanto, se queremos uma democracia que conviva bem com jagunços, sujeição do trabalhador e trabalho infantil, se o nosso conceito de democracia não se incomoda com os assassinatos no campo, então de fato a reforma agrária é desnecessária. Mas se queremos uma democracia minimamente substantiva, a questão será: podemos chegar a ela com a atual estrutura agrária? E se precisamos de uma reforma agrária, podemos prescindir de movimentos sociais fortes?

Edgard Malagodi, 62, é doutor em Sociologia e professor-titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande. É autor de ‘Propriedade Fundiária e Campesinato – Um estudo de Smith, Ricardo e Marx’.