A função social da terra

José Renato Nalini *

Perde-se na noite dos tempos a origem da propriedade. Quando foi que os homens se apropriaram do solo e pretenderam exercer sobre ele posse exclusiva? Qual o primeiro título a legitimar a apropriação e a repulsa a quantos outros quisessem partilhar dessa fruição?

Já não se pensa nesses termos após consistente edificação do conceito de propriedade. Direito de uso, gozo e disposição da coisa. Direito que já foi absoluto e que, por impregnar a cultura ocidental, custa a ser relativizado. Seja como for, a Constituição do Brasil de 5.X.1988 consagrou a função social da propriedade. Reconheceu a validade e permanência da mensagem cristã a declarar a injustiça de uma posse irracional. Pois insensato possuir por possuir, como se a terra fosse um capital, à espera de valorização, quando ela significa a possibilidade de vida digna para tantos excluídos.

Recai sobre toda propriedade uma hipoteca social. Se não tivessem abandonado a filosofia, os homens reconheceriam com maior facilidade a sua finitude. Aceitariam a verdade incontornável de que a vida é frágil e efêmera. Bastam algumas décadas – e o que são algumas décadas frente à eternidade – e a mais democrática das circunstâncias virá chamar a cada qual. Ninguém está imune à morte. Essa brevidade da aventura terrena deveria inspirar os seres ditos racionais para que promovessem mais adequado uso de seus pertences.

Por mais poderoso que seja alguém, por mais eficiente na consecução de seus objetivos, tudo aquilo que amealhará não o acompanhará na última viagem. Restará aqui. Para os herdeiros se digladiarem, para o Estado se apoderar de boa parcela, para incitar os ânimos, semear inimizades, alimentar o fluxo dos Tribunais.

Se isso estivesse presente na consciência de tantos possuidores, eles poderiam conferir um destino mais conseqüente às suas propriedades. Elas existem para servir às boas causas. Uma propriedade rural deve conciliar os interesses do meio ambiente e de servir como fonte de sustento para os seus moradores. Não é impossível ajustar os objetivos da preservação – sem a qual o mundo abreviará o seu destino – com o da vida digna a ser garantida a todas as pessoas.

Num país em que a infância e a mocidade não encontram perspectivas – isso explica, para certos estamentos, a ilusão da droga e o aumento da criminalidade – é urgente mostrar que a terra pode propiciar prazeres indizíveis. A conurbação é um fenômeno cruel. Todos aqueles que deixaram sua origem e tomaram o rumo da megalópole, atraídos por emprego e sobrevivência facilitada, viram que as periferias não são o ideal sonhado. Periferia no sentido mais abrangente: periferia econômica, social, política e de fruição dos bens da vida.

Aqueles que têm o domínio das forças capazes de mudar a sociedade – os poderosos na economia, na política e na mídia – têm condições de acenar com um novo projeto para a população excluída. Criar escolas rurais destinadas a disseminar uma cultura de amor à terra é essencial. O Brasil precisa de muitos viveiros de mudas para fazer frente à necessidade imprescindível de combater a destruição das florestas. É mais do que urgente a recomposição das matas ciliares. A cobertura vegetal destruída e que a lei fixa em pelo menos 1/5 – ou 20% – de cada propriedade rural, precisa de mão-de-obra especializada e, mais do que isso, de operadores amantes da terra.

É totalmente insano verificar que ainda existem propriedades guardadas como estoque de terra, sem destinação específica, sem cultivo, sem preservação em convívio com os sem terra. O país não é uma ilha vulcânica e não padece de insuficiência territorial. Ao contrário, há espaço para a acomodação digna de todos aqueles que pretendam trabalhar com a terra.

A questão das terras não é jurídica, mas cultural. Enquanto não houver assimilação plena de que função social significa golpe de morte na visão absolutista, egoísta, materialista, de proprietários antigos, não se avançará nesse tema tão superado. Superado porque, em países do primeiro mundo, a questão da terra foi resolvida no século XVIII e o Brasil – em mais um de seus inúmeros paradoxos – encontra-se a discutir a conquista do mercado de etanol em todo o globo e não consegue solucionar os seus problemas de divisão, de assentamento e de reforma agrária de seu território.

• Desembargador do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Doutor em Direito pela USP, é presidente da Academia Paulista de Letras e ex-presidente do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo.

Da Revista Fatos da Terra nº 19/ Itesp/ Setembro 2007